• Nenhum resultado encontrado

3. Do aporte teórico-metodológico

3.3. Sobre Sujeito e Língua

O sujeito é sempre, e ao mesmo tempo, sujeito da ideologia e sujeito do desejo inconsciente e isso tem a ver com o fato de nossos corpos serem atravessados pela linguagem antes de qualquer cogitação. (P. HENRY, A ferramenta imperfeita)

63

Os conceitos de sujeito e língua, muito caros à Análise de Discurso (AD), são fundamentais para pensar a relação linguagem-mundo, epistemologicamente. São conceitos construídos num espaço de intermediação e de ruptura que permeia as ciências humanas e comporta um discurso que inexoravelmente escapa ao modo de fazer ciência não materialista, porque, ao mesmo tempo, concentra, confunde e imbrica questões relativas ao sujeito, à língua e à história. Língua e sujeito se produzem numa materialidade histórica em que intervêm, estruturalmente, a ideologia e o inconsciente.

No escopo da AD, consideramos que sujeito, língua e história estão em relação em suas constituições e de forma complexa. Dizemos que o sujeito discursivo é um sujeito afetado pela língua, interpelado pela ideologia, determinado pelo inconsciente e inscrito na história. Nas palavras de Orlandi (2007b), "se é sujeito pela submissão à língua, na história. Não se pode dizer senão afetado pelo simbólico, pelo sistema significante. Portanto não há sujeito nem sentido sem o assujeitamento à língua", ou seja, "o sujeito está sujeito à (língua) para ser sujeito da (língua)". Submetemos-nos à língua num processo de subjetivação, posto que, antes de nascermos, já estamos imersos no processo discursivo em funcionamento na sociedade. Assim, falamos do sujeito como efeito de linguagem; sujeito constituído por linguagem que foi falado antes de (se) falar, marcado pelo discurso do Outro/Sujeito. Essa designação Outro/Sujeito em maiúscula é retomada de Lacan e de Althusser que "cada um a seu modo – deram (adotando deliberadamente às formas travestidas e "fantasmagóricas" inerentes à subjetividade) do processo natural e sócio- histórico pelo qual se constitui-reproduz o efeito-sujeito como interior sem exterior, e isso pela determinação do real (exterior), e especificamente – acrescentaremos – do interdiscurso como real (exterior) (PÊCHEUX, 1997 [1975], p. 163 – grifos do autor)."

Esse processo produz um efeito, que é o efeito ideológico elementar, pelo qual, o sujeito, sendo sempre-já sujeito (ALTHUSSER, 1985 [1976]), considera-se a origem do seu dizer. Pêcheux (1997 [1975], p. 154), a esse efeito, chama de "pequeno teatro teórico da interpelação", designando o paradoxo "pelo qual o sujeito é chamado à existência". Dessa forma, ao propor o deslocamento que faz intervir a ideologia na relação com a linguagem, Pêcheux (1997 [1975]) aponta que "o teatro da consciência (eu vejo, eu penso, eu falo, eu te

64

vejo, eu te falo, etc.) é observado dos bastidores, lá de onde se pode captar que se fala do sujeito, que se fala ao sujeito, antes de que o sujeito possa dizer : 'Eu falo'" (id., ibid., p.154 – grifos do autor).

Pensando numa teoria não subjetiva da subjetividade, Pêcheux procura esclarecer a relação entre inconsciente e ideologia para marcar que "o recalque inconsciente e o assujeitamento ideológico estão materialmente ligados, sem estar confundidos, no interior do que se poderia designar como o processo do Significante na interpelação e na identificação" (PÊCHEUX, 1997 [1975], p. 133-134 – grifos do autor). Nessa reflexão, ao dar visibilidade ao "processo pelo qual se realiza o que chamamos as condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção", Pêcheux permite-se (sem garantias31) a tarefa de "fundar, em seu princípio, a teoria (materialista) dos processos discursivos" (id., ibid., p. 134).

Tomar, dessa forma, para a linguagem, considerando a ideologia, a história e o sujeito, implica pensar o centro das relações de linguagem de outro ângulo. Nessa perspectiva discursiva, não é mais a língua o objeto de estudo, e sim o discurso, porque, como nos diz Orlandi, o que está no cerne são "as relações de sujeitos e de sentidos, e seus efeitos são múltiplos e variados" (ORLANDI, 2003, p.21). O que está em jogo é o discurso definido como efeito de sentido entre locutores, '"efeito de sentidos' entre os pontos A e B" (PÊCHEUX, 1997a [1969], p. 82).

O discurso é concebido, segundo Pêcheux (1997b [1975], p. 179), como um "processo social cuja especificidade reside no tipo de materialidade de sua base, a saber, a materialidade lingüística", ou seja, o discurso não prescinde da língua, mas também não se limita às suas regras internas. Em outro texto, Pêcheux (2011 [1990]) assinala que a língua natural, dentro dos espaços discursivos não estabilizados logicamente (mormente os espaços do filosófico, do sócio-histórico, do político, do estético e dos múltiplos registros do cotidiano), "não é uma ferramenta lógica mais ou menos falha, mas sim o espaço privilegiado de inscrição de traços linguageiros discursivos, que formam uma memória

31 Ele nos diz "Isso não significa, entenda-se bem, que o desenvolvimento que procuraremos efetuar agora

65

sócio-histórica. É esse corpo de traços que a análise de discurso se dá como objeto" (id., ibid., p. 146).

O discurso tem sua ordem própria, e, pensado como tal, distingue-se da língua, mas a supõe como base material. Os sentidos se produzem enquanto efeitos nessa ordem. E, nela também, os sujeitos se significam e fazem significar.

O discurso tem a língua como condição de possibilidade, lugar de sua materialidade. De outra forma dito, a língua constitui a superfície material em que se efetivam os processos discursivos, nos quais se produzem os efeitos de sentido.

Dessa forma, a língua, para a AD, não funciona como um código de comunicação transmitindo informações e sendo manipulada conscientemente de acordo com a vontade ou o desejo do falante, não traz sentidos pré-fixados e estes não vêm "grudados" às palavras. Propõe-se a língua relacionada à exterioridade, constituindo sujeitos e sendo constituída para/por eles nas situações sócio-históricas específicas. Essa língua não é transparente, óbvia, clara. Sua materialidade é furada, cheia de equívocos e ambiguidades. O caráter abstrato da língua, o conceito de sistema fechado de regras que deixa de fora o que é exterior característico dos moldes estruturalistas, na AD, dá lugar à materialidade linguística, isto é, o lugar material onde o sujeito, o sentido e o espaço (como tem proposto Rodríguez-Alcalá) constituem-se inseparavelmente na história, lugar também onde a ambiguidade e o equívoco são elementos constitutivos. A língua permite, então, a comunicação e a não-comunicação, "isto é, autoriza a divisão sob a aparência da unidade, em razão do fato de não se estar tratando, em primeira instância, da comunicação de um sentido" (PÊCHEUX, 1997 [1975], p. 93 – grifos do autor).

Assim, a AD ao estabelecer uma noção de língua não-asséptica, não linear, incompleta, mobiliza a noção de sujeito – afastando-se daquele da linguística, da pragmática, do do materialismo subjetivo, do empirismo –, já que não há como o sujeito não se inscrever na construção do texto oral ou escrito, enunciando de determinada posição imaginária, sendo atravessado pela ideologia e pelo inconsciente. Consoante Régine Robin (1973, apud PÊCHEUX, 1997b [1975], p. 81)

A lingüística do discurso não conseguiu operar o descentramento do sujeito do discurso porque ela não conseguiu integrar nem o sujeito

66

ideológico do materialismo histórico nem o sujeito psicanalítico à sua teoria do sujeito.

Como já dissemos, o dispositivo teórico-analítico da Análise de Discurso faz a crítica à leitura idealista que supõe que o sujeito exista aprioristicamente. Esse efeito de sentido produzido está sustentado pelo "pequeno teatro teórico da interpelação" citado anteriormente, em que o sujeito é marcado por um "eu", racional, soberano, consciente, autônomo e livre para escolher, único, idêntico a si mesmo, coerente e responsável. A essa leitura, opõe-se a de um sujeito pensado como efeito e como posição, descentrado, marcado por uma divisão subjetiva, estruturado pelo inconsciente e interpelado pela ideologia.

Pela evidência de que se é sujeito apaga-se o fato de que: os indivíduos são sempre-já sujeitos, e de que para serem sujeitos são desde-sempre interpelados ideologicamente, não se percebendo constituídos pelo Outro/Sujeito (ALTHUSSER, 1985 [1976]). Essas são duas evidências relacionadas à ilusão de que a linguagem é transparente e de que há, portanto, a literalidade dos sentidos, e de que o sujeito é a origem do que diz e, portanto, pode controlar seu dizer. Assim, o processo ideológico de interpelação do indivíduo em sujeito produz o apagamento necessário da inscrição da língua na história para que, ao significar, o sujeito siga produzindo o efeito de evidência do sentido (o sentido-lá) e a ilusão de que é senhor do que e como diz.

Mas essas são ilusões necessárias que constituem o sujeito. Conforme Pêcheux (1997 [1975]), o sujeito se esquece das determinações históricas que o levaram a ocupar determinado lugar na formação social em que se inscreve. Observa, ainda que

o caráter comum das estruturas-funcionamentos designadas, respectivamente, como ideologia e inconsciente é o de dissimular sua própria existência no interior de seu funcionamento, produzindo um tecido de evidências 'subjetivas', devendo entender-se este último adjetivo não como 'que afetam o sujeito', mas 'nas quais se constitui o sujeito'. (id., ibid., p. 152).

Pêcheux, ao buscar compreender o funcionamento dessa ilusão, formula sobre o processo de desconhecimento como o efeito do real sobre si mesmo, que produz a forma- sujeito fornecendo-impondo a 'realidade' ao sujeito sob a forma da ficção. O

67

desconhecimento se funda sobre o reconhecimento, e "é nesse reconhecimento que o sujeito "esquece" das determinações que o colocaram no lugar que ele ocupa" e que o constituíram como tal.

Apoiando-se na releitura do conceito de Freud sobre o inconsciente, Pêcheux vai formular sobre o esquecimento, diferenciando-os em dois. Diz-nos Pêcheux (1997 [1975]) que o esquecimento nº 1 diz respeito ao fato de que o sujeito ao tomar a palavra o faz do interior da formação discursiva, nunca do seu exterior, posto que não há dizer que não aponte para outros. Com relação ao esquecimento nº 2, ele nos diz que o sujeito "seleciona" enunciados no interior da formação(ões) discursiva(s) que o determinam.

Em torno do esquecimento nº1, Pêcheux nos esclarece que o exterior da formação discursiva fica ocultado para o sujeito que se encontra sob sua dominância, e isso se dá de tal forma que "todo acesso a esse exterior pela reformulação lhe seja proibido por razões constitutivas referentes às relações de divisão-contradição que atravessam- organizam o 'todo complexo das formações discursivas', em um momento histórico dado" (id., ibid., p. 176-177). Nesse sentido, o sujeito não tem uma saída para fora da ideologia, porque ele não é tomado como um ponto de partida.

Ao mascararmos o objeto daquilo a que denominamos esquecimento nº 1, pelo esquecimento nº 2, temos o efeito da forma-sujeito do discurso, ou seja, a constituição do imaginário linguístico, a que estão relacionadas as evidências. A partir desse ponto, o autor passa a uma nova representação do esquecimento nº 2, definido como aquele que "cobre exatamente o funcionamento do sujeito do discurso na formação discursiva que o domina, e que é aí, precisamente, que se apoia sua 'liberdade' de sujeito falante" (id., ibid., p. 175, grifos do autor). Sendo de caráter pré-consciente ou semiconsciente, o sujeito acredita que, ao 'selecionar' privilegiando algumas formas, ao invés de outras, tem a ilusão de que o que diz tem apenas um significado e de que, assim como ele, o outro entenderá seu dizer. Assim como os outros do discurso que determinam seu dizer não são percebidos pelo sujeito, assim também ele não percebe a falta de controle que tem sobre os efeitos de sentido que seu dizer provoca.

Orlandi (2004a) formula sobre as duas formas de esquecimento postuladas por Pêcheux, dizendo-nos que: "o esquecimento ideológico [o esquecimento nº 1] [...] é da

68

instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia. Por esse esquecimento temos a ilusão de sermos origem do que dizemos, quando, na realidade, retomamos sentidos pré-existentes" (id., ibid., p. 35); os sentidos "são determinados pela maneira como nos inscrevemos na língua e na história e é por isto que significam e não pela nossa vontade" (id. ibid., p. 35). Com relação ao esquecimento nº 2, considera-o da ordem da enunciação, como um esquecimento parcial, uma ilusão referencial que dá a impressão de que há uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo, atestando que o modo de dizer não é indiferente aos sentidos.

Ainda sobre sentidos, em Pêcheux (1997 [1975]), lê-se que é no espaco da formação discursiva que o sentido se constitui, e que é aí, nesse lugar, que "efetua-se o acobertamento do impensado (exterior) que o determina. Segundo Pêcheux (1997 [1975]), as palavras mudam de sentido consoante as "posições ideológicas" daqueles que as tomam. Os efeitos de sentidos produzidos a partir dessas posições e as próprias posições estão referidos às condições de produção sócio-históricas nas quais os sujeitos estão inscritos para serem sujeitos de seu dizer. É, assim, que ele observa,

poderíamos resumir essa tese dizendo: as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem (Pêcheux, 1997 [1975], p. 160 – grifos do autor).

A formação ideológica tem sua materialidade na(s) formação(ões) discursiva(s) que, de acordo com Pêcheux, define-se como "espaço de reformulação-paráfrase onde se constitui a ilusão necessária de uma 'intersubjetividade falante' pela qual cada um sabe de antemão o que o 'outro' vai pensar e dizer" (PÊCHEUX, 1997 [1975], p. 172). Ou, ainda, como (uma de suas definições mais conhecidas),

aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito" (articulado sob a forma de uma arenga (sic), de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de uma programa, etc.) (PÊCHEUX, 1997 [1975], p. 160 – grifos do autor).

69

Sabemos que uma formação ideológica pode comportar uma ou mais formações discursivas (FD), que, com ela e entre si, se relacionam por terem limites porosos, determinando assim os sentidos. "Uma formação discursiva [...] é constitutivamente 'invadida' por elementos que vêm de outro lugar (isto é, de outras FD) que se repetem nela, fornecendo-lhe suas evidências discursivas fundamentais" (PÊCHEUX, 1997c [1983], p. 314). Essas fronteiras porosas das FDs que se limitam dão fluidez e instabilidade aos dizeres; os discursos que as atravessam têm seus sentidos em movimento de acordo com uma conjuntura sócio-histórica dada, com uma formação ideológica predominante.

Observamos que sujeito e sentido se constituem de forma imbricada, contínua e na mesma temporalidade, o que permite dizer que estão sempre em movimento na materialidade da história. E é por essa metáfora do movimento que a história é interpretada como o lugar da possibilidade e da contingência. Do contrário, nem o real da língua estaria sujeito à falha e nem o real da história, passível de ruptura. Há um movimento contínuo do simbólico se inscrevendo na história, fazendo com que os acontecimentos ganhem (ou não) sentidos por/para o sujeito, isto é, historicizem-se.

A AD trabalha na produção de sentidos que são naturalizados, querendo saber como se dão seus efeitos. E é na relação entre a linguagem e a história que se produzem os efeitos de sentido. E como o homem é um ser simbólico, o evento para ele só vira história se passar pela linguagem, se for interpretado. E esse movimento incessante e incontornável da materialidade do sujeito a interpretar a materialidade da história é trabalho de linguagem. E é "como trabalho, como produção", que Orlandi (1998, p.17) concebe linguagem e considera "o modo de produção da linguagem enquanto parte da produção geral". A linguagem é um "trabalho simbólico", é "ação que transforma", nos diz a autora.

Esse novo conceito de linguagem transpõe os níveis sintático e pragmático de análise e dá conta da exterioridade constitutiva do discurso, do contexto sócio-histórico, da ideologia, da memória discursiva e da mobilização dos sentidos. Essa linguagem se manifesta como língua na materialidade linguística do texto.

70

Documentos relacionados