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4. Políticas de Línguas e "a" Língua Portuguesa

4.4. A narratividade dos mitos

Somos nós que pensamos os mitos ou são os mitos que nos pensam? (C. GINZBURG, Mitos, emblemas e sinais)

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Tendo em conta que nossa pesquisa observa o modo pelo qual a constituição da CPLP se dá, pensar a narratividade dos mitos97 portugueses pode ajudar a compreender o modo como se constitui e se constrói essa comunidade em seu devir; e compreender o funcionamento dos efeitos de sentido produzidos pelas discursividades da lusofonia e da CPLP sobre língua portuguesa sustentados por essa narratividade. A forma como a realidade é narrada na forma de mitos ajuda a construir uma memória a partir de uma história coerente, sem falhas, e com causas e consequências. Conforme Pêcheux (2011 [1984]), é "a questão da realidade da referência [que] se encontra de fato 'colocada em suspenso' em uma série de efeitos discursivos" (id., ibid., p. 155). Desse modo, trazemos à cena os mitos: da "tese do efeito fundador"; de D. Afonso Henriques; do sebastianismo; e o mito da missão evangelizadora de Portugal, que constituem um entrelaçamento de dizeres se auto e intersustentando.

A "tese do efeito fundador" é narrada como um fenômeno de evolução biológica, definido pelo pesquisador Ernst Mayr como "o estabelecimento de uma nova população por uns poucos fundadores originais (em um caso extremo, por apenas uma única fêmea fertilizada), que contém somente uma pequena fração da variação genética total da população parental" (RIDLEY, 2006). A partir desse discurso científico, a Wikipedia portuguesa, em seu site, apresenta um discurso sustentado nessa teoria para significar os portugueses como a origem do povoamento da Europa. Nesse momento, apresentamos dois recortes, ambos produzidos pela mesma fonte98:

RECORTE 1:

Mas a base genética da população relativamente homogénea do território português, como do resto da Península Ibérica, mantém-se a mesma nos últimos quarenta milénios: os primeiros seres humanos modernos a entrar na Europa Ocidental, os caçadores-recolectores do Paleolítico.

RECORTE 2:

De facto, a presente população portuguesa apresenta características que não só a marcam como uma população ibérica paleolítica, mas também como uma população, conjuntamente com os bascos, relativamente

97 Sobre a discursividade dos mitos, conferir a tese de doutoramento de Verli Petri (2004). 98 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Portugal#cite_ref-83. Acesso em: jul. 2012.

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isolada de grandes influências mediterrânicas, bem como com um nível de especificidades tais que apontam para um Efeito fundador ("The Portuguese have a characteristic unique among world populations: a high frequency of HLA-A25-B18-DR15 and A26-B38-DR13, which may reflect a still detectable founder effect coming from ancient Portuguese")". Ver A. Arnaiz-Villena et alii. (1997), Relatedness among Basques, Portuguese, Spaniards, and Algerians studied by HLA allelic frequencies and haplotypes, Immunogenetics, 47(1):37-43.

A partir desses dizeres, podemos compreender que os portugueses foram os "primeiros seres humanos modernos" a entrarem na Europa Ocidental, portanto os portugueses são um povo que se constitui pelo efeito fundador, ou seja, que estabelece novas populações em outros espaços diferentes do da Península Ibérica, através de uns poucos fundadores originais portugueses. Compreendemos esses dizeres como uma narratividade, que a par com a dos outros mitos portugueses que apresentaremos a seguir, se constroem em torno do povo português, produzindo efeitos de sentidos que atravessam ainda hoje o imaginário desses sujeitos portugueses em relação à forma histórica do sujeito/espaço português conforme constituído.

Considerar a tentativa de silenciamento das línguas locais durante o período de conquistas do Estado português remete-nos a um discurso fundador que produz, sustenta e se sustenta nos efeitos de sentido como o de maior potência da época – Portugal significado em relação às outras nações do século XV-XVI, à época do acontecimento da conquista e partilha do mundo, "as grandes navegações" (metáfora para as conquistas e colonização de novos territórios/ sociedades, a conquista significada como "aventura") –, como a nação de grande poder político e econômico. Nessa discursividade, a língua portuguesa na época da colonização, invade e se impõe no espaço das línguas autóctones como a língua da Metrópole; e, mais tarde, como a língua do Estado Nacional, narrativizando uma memória histórica que até hoje produz efeitos de homogeneidade, pela filiação de um imaginário de nação para dentro como um espaço de uma única língua, e para fora do espaço português como um espaço extensão ainda de Portugal, em que os povos, hoje ex-colonizados, se constituem como se fossem povos irmãos, que falam a mesma língua. Silencia-se o sentido do diferente, de que o espaço português é constituído também por outras línguas, e de que essas outras formações sociais são constituídas por outras línguas e por outros imaginários

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de línguas, e de que pertencem a espaços em cuja historicidade o efeito de nações irmãs já deslizou.

Segundo Franco (2000) é preciso compreender a formação daquilo a que podemos denominar como o mito de Portugal: "um reino singular e perene fundado em direito divino numa antiguidade que remonta aos patriarcas bíblicos, cuja história é protegida e conduzida providencialmente pelo céu, em ordem ao cumprimento de uma missão com abrangência universal."

O texto a História de Portugal do Padre Fernando Oliveira escrita depois da derrota de Alcácer-Quibir e no âmbito do processo de sujeição política de Portugal ao reino vizinho (a Espanha da dinastia dos Filipes), a que aquela derrota conduziu, ao lado do texto do projeto da História do Futuro do Padre António Vieira escrito no final da década de quarenta do século XVII (1649), no quadro do processo de restauração da independência do reino de Portugal em relação ao domínio castelhano, são duas histórias em que duas 'utopias', dois 'mitos' são narrados. A narratividade da perenidade de Portugal, constituída divinamente para realizar uma missão de caráter sagrado. E a narratividade da plenificação dessa missão na sonhada apoteose do Quinto Império (FRANCO, 2000).

