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2. APORTES METODOLÓGICOS NA ANÁLISE DE FILMES

2.2. A Narratologia Fílmica e seus pressupostos

A “narratologia fílmica”, como afirmam Gaudreault e Jost (2009, p. 23), é a técnica de pesquisa que estuda as narrativas, estas, por sua vez, correspondem às diversas “...

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formas de expressão por meio das quais alguém conta algo”. Existem vários tipos de narrativas: orais, escritas (literárias), iconográficas (pintura, fotografia, quadrinhos etc.), e, também, as narrativas audiovisuais (o cinema, a televisão, as animações etc.). Diante disto, a “narratologia fílmica”, ou, de forma mais específica, a “narrativa modal”, como apontam os autores, “... ocupa-se antes da história contada, das ações e dos papéis dos personagens, das relações entre os actantes”.

Os quatro elementos fundamentais para se realizar a análise de um filme, sob a ótica da narratologia fílmica, como destacam Gaudreault e Jost (2009), são estes a seguir:

- Enunciação e narração: Gaudreault e Jost (2009, p. 58-59) apontam que existem diversas acepções para o termo “enunciação”, mas, no sentido mais amplo, pode ser entendida como “... as relações que se estabelecem entre o enunciado e os diferentes elementos que constituem o quadro enunciativo”. Os referidos elementos são os protagonistas do discurso, emitente(s) e destinatário(s), e a situação de comunicação. A “enunciação” é o processo de comunicação que se estabelece em uma obra fílmica, entre os emitentes de um discurso, o diretor e o roteirista, que utilizam de um narrador, para lhes servir de porta- vozes, e, na outra ponta, o destinatário, o espectador do filme. A partir da enunciação se constrói a narração, e cabe ao pesquisador, identificar o narrador principal, os secundários, e analisar como se desenvolvem os seus papéis narrativos na obra. De certo modo, este fundamento da “narratologia fílmica” se assemelha ao terceiro fundamento da “análise fílmica”, o “dispositivo narrativo”, discutidos por Vanoye e Goliot-Lété (1994). A diferença é que a abordagem de Gaudreault e Jost (2009) apresenta uma divisão mais detalhada, apontando que existe “narração e subnarração”, que existem diferentes níveis de construção da narrativa, diferentes graus de importância dos narradores em um filme. E é também função do pesquisador identificar essas relações, hierárquicas e ou anárquicas, convergentes e ou conflitantes, entre os diferentes narradores.

- O espaço da narrativa cinematográfica: Gaudreault e Jost (2009, p. 105-107) são enfáticos quanto à dimensão espacial nos filmes, “A unidade básica da narrativa cinematográfica, a imagem, é um significante eminentemente espacial”. O espaço, segundo a perspectiva da “narratologia fílmica” é um dos elementos principais de um filme, já que, “Em uma narrativa fílmica, realmente, o espaço está, em quase todas as vezes, presente. Ele é, em quase todas as vezes, representado”. Os autores defendem a premissa de que todo

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filme traz consigo uma “identidade espacial” própria, e cabe ao pesquisador analisar esta identidade. É preciso definir e discutir qual a escala de representação que o filme utiliza (global, regional ou local), quais os tipos de ambientes utilizados no filme, mais ambientes internos ou externos, se nos ambientes externos há alguma alteração paisagística e arquitetônica realizada especificamente para o filme. O “espaço fílmico” não é um espelho da realidade, mas também não é algo irreal, algo não factível de ocorrer na realidade vivida. A análise deste “espaço fílmico” deve integrar as escalas geográficas que o filme apresenta, as relações sócioespaciais, os atores que as realizam, os conflitos territoriais e, de uma forma geral, como um determinado filme constrói a sua identidade espacial, como esta identidade se apresenta na análise do pesquisador.

- Temporalidade, narrativa e cinema: A temporalidade de um filme, e sua relação com a narrativa, diz respeito a três abordagens temporais distintas e complementares, como destacam Gaudreault e Jost (2009). A primeira diz respeito ao tempo histórico do filme, em que momento histórico o filme é ambientado, no passado, como ocorre em filmes de época, no presente, como nos filmes contemporâneos, ou no futuro, como nas obras de ficção científica. No caso desta Tese os filmes escolhidos são contemporâneos, são ambientados no presente, e tratam de questões sócioespaciais vigentes. A segunda questão é quanto à duração temporal da narrativa, em quanto tempo a narrativa se desenvolve, em várias décadas, em alguns anos, alguns meses, ou até mesmo em poucos dias. Em terceiro lugar, a temporalidade se relaciona com a velocidade da narrativa, considerando que há filmes que utilizam de uma linguagem narrativa mais lenta, com poucos eventos de virada dramática, e há outros com uma narrativa mais dinâmica, com um ritmo mais acelerado de ações e reviravoltas dramáticas. É preciso identificar e discutir estas três temporalidades no filme, relacionando-as com as questões espaciais do filme.

- O ponto de vista: Este aspecto está diretamente relacionado com o “dispositivo narrativo” e com a “enunciação e narração”. Já se falou que um filme tem um ou vários narradores, e que cada um desses expõe um determinado ponto de vista sobre a narrativa que se desenvolve. Há um narrador preponderante na narrativa fílmica, e o ponto de vista deste será o ponto de vista geral de um filme sobre uma dada realidade. Identificar este narrador principal, e o seu ponto de vista, é identificar também, de maneira indireta, os pontos de vistas dos criadores da obra, mais particularmente do roteirista e do diretor. Por ocasião dos lançamentos dos filmes, os criadores costumam conceder entrevistas de divulgação, e,

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nessas entrevistas, muitas vezes expõem de forma clara quais os seus pontos de vista e as suas intenções, que podem não estar tão evidentes a um primeiro olhar do espectador. Outros cineastas, por outro lado, preferem não comentar e nem analisar sua própria obra, e aí cabe ao pesquisador chegar às suas próprias conclusões a respeito do ponto de vista.

O Quadro 8, a seguir, apresenta uma síntese dos oito aspectos metodológicos a serem utilizados nas análises dos filmes, aspectos ligados à “análise fílmica” e à “narratologia fílmica”. A questão da intertextualidade, o elemento adicional, não está incluído no quadro, mas será abordado nas análises, como já foi informado.

Análise fílmica Vanoye e Goliot-Lété (1994)

Elaboração de um resumo do filme. Segmentação do filme em grandes atos. Discussão sobre o dispositivo narrativo. Análise da organização espacial da narrativa.

Narratologia fílmica Gaudreault e Jost (2009)

Análise da enunciação e narração. Discussão sobre o espaço da narrativa. Delimitação da temporalidade no filme. Discussão sobre o ponto de vista da obra.

80 3. O ESPAÇO PÚBLICO DE SALVADOR

O espaço público na atualidade, de acordo com Mendonça (2007, p. 129), é, sobretudo, o espaço de acesso público tutelado e regulado pelo poder público, como ruas, praças e parques. São espaços que, ao menos em tese, são regidos por uma apropriação democrática, e expressam a heterogeneidade socioeconômica e cultural da sociedade, pois são acessados pretensamente por todos, de maneira indistinta. A autora aponta que, existem também diversos espaços públicos que pertencem à propriedade privada, como shoppings, bares, restaurantes etc., que são de acesso público. No entanto, apesar de serem públicos, estes “enclaves fortificados” contradizem o ideal de heterogeneidade, são espaços seletivos financeiramente e segregadores culturalmente.

Para Sobarzo (2006), o espaço público expressa, em suas tensões e conflitos, o embate entre público e privado, entre poder político estabelecido, regulando seu uso e acesso, e poder econômico, interferindo nas dinâmicas urbanas. Estes embates acabam interferindo nas práticas cotidianas, influenciando nas formas como os diferentes grupos sociais acessam e se apropriam do espaço público. A subversão de normas regulatórias do uso do espaço público, de maneira inadvertida, pode se dar tanto por parte de grandes grupos econômicos, como hotéis e resorts que privatizam praias