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4. Políticas de Línguas e "a" Língua Portuguesa

4.2. A 'política de língua' na CPLP

A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP – é uma organização internacional (1996), formada por oito Estados nacionais – Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, e Timor Leste – que se funda sobre um discurso que faz silenciar a memória da colonização e um passado anterior a essa memória, e faz significar as nações integrantes como "povos irmãos" entre si, falantes de "uma língua comum", "a" língua portuguesa. Em seu site, dentre as múltiplas páginas sobre "a" língua portuguesa, há uma sobre "política da língua", em que "a" língua portuguesa "consolida políticas (Estados) […] identifica espaços pluriculturais […] e exerce um papel decisivo em termos geoestratégicos." Assim, pelo monolinguismo da CPLP, discurso comum de seus Estados membros, essa "política da língua" produz efeitos que impedem o real reconhecimento não só da diversidade linguística e histórica entre os países, como também das línguas autóctones, das línguas de imigrantes, das diferentes línguas nacionais, uma vez excluídas em prol da unidade nacional, agora, segregadas do aparato jurídico- administrativo, posto que, de uma forma ou de outra, as políticas de línguas baseadas nessa "política da língua", ou excluem/segregam, ou homogeneízam (ORLANDI, 2010).

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Nesse momento da discussão, baseamos nossas reflexões nas que Rodríguez- Alcalá (2000, 2004b) faz sobre o papel que o apelo à cultura tem na legitimação do Estado- nação, constituído a partir do final da Idade Média, vindo em certo sentido a substituir o papel que a religião desempenhara num período anterior.

Os Estados nacionais, na sua formação, tiveram sua constituição e consolidação operadas a partir do fim da Idade Média, num processo em que o Estado absolutista desenha seu declínio em linhas fortes. O Estado absolutista construía sua legitimidade pelo apelo a Deus, representado na terra pelo Soberano. Os vassalos deviam identificar-se com o Soberano, obedecer a seus desígnios, pois ele exprimia a vontade divina. Mas com o declínio do pensamento religioso medieval, e a separação operada entre religião e política, coloca-se um problema fundamental no que diz respeito à legitimação do poder, à governabilidade dos sujeitos. Não é mais evidente que o que os reis fazem está bem-feito e que é preciso obedecê-los; o Estado deve encontrar outros meios para suscitar a adesão dos sujeitos, uma vez que Deus não garante mais essa sujeição. O "amor a Deus", o "temor" a ele, que devia traduzir-se na subordinação ao Soberano, passou então a ser substituído pelo "amor à pátria", pela "lealdade à nação", que deve traduzir-se na subordinação ao Estado, através das leis instituídas. E essa é uma injunção característica dos Estados nacionais, de modo geral: os sujeitos são interpelados a identificarem-se com um Estado, através de suas leis, e não com outro, de forma particular e diferenciada. Assim, as leis devem mostrar-se adequadas à cultura da nação com a qual os sujeitos se identificam, sendo essa adequação aquilo que justifica a subordinação a ela (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2004b). De acordo com a autora, é nessa confluência da identificação dos sujeitos e das políticas instituídas em torno da nação, através da cultura, que o Estado constrói sua legitimidade.

Como observa a autora (ib., ibid.), esse vínculo da cultura com a fé foi gradativamente se enfraquecendo para dar lugar a um vínculo com a nação que a cultura mantém hoje: os hábitos, costumes e tradições sociais tornaram-se índices de pertencimento a uma nacionalidade, cuja essência é a cultura, não mais a uma religião; a língua passou a expressar não mais os mistérios da fé, mas a cultura de uma nação. Um sintoma dessas transformações é a mudança no formato dos instrumentos linguísticos: o aval das autoridades real e eclesiástica que, junto com aquele dos conhecedores das línguas

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descritas, introduziam as gramáticas das línguas indígenas do século XVI, atestando sua adequação à língua e à doutrina, foi substituído no século XIX pelas referências à língua pátria; paralelamente, os "anexos" daquelas gramáticas, constituídos por textos de literatura religiosa (catecismos, manuais de confissão, poemas ou peças teatrais de tema sacro) deram lugar às antologias de textos literários de autores nacionais. A língua não fala mais, em primeiro plano, de Deus e da doutrina, mas da nação e de sua cultura (RODRÍGUEZ- ALCALÁ, 2004b).

Nessa construção de sua legitimidade que garanta a governabilidade dos sujeitos nacionais, o modelo de Estado-nação precisa se fundar em pilares que lhe sustentem os sentidos de soberania e de unicidade nacional, dois deles, a nosso ver, são: a necessidade de demarcação política e geográfica de um território, e aí se delineiam fronteiras à revelia das nações ou grupos já existentes em nome de um modelo econômico capitalista de Estado76; e a eleição de uma língua nacional, que oficialize a forja dessa unidade77 e autonomia político-jurídico-administrativas. Assim, não qualquer língua para esse posto, mas uma língua com lastro, digna do reconhecimento pelos outros Estados Nacionais, que escreva os documentos, a sua literatura, a sua diplomacia, a sua burocracia e cante, orgulhosamente, o hino do novo Estado-nação.

Nessa tarefa, o discurso do nacionalismo, sustentado pelo discurso da etnoculturalidade (cf. seção 4.1), produz efeitos de sentidos que se intrincam com os efeitos produzidos pelo discurso do Estado nacional, na direção de intensificar o poder do Estado. Nesse afã, os sujeitos tomados nessa posição nacionalista compreendem como necessário o gesto de interditar as línguas, nesse lugar, significadas como minoritárias (quando na

76 O argumento nessas condições de produção de legitimidade do Estado em relação a e sobre sujeitos e

territórios é a cultura, e, aqui, uma determinada definição de cultura, aquela orientada para o passado, que leva, então, à noção de etnicidade como critério legitimador, inclusive, de políticas públicas.

77 Um possível sentido para 'unidade' seria a ilusão, o desejo de procurar harmonizar o diverso e a dispersão

num mesmo espaço, sustentando-se na evidência de que no gesto da partilha desse espaço há garantia de uma perfeita interação entre os sujeitos que a ele pertencem. Essa ilusão não se sustenta; primeiro, porque não se pode falar de obviedade de sentidos já que nas relações entre sujeitos há sempre o lugar do equívoco, o lugar da falha, o não-um do sentido e o político funcionando. Segundo, porque a ilusão dessa unidade harmonizada se enfraquece pela impossibilidade de tudo partilhar nesse espaço. Assim, a unidade pode ser compreendida como um mecanismo necessário que funciona por processos sociais de inclusão e exclusão, ou seja, de identificação, desidentificação e contra-identificação (cf. PÊCHEUX, 1997 [1975]).

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verdade são a maioria), e com elas suas memórias78 diversas em favor de uma história nacional unificada/homogênea e língua e cultura homogêneas, que supostamente se estendiam a um passado longínquo e comum79. E, aí, temos inúmeros exemplos de tentativas bemsucedidas80 não só no passado como nos dias de hoje: as línguas indígenas nas Américas pós-coloniais, os patois na França pós-revolucionária, a língua geral no Brasil colônia, as línguas africanas durante a colonização da África, e, ainda hoje, o desconhecimento oficial da língua alentejana falada na região portuguesa do Alentejo.

Pensando as políticas de línguas como um conjunto de práticas simbólicas (re)produzidas pelo Estado, e refletindo sobre nosso objeto de pesquisa, qual seja, o discurso da CPLP sobre a língua portuguesa, faz sentido perguntar: pra que servem essas políticas e a quem servem?

É a língua portuguesa essa língua nacional, institucionalizada, organizada pelas gramáticas de Fernão de Oliveira e João de Barros (MARIANI, 2004, p. 26) que atravessa o Atlântico e entra nas colônias portuguesas americanas e africanas para impor a civilização ocidental, registrar/cunhar a cultura e garantir seu ensino e a catequese.

Essa gramática tem como lastro linguístico o modelo da estrutura da língua latina, língua de conquista e da ciência. E passa a se inscrever na memória dos povos colonizados pelo discurso que a produz como a língua prestigiada. Esse efeito de prestígio se constrói, dentre outras razões, porque essa língua se historiciza pelo processo de gramatização articulado à relação língua/nação, que se constrói com um Estado de direito, e

78 Cf. Payer (2006) trata da interdição das línguas dos imigrantes italianos enquanto parte da política de

silêncio em uma dada situação histórica brasileira que regulamenta a permanência de um sujeito estrangeiro no interior de uma nação, enquanto sujeito a se inscrever em uma posição discursiva coadunada à memória discursiva da nacionalidade brasileira (p. 37). A partir de sua reflexão, pensamos que a interdição das línguas nos países de colonização constituiu, da mesma maneira, uma política de silenciamento na tentativa de regulamentar a sujeição linguística desses povos estrangeiros à política de línguas da metrópole, sujeitando-os a se inscrever numa posição discursiva inscrita numa memória discursiva da nacionalidade da metrópole, em nosso caso, a portuguesa.

79 Observamos que não tomamos unificado como sinônimo de homogêneo, porque é possível pensar uma

unificação linguística sem, entretanto, apagar a diversidade. Mas, no caso dessas políticas públicas, acaba se produzindo essa sinonímia.

80 Do ponto de vista de quem produziu as políticas, foi bem-sucedido, pois tiveram o efeito procurado, o de

eliminar a diversidade de línguas. Mas olhando para os sentidos que até hoje reverberam na direção da existência de várias línguas num espaço onde deveria haver apenas uma, é possível significar, levando em conta os séculos de hegemonia dessas políticas de língua, as falhas nesse ritual, como, por exemplo, o real dessa diversidade que se inscreve como os múltiplos nomes e denominações das línguas.

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pela sua auto- e intersustentação com as outras línguas europeias pela noção de aparelho de línguas (BALIBAR, 1985; MARIANI, 2004).

A forma como a CPLP se constitui em espaço simbólico produzindo sentidos sobre políticas de língua permitiu-nos desenvolver uma discussão sobre língua portuguesa e sobre a questão da língua e suas políticas nos países de colonização portuguesa, dessa forma, dando visibilidade à tensão produzida entre a filosofia monolíngue dos Estados e da CPLP como Organização Internacional, e a diversidade linguística concreta naqueles países; consequentemente, questionar os modelos do monolinguismo e do multilinguismo, pensando essa questão numa escala supranacional. Essas duas formas materiais (linguístico-históricas) da unidade e da diversidade constituem-se pela tensão, posto que os efeitos de sentidos aí se produzem no jogo das contradições sócio-ideológicas a partir das posições discursivas de sujeito aí constituídas.

A CPLP surge como fruto do "consenso" originado por um processo "natural" que uniria os povos que partilham a "mesma língua portuguesa". Contrariamente ao que propomos, entendem a organização como uma "comunidade etnocultural", que sobreviria por uma evidência de "origem comum", pressupondo um vínculo social homogêneo que impede o real reconhecimento da diversidade, já que a concepção de diferença que aí se desenha está vinculada à ideia de "tradição", de "mesmo passado histórico", de "língua e origens comuns", apagando as contradições que caracterizam qualquer vínculo social (cf. RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2011; ORLANDI, 2011).

Essas políticas linguísticas desenhadas pela CPLP pela via de uma certa concepção de democracia81 e de certas políticas de inclusão se sustentam em noções como "etnicidade", "cultura", "tradição", "língua e passado comuns", configuradas no contexto do processo histórico de instituição das línguas nacionais promovido pelo Estado, processo no qual as línguas autóctones ficaram excluídas do aparato jurídico-administrativo em prol da unidade nacional construída em torno de uma língua oficial.

81 Querendo dizer com isso que, na verdade, não são políticas democráticas no sentido de reconhecimento da

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