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2. A CASA DOS REFUGIADOS E A APRENDIZAGEM DO CORPO NA EDUCAÇÃO DE

2.2. O ciclo da violência não se encerra

Hoje, o último dia, é o dia em que sabemos que João foi morto. Morreu dia 13, quando fez um ano do ato contra o silenciamento de vidas e mortes de meninos de rua. Foi espancado por pessoas das quais assaltou um celular. E que decidiram por si mesmas que o certo era matá-lo com as próprias mãos. João foi linchado por essa gente de bem justiceira. E imaginando que o centro nunca está vazio, outros devem ter visto e feito nada. Deixaram matar.

Não foi notícia também. Quem soube? Quem quer saber?

O João morreu, o João foi morto. O João não deixou nem um prontuário, mal queria deixar o nome…

Tinha só 13 anos.

E com essa notícia nos retiramos e fomos retirados

(Diário de campo como educadora no Moinho da Luz, dia 16 de março de 2016)

A cena que encerra nossas atividades no Moinho é simbólica, e carrega de forma condensada todo o processo dos últimos meses de atividades. Aquele não foi previsto para ser o último dia, apesar de sabermos que o tempo estava contado. Em meados de fevereiro, com a equipe já desfalcada, e os que estavam presentes sem ânimo de propor qualquer atividade – uma mistura de falta de energias, de incentivo, e de medo de dar esperanças às crianças atendidas das quais não daríamos conta – um grupo de aproximadamente 10 meninos entra pelos portões, todos atendidos pelo serviço. Somos abordados de forma muito ríspida. Esse tinha se tornado um tratamento comum nas últimas semanas, desde quando as notícias de que o espaço seria fechado começaram a circular. Nas palavras de um colega de trabalho:

Hoje, fico na dúvida se de fato os comportamentos ríspidos aumentaram, ou se foi nossa capacidade de traduzir/receber/amortecer/significar/rebolar/etc. esses comportamentos ríspidos que diminuiu. Muito provavelmente as duas coisas aconteceram simultaneamente. (Marcelo Melissopoulos, técnico psicólogo do serviço)

33 Muitos pedidos, muitas perguntas, e uma aparente necessidade de nos confrontar faziam sair faíscas de cada contato. Estes meninos tinham sido abordados pela polícia, não tomavam banho há um tempo, tinham feito uso de substâncias ilícitas recentemente, e algo muito menos aparente, porém explícito: estes meninos estavam perdendo aquele espaço que sediou o alívio de sofrimentos da rua, brigas e reencontros, paqueras, conversas boas, lanches caprichados, uma sombra boa para cochilos. Estes meninos estavam vendo fechar o único espaço declaradamente dedicado a eles em todo o município, e em vários casos, um espaço de vínculos muito fortes. Impossibilitados, negávamos aos pedidos, não tínhamos condições de lidar com toda a turbulência, todos os pedidos de comida, sabonete, roupas e quaisquer outras desculpas que pudessem usar para nos tensionar, e nos perguntar o porquê de não estarmos dando conta, nós enquanto representantes do mundo adulto, e de um sistema que falha com eles há tanto tempo. As ameaças começaram (não pela primeira vez), e as pedras foram tomadas à mão, os corpos procuraram os nossos para um choque real, que expressasse sem que precisasse ser dito.

A sensação era de que o não dito era grande demais, que fomos silenciados ao não sermos consultados sobre o trabalho que desenvolvíamos com tanto ardor, que o véu da invisibilidade mais uma vez era posto nestes seres humanos sob nossos olhares. Os empurrões então começaram entre alguns atendidos e funcionários, portas foram arrombadas aos chutes, as pedras vieram para estilhaçar o que encontrassem no caminho, e um duplo de tensão paralisante e de adrenalina que pedia por atitudes imediatas. Não foi o primeiro episódio, e outros ocorriam de tempos em tempos, contudo ali havia definitivamente um cenário de motim. Nós havíamos inclusive conversado sobre uma estratégia para o caso de confrontos que, em qualquer cena de tensão com um dos educadores, todos nos uniríamos para mediar a negociação, e proteger os corpos uns dos outros. E então os limites possíveis foram ultrapassados: um outro atendido, Pedro, que estava em atendimento conosco quando o grupo adentrou o Moinho, foi atacado e machucado por eles enquanto saía do serviço ao perceber a instabilidade da situação. Entre uns indo a seu socorro, e o desequilíbrio do resto da equipe, no portão do espaço – palco de muitos episódios, emblema do divisor entre o mundo da rua e o mundo de dentro – um dos meninos mais velhos começou a esmurrar e chutar um de nossos companheiros. Marcelo apenas reagiu protegendo-se com os braços, nunca revidando. As sensações que me

34 percorreram neste momento são difíceis de serem expressas, pois passaram do formigamento de todo meu corpo, ao enrijecimento, a uma confusão total, sendo talvez traduzidos pela palavra choque.

Nunca havíamos chegado ao ponto em que teríamos que dar uma resposta às agressões, parecia surreal que nossa despedida se daria desta forma. Adriana, que curiosamente tinha um apelo maternal para nós, projetou-se à frente da equipe, que neste momento encontrava-se para o lado de dentro dos portões e gestualizou a condição possível daquele confronto: com um braço empurrou o garoto que desferia murros e chutes, possibilitando o fechamento do portão. Não podíamos prosseguir daquela forma, para o melhor dos funcionários e dos adolescentes.

A cena figura como o ápice um processo de desbaste de potencialidades, parte de um ciclo que infelizmente parece se repetir em muitos trabalhos que tentam se desenvolver nas condições sob as quais são postos no campo da Assistência Social (e que partilha esse processo em muitos aspectos com o campo da Saúde). Esta é uma área que, por sua natureza, lida com situações de extrema complexidade, sempre necessitando de ações em rede e projetos em parcerias com outras secretarias, como de Habitação, Cultura, Direitos Humanos, Saúde (especialmente a Saúde Mental), e tantas outras, que, porém, é preterida, sofrendo do mesmo “esquecimento” que seus próprios usuários. Não só, é alvo de políticas tortas, uma vez que acabam sendo diretamente influenciadas seja pelo descaso ou pela ignorância da opinião pública – ou ainda dos próprios gestores, de quem se esperam formações mais sólidas e experiências mais próximas dos cotidianos, isto é, capacidade de compreensão das dimensões implicadas e de posturas profissionais idôneas.

No papel de educadora, há uma dualidade extremamente difícil: a rotina de trabalho não responde exatamente a conformações institucionais, pois as ações se dão corpo a corpo, fala a fala, podendo seguir as regras que se fizessem cabíveis, ou podendo mesmo criar outras; contudo, entraves institucionais, normativos, históricos, sociais e sistêmicos se sobrepõe à camada cotidiana e pessoal. Ali no ECCA Moinho da Luz, sob o encerramento do convênio – determinado por instâncias superiores, tanto da OSCIP quanto da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social –, estávamos (como outros trabalhadores de outros serviços) postos no ciclo da invisibilização, da mutilação de direitos, da violência estrutural que pode ser identificada na existência dos meninos e meninas em situação de rua atendidos, nas

35 instituições e sobre elas, nos órgãos gestores no campo da Assistência Social, e nas políticas públicas que ou são mancas ou inexistentes. Sentíamo-nos como intermediários de violências sem fim, ao passo que éramos receptores indiretos das violências que acometiam as crianças, e das estruturas acima de nós: policiais e outros adultos violentam as crianças, que já contam com histórias marcadas por outras violações, de contextos muitas das vezes historicamente violentados, que por sua vez reagem agredindo um de seus poucos interlocutores (nós), que também reproduzimos violências veladas e explícitas, corroboradas e incitadas por estruturas institucionais responsáveis, que respondem a uma superestrutura hegemônica que prevê a desigualdade, que prevê a existência dessas vidas degradadas para que possa manter as engrenagens rodando em benefício de outros.

Em um processo em que variáveis de muitas ordens confluíram – a citar, a complexidade do atendimento direto com os meninos, a desarticulação da rede de serviços, o enfraquecimento do controle social em relação a esta pauta e interesses políticos superiores – foi declarado o fechamento do último ECCA, e único serviço de atendimento voltado à população em situação de rua infanto-juvenil da cidade de São Paulo. Dada a posteriori em uma publicação em homenagem ao programa Refugiados Urbanos, a justificativa para o fechamento do serviço dada pela instituição Projeto Quixote foi a de “falta de estrutura (dos convênios públicos, da rede local, das condições de trabalho, da compreensão do fenômeno, da falta de uma política)” (LESCHER; BEDOIAN, 2017, p.180), e o prazo entre a decisão de encerramento do convênio e o fechamento real das portas mostrou-se insuficiente e excessivo ao mesmo passo.

Os poucos meses não permitiram encaminhamentos e/ou encerramentos construídos cuidadosamente junto aos adolescentes, e ocasionou o interrompimento dos atendimentos. Muitos dos encaminhamentos apropriados não foram realizados, inclusive, por não haver nenhum outro serviço voltado ao atendimento dessa população. Concomitantemente, os mesmos poucos meses foram mais que suficientes, pois a decisão vinha sendo tomada e discutida dentro da instituição, de maneira que toda a equipe vinha participando do processo de fechamento – ainda que sem poderes de influência ou decisão. Em pouco tempo, um assunto que passava como um temor entre os trabalhadores, com a preocupação de apresentar a trágica situação para os atendidos de maneira amadurecida e cuidada, passou a se espalhar

36 de maneira desmesurada, causando reações diversas, entre elas o fechamento precoce do serviço, com o estopim da cena revivida acima.