Essas narratividades se sustentam em relação àquela que diz de Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal, ou o mito do "Milagre de Ourique", e aquela que diz de D. Sebastião, último rei da Dinastia de Avis, morto em 1578. Na ficção sobre Afonso Henriques, conta-se que, antes da famosa batalha de Ourique contra os mouros, ocorrida em 1139, este foi surpreendido por uma visão na qual lhe aparece Jesus Cristo para anunciar- lhe a vitória certa. Nesse local da batalha, o Estado português teria sido fundado, e Afonso Henriques teria sido aclamado rei no próprio campo de batalha. Na ficção sobre D. Sebastião, conta-se que o rei, ao lutar na lendária batalha de Alcácer-Quibir (Marrocos) também contra os mouros, foi morto, mas que seu corpo nunca foi encontrado. Essa morte é interpretada como tragédia, pois Portugal, em consequência disso, perde sua independência e passa a integrar o Império de Felipe II da Espanha, momento em que se concretiza a chamada "União Ibérica", entre 1580-1640. Nessa narratividade, sua morte é significada como desaparecimento, e, a partir daí, constrói-se a crença na volta desse rei para libertar os portugueses e restituir a grandeza de Portugal. Segundo Freixo (2009), essa crença é

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resultado de uma mistura de tradições messiânicas do tipo judaico presentes em outras narratividades portuguesas.

Na História de Portugal, Padre Oliveira faz "faz uma profissão de fé de que Portugal não acabaria em consequência dos acontecimentos em torno de 1580. A sua obra é uma releitura idealizante de Portugal com base nesta esperança que 60 anos mais tarde vai ser confirmada, e vai inspirar um sonho ainda mais prodigioso e proficiente." O sonho de Padre Vieira, que complementa a história do passado de Portugal escrita por F. Oliveira. A História de Portugal é escrita visando demonstrar a perenidade do Reino de Portugal, justo quando perde sua independência. Faz ver que é um reino fundado em direito divino, e singular em relação aos outros povos. Neste sentido, segundo Franco (2000) este texto constrói, a partir de uma determinada ideia de Portugal, um passado dourado,

que visa justificar e fundamentar uma utopia, que se tenderia a projectar naturalmente no futuro: a utopia da perenidade de Portugal. Utopia que ganha consistência significativa a partir da demonstração de duas teses fundamentais sobre Portugal: a sua fundação sagrada em direito divino e a sua inerente eleição para realizar uma missão religiosa de carácter universal - a evangelização dos povos desconhecedores do cristianismo. Numa época de incerteza e de dúvidas quanto à conservação da identidade e autonomia de Portugal, esta história pretende defender a sua intocabilidade e, com visceral amor patriótico, refutar aqueles que defendiam e fundamentavam a sua inevitável e natural diluição na Espanha imperial dos Filipes. (id., ibid., p. 90)

Nesses textos, ainda segundo Franco (2000), tanto Oliveira quanto Vieira mostram deslumbramento pelo passado histórico de Portugal e, especialmente, estão convictos do fato de que os Portugueses fizeram muito mais que qualquer outro povo, principalmente porque superaram as façanhas triunfalmente cantadas pelos autores da antiguidade clássica. Os desastres e as vicissitudes da história, contudo, que ofuscaram e interromperam esse curso triunfante de Portugal, deixaram nestes dois autores portugueses a sensação do inacabado, do não cumprimento total da missão que estava designada divinamente para este reino. Neste sentido, estas duas obras, estas duas narratividades,

reclamam o regresso a uma idade de ouro portuguesa e o cumprimento da sua missão divinamente ordenada, a qual nenhuma

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potência humana pode impedir e sufocar a sua realização. Desenvolvem, assim, um autêntico mito de Portugal, assente numa afirmação da marca transcendente da sua fundação, na exaltação da sua história gloriosa e na plasmação ainda mais maravilhosa do seu destino histórico que desemboca no projecto mítico do Quinto Império. No fundo, estes dois projectos historiográficos são uma profissão de fé num destino de Portugal ainda não consumado. Uma profissão de fé e uma convicção obsidiante que deu forma a um filão fundamental da nossa cultura portuguesa e que, neste século, Fernando Pessoa continua e sintetiza num grito bastante sugestivo em forma de prece: "Quem te sagrou criou-te português. Do mar e nós em ti nos deu sinal. Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal" (PESSOA, Mensagem, 14ª ed., Lisboa, Ática, 1992, p. 59). (FRANCO, 2000, p. 108) Retomamos o que nos diz Mariani (1998) sobre memória, observando que a memória social se produz na relação direta com o esquecimento necessário. Paradoxalmente, todavia, é o esquecimento que possibilita a produção de outros efeitos de sentidos. Entremeiam-se, nas práticas sociais de fixação da memória, o que deve ser lembrado para que outros sentidos possam ser esquecidos. No caso dessas narratividades sobre Portugal e os portugueses, a estabilização da interpretação sobre esses acontecimentos em relação às outras possíveis, interdita que seja esquecida: "não deixar um sentido ser esquecido é uma forma de eternizá-lo (e, até mesmo, mitificá-lo) enquanto memória 'oficial'" (id. ibid., p. 36). Os sentidos silenciados podem redirecionar os hegemônicos. É, nessa direção, que compreendemos como a narratividade sobre os mitos portugueses não deixam esquecer o modo como o acontecimento das "descobertas" ainda pode ser revivido, reexperienciado, atualizado nesse discurso sobre a língua portuguesa.

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