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3. Do aporte teórico-metodológico

3.4. Sobre Interdiscurso

[…], a questão primordial cessa de ser a subjetividade produtora do discurso e torna-se a das formas de existência histórica da discursividade. (M. PÊCHEUX, Análise de discurso: Michel Pêcheux: Textos selecionados Eni P. Orlandi)

Partindo do pressuposto, como já vimos, de que o sujeito se constitui pela língua, e de que os sentidos são determinados pelo modo como o sujeito se inscreve na língua e na história, o conceito de língua com que se vai trabalhar será o de uma língua significante, em que os sentidos não estão nas palavras, mas sempre em relação a.

Se pensarmos o sujeito do discurso como aquele que está sujeito a equívocos, coberto de falhas e de esquecimentos, então podemos dizer que esse sujeito não consegue estabelecer um distanciamento entre ele e o discurso, que é um sujeito iludido do controle sobre o seu dizer, assujeitado e interpelado pela ideologia. E, para a AD, ideologia não é visão de mundo, nem falseamento da realidade, mas o modo de tornar evidente a interpretação sobre esse real, algo que se instala no dizer do sujeito como evidência materializada através do discurso. O trabalho da ideologia é um trabalho de memória e esquecimento, que faz com que o dizer e seus sentidos se tornem anônimos, lembrados e esquecidos como um já sempre-lá, produzindo efeitos de literalidade, de sentido sem história. O sujeito, no entanto, tem a ilusão de ser origem do dizer (esquecimento nº 1), como também ter domínio sobre o que diz (esquecimento nº 2).

Como já dissemos, os sentidos não têm origem nos sujeitos, posto que aqueles já estão determinados na(s) formação(ções) discursiva(s) em que o sujeito está inscrito. Em outros termos, o sujeito identifica-se na formação discursiva que o determina, filia-se a determinados sentidos e rejeita outros. É também dessa forma que sujeitos e sentidos – constitutivamente descontínuos em sua historicidade, divididos em sua constituição pelo inconsciente e marcados por uma incompletude – garantem, pela força do imaginário, uma aparente unidade, isso já efeito da ideologia.

Lembremos que as formações discursivas são constituídas por diferenças, contradições e confrontos, e também por laços. Estão em constante movimento, em um

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processo ininterrupto de reconfiguração, delimitando-se por um atravessar-se, aproximar-se e distanciar-se infinito. É dessa forma que sujeitos e sentidos constitutivamente descontínuos, incompletos, divididos produzem a unidade imaginária a que nos referimos.

Pêcheux (1997 [1975]) afirma que toda formação discursiva, pela aparente transparência de sentido que lá se constitui, dissimula sua dependência em relação ao "todo complexo com dominante" das formações discursivas, intrincadas no complexo das formações ideológicas (id. ibid., p. 162). Nesse ponto, Pêcheux (1997 [1975]) propõe chamar de interdiscurso esse "todo complexo com dominante" das formações discursivas (FD). Toda FD se constitui na relação com o interdiscurso, sendo este, portanto, o seu exterior específico. É importante observar que o interdiscurso é irrepresentável, mas seus efeitos estão representados na articulação porosa e complexa entre as formações discursivas.

A noção de interdiscurso pela noção de formação discursiva possibilita refletir sobre a relação tensa entre lembrar e esquecer (memória discursiva32). O interdiscurso se faz presente por efeito, já que é irrepresentável e ininterpretável, como nos lembra Orlandi (2004a). O interdiscurso para se representar precisa fazer-se discursividade, o que quer dizer que é preciso o encontro em estrutura e acontecimento (cf. PÊCHEUX, 2002) para constituir-se em forma material. Segundo Agustini, (2007, p. 305), ao "se fazer discursividade, o interdiscurso é recortado em unidades significantes, constituindo-se em memória discursiva. Portanto, a memória discursiva é constituída por aqueles sentidos possíveis de se tornarem presentes no acontecimento da linguagem

."

O efeito da presença do interdiscurso pela discursividade se materializa pelo intradiscurso, considerado o "fio do discurso" enquanto discurso de um sujeito. Entende-se que o intradiscurso assinala o funcionamento do discurso com relação a si mesmo (o que é enunciado agora, antes e depois). Nas palavras de Pêcheux (1997 [1975]), "o intradiscurso [...] é, a rigor, um efeito do interdiscursivo sobre si mesmo, uma 'interioridade' inteiramente determinada como tal 'do exterior'" (Pêcheux, 1997 [1975], p. 167).

Assim, mesmo parecendo que os dizeres e os sujeitos desses dizeres surgem do nada ou não se remetem a nada ou a ninguém, essas discursividades sempre apontam para

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um já-dito, um já-lá que aparece dissimulado pelo trabalho simbólico da ideologia. Por um efeito da forma-sujeito, o interdiscurso é absorvido/esquecido no intradiscurso, no qual se articula como "co-referência". Apaga-se, portanto, o fato de que só faz sentido porque já há sentido.

Dessa forma, a noção de interdiscurso não comporta a ideia de completude, como se todos os dizeres já estivessem lá contidos, nesse lugar que, na verdade, não é um lá empírico; não é do físico e do empírico que se trata quando se fala de interdiscurso, nem de uma memória como lugar de armazenagem, uma zona psicológica em que as experiências do sujeito estariam estocadas, como num banco de dados. Trata-se de uma noção que sustenta um efeito de presença do sentido que se produz no dizer do sujeito.

A noção de interdiscurso permite pensar como a produção de sentidos se dá, num processo sem sujeito e sem fim. É a partir dessa materialidade histórica incontável e incontível de discursos que permeiam as dimensões humanas (im)possíveis e (im)prováveis, que se pode refletir sobre materialidades discursivas que produzem efeitos de paráfrase e de polissemia, isto é, a repetição (o mesmo no diferente), e o deslocamento (o diferente no mesmo) (cf. ORLANDI, 1998, 2003).

A AD considera que o que é dito não depende só das chamadas intenções do sujeito, posto que a linguagem se caracteriza pela opacidade, pela não-transparência. Os sentidos não estão dados. Por isso, a análise não pode ser conteudística, os sentidos não estão na superfície do texto. Nesse processo, o gesto do analista deve ser buscar compreender o modo como o texto faz para dizer o que diz.

Esses sentidos também não estão nas palavras em si, mas nas relações estabelecidas entre elas, que remetem não só ao contexto imediato, mas também aos contextos em que os outros discursos foram produzidos, os contextos sócio-histórico- ideológicos. Os sentidos têm relação com a exterioridade do texto, com o interdiscurso, com outros discursos, com a memória discursiva – o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído33.

33 "[…] questão teórica e amigável" que Michel Pêcheux levou a efeito com Paul Henry" (MALDIDIER,

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A noção de pré-construído "fornece a ancoragem linguística da tomada do interdiscurso" (MALDIDIER, 2003, p. 34), pois trata diretamente das relações entre sintaxe e semântica, colocando a questão mesma em que "o discurso se articula sobre a língua" (id., ibid., p. 35), possibilitando a relação do discurso ao 'já-ouvido', ao 'já-lá'. Essa noção permite pensar, afastados de uma interpretação logicista, as construções sintáticas fora de uma concepção subjetiva de língua, e a forma como se materializam nessas construções "traços de construções anteriores, de combinações de elementos da língua, já 'ousados' em discursos passados e que tiram daí sua evidência". (loc. cit.), o já-dito, aquilo que corresponde ao "sempre-já-aí" da interpelação ideológica que 'fornece/impõe' a "realidade". É dessa forma que o interdiscurso afeta o modo como o sujeito produz sentido (ORLANDI, 2003b).

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