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CAPÍTULO III A ENUNCIAÇÃO DO TELEJORNAL E A NARRATIVA

3.1 A Narrativa do Agora Absoluto

Quero ressaltar as questões de tempo e espaço nas apresentações do telejornal como características intrínsecas da narrativa televisual direta, uma vez que os telejornais da atualidade já convencionaram o "ao vivo" como fundamental em seu gênero. Este aspecto o torna, então, único. Entende-se que em uma linguagem são constantes algumas características comuns a todas as modalidades de expressão, sujeito e tempo são categorias elementares do discurso, comuns a todas as determinações culturais e que permitem a experiência subjetiva humana por meio da discursividade (BENVENISTE, 1999, p. 70).

A individualidade humana é firmada na condição de um "EU" em relação a um "TU". Segundo Benveniste (1999, p. 70), esta é uma realidade de oposições linguísticas que se reflexiona nos discursos. Assim que, em toda linguagem, quem fala se apropria da dimensão do "EU" para enunciar ao "TU", neste momento e em todas as vezes, o sujeito da enunciação convoca a linguagem e insere-se no discurso, através dela, criando uma nova modalidade de tempo, o tempo linguístico.

Esta ação coloca a presença da pessoa no discurso, passo fundamental para que possa existir linguagem. Isso significa que, no desejo de se comunicar, o homem convoca a língua, enuncia colocando-se no discurso como sujeito com

individualidade existencial "EU", e posiciona-se ante o outro "TU", que também é construído e instituído no discurso. Estes dois sujeitos enunciativos instaurados no discurso colocam-se não em oposição, mas em relação complementar. Resumidamente, este é o procedimento básico da enunciação que promove, assim, uma experiência humana dialógica pela linguagem.

É necessário deixar claro como Benveniste enxergava o tempo e o categorizava, neste sentido. O tempo das línguas é dado principalmente pelo uso dos verbos. Eles são capazes de mobilizar as ações dos sujeitos em função de um passado, presente ou futuro. O sistema temporal que as línguas engendram tende a reconstruir uma realidade, tentando sempre se aproximar da natureza do tempo objetivo.

Para Émille Benveniste, todo sistema de linguagem tem um caráter em comum, que é a capacidade de significar, e sua composição em unidades de significância, os signos. Sob estes aspectos, tento pensar a imagem televisual como um sistema semiológico que possui um modo próprio de operação, ou seja, convoca linguagens (visuais, sonoras, verbais) para enunciar; domínio de validez, quando o desempenho de tais linguagens compõem uma linguagem própria que é a do televisual; natureza (midiática) própria composta por signos envolvidos; e, por fim, um tipo de específico de funcionamento, que se dá no seu desempenho pelas instâncias da produção e recepção outorgadas por um dispositivo.

Dentro deste contexto, o tempo na televisualidade atende a dois fatores determinantes, se a narrativa for gravada ou ao vivo. No telejornal existem as duas, porém para as análises que esta pesquisa se propõe, o foco será a transmissão ao vivo, uma vez que a apresentação telejornalística atende este preceito.

Benveniste (1999, p. 73) entende a noção de tempo por tempo físico, tempo crônico e tempo linguístico. O tempo físico é a noção individual, vivida, infinita, linear e segmentável da vida que cada indivíduo mede segundo suas emoções. O indivíduo sente o tempo físico segundo o ritmo de sua vida interior.

Diferente do tempo físico, o tempo crônico é o tempo dos acontecimentos, que acaba por envolver a vida do homem, porém, numa sucessão de acontecimentos. A vida corre incessante e não é possível reviver os fatos nem antecipar o futuro. Porém, o tempo crônico trata de arrumar pontos de referência em nossas vidas e situá-los por blocos que permitam recordar o vivido em duas vias, do passado até o presente e do presente até o passado. Para Benveniste (1999), o

tempo crônico precisa ser entendido pela lógica do acontecimento26, fazendo uma brilhante distinção na qual os acontecimentos não são o tempo e, sim, estão no tempo.

Em toda história humana as pessoas esforçaram-se em objetivar o tempo crônico, sendo esta uma condição da vida e da vivência em sociedade. Estes esforços resultaram na elaboração dos calendários, da divisão do dia pelo ciclo do sol e, consequentemente, das horas do relógio. Tais acontecimentos, recortados do próprio tempo, formam fragmentos com um eixo de extremidades lógicas de "antes" e "depois" que Benveniste (1999) chama de condições estativas e diretivas.

No meio destes extremos está a unidade "mensurativa", que é um repertório de unidades que serve para medir estes intervalos de tempo/acontecimento. Por exemplo, o intervalo entre a aparição e desaparição do sol será um dia; o intervalo entre duas conjunções da lua e do sol será um mês, e assim outras unidades foram surgindo. No caso deste estudo, os blocos de apresentação do telejornal formam uma unidade bem como as matérias gravadas apresentadas nele.

Este compartimentar dos acontecimentos permite ao homem situar-se na vastidão da história e preservar em sua consciência uma lógica dos acontecimentos, nos quais ele possa incluir-se. É importante destacar que a estrutura do tempo crônico é fixa e permanente, desta forma, a organização social do tempo crônico é intemporal. O calendário é uma denominação do tempo que é vazio de qualquer temporalidade, mostra e mapeia o tempo mas não participa da natureza do tempo.

Por último, Benveniste (1999, p. 76) apresenta a noção de tempo linguístico, que é o tempo da língua que está organicamente ligado ao exercício da palavra e "que se define e se ordena em função do discurso". Este tempo é o tempo presente do uso da palavra, do enunciar. Este presente feito ao enunciar é reinventado cada vez que alguém fala, pois é um momento novo, ainda não vivido. O autor lembra que o presente linguístico é o fundamento das oposições temporais da língua.

Pois bem, este presente linguístico vai compondo-se pelo discurso em enunciação e rememora acontecimentos do passado bem como prospecta o futuro. O presente linguístico engendra no agora toda forma de organização factual social e de memória do homem. Este presente linguístico é um tempo implícito, que é

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Benveniste (1999, p. 73) faz a seguinte distinção acerca do tempo crônico: "El tiempo crónico, lo que llamamos de ‘tiempo’ es la continuidad donde se disponen en serie esos bloques distintos que son los acontecimientos".

marcado pela coincidência do acontecimento e do discurso. Diferente dos tempos passado e presente, que são explicitados pela linguagem e que não se colocam no mesmo no nível do tempo (presente) linguístico.

Benveniste (1999, p. 78) chega assim a uma conclusão que irá ajudar-nos nessa pesquisa: "...o único tempo inerente à língua é o presente axial do discurso, e que este presente é implícito." Isso significa que, ao acionar a língua, imediatamente é posto em funcionamento seu efeito temporal do presente que, de tão imediato, parece implícito.

Então a narrativa de apresentação do telejornal insere-se em uma enunciação de espectro amplo e apresenta elementos próprios de linguagem, ou seja, um sistema semiológico como já foi descrito. Tal sistema é inscrito em um dispositivo midiático e funciona segundo suas regras. O tempo ditado por este dispositivo televisivo é majoritariamente relativo à transmissão "ao vivo", portanto pode-se chegar à conclusão que a narrativa de apresentação telejornalística (tida como linguagem) funciona aos moldes dos mecanismos da língua, porém midiatizada.

O tempo linguístico é essencial para entender a apresentação do telejornal, uma vez que todos os acontecimentos nela são enunciados no presente, e os acontecimentos trazidos para este "agora absoluto" estão compartimentados (gravados e editados) em fragmentos narrativos de tempo crônico.

O pesquisador argentino Mario Carlón tem interessante estudo sobre o aspecto do discurso do "ao vivo" em televisão, em que se baseia nas teorias de Benveniste para explicar o tempo da transmissão direta. Carlón (2012, p. 129) compara a transmissão ao vivo com o caráter de intercâmbio intersubjetivo da linguagem, quando o locutor do enunciado diz "agora, hoje, neste momento", está localizando um acontecimento como simultâneo ao seu próprio discurso, orientando assim o interlocutor a encontrar-se com ele na mesma representação.

Percebe-se a existência de um recorte de tempo feito pelo ato da enunciação, em que o enunciador mobiliza uma linguagem que materializará suas ideias, dispersas até então no vasto campo das intersubjetividades. O mesmo autor questiona-se sobre qual é o estatuto do presente na transmissão ao vivo, já que um novo tempo presente é instaurado a cada vez que se enuncia. Para tanto, ressalta que o tempo nestas transmissões não é intemporal, pois se reconstrói a todo momento em um agora permanente.

Carlón (2012, p.129) fala que assim como o tempo linguístico, o ao vivo tem seu centro no presente da enunciação. É configurar um tempo novo a cada vez que se enuncia. Diz ele: “Como o tempo linguístico, o seu presente é implícito e instaura um passado (voltado para trás, dado pelo que acaba de ser emitido) e um futuro (projetado para a frente, que é o desconhecido)" (CARLÓN, 2012, p. 129).

Este é o ponto onde o autor faz a junção entre a temporalidade da transmissão direta, que é imbricada à da linguística, e a temporalidade dos acontecimentos aos quais se refere, e situa-os simultaneamente em seu discurso. Os discursos criados pela audiovisualidade assemelham-se de forma extraordinária à experiência perceptiva. O eixo temporal do "ao vivo" convoca acontecimentos para o presente e faz o enunciatário acreditar que está vivendo uma experiência muito próxima do real. Aqui pode-se explicar o efeito da transmissão ao vivo usado nos telejornais, se for considerado que um dos efeitos mais buscados no telejornalismo é o de realidade.

Sabe-se que o telejornal é majoritariamente ao vivo, porém, remonta os tempos passados e futuros por meio de gravações. Ao gravado, Carlón (2012, p. 131) faz contraponto ao que antes era o ao vivo. No ao vivo, executado no presente da enunciação e de caráter de intercâmbio intersubjetivo, o tempo existe e é instaurado a cada vez que se enuncia, o gravado por sua vez é intemporal. Nas matérias editadas do telejornal, o acontecimento está situado, como chama Carlón, "Em algum tipo de passado... indeterminado".

Toda a cena enunciativa da apresentação do telejornal está montada no sentido dos elementos icônicos comporem um tempo visual focado no presente. Os esquemas icônicos não compõem uma linha cronológica de início, meio e fim, mas sim, reforçam significados plásticos de um tempo presente, que apenas mostra acontecimentos passados e futuros numa transitoriedade constante. Prova disso é perceber, como já mencionei antes, a tematização deste tipo de narrativa, que não muda conforme as notícias que apresenta.

Pode-se fazer uma associação dos elementos visuais na apresentação do telejornal como apoiadores discursivos da narrativa do agora, em que tudo está posto para reforçar, amplificar, os sentidos do acontecimento rápido e fugaz. A cena de apresentação toma forma de uma máquina transitória de tempo, que traz os tempos crônicos para o presente, em forma de matérias (acontecimentos) editadas, e os atualiza.

Como o tempo da enunciação do ao vivo é breve, se institui no presente do ato da linguagem e se destitui tão logo esta cesse. Por isso, produzir um ambiente icônico que suporte este tempo do "agora absoluto", é desafiador. Talvez esse aspecto possa justificar porque os cenários e desempenhos de palco sejam montados com aspecto abstrato nos quais supervaloriza-se a cena do infinito, do fluído, do movimento, dando condições para o locutor estabelecer seu tempo ao enunciar. Um tempo imaculado, novo e determinado pelo presente da enunciação. Assim, iconicamente abstrai-se o tempo para que ele seja instituído na instauração do presente enunciativo midiático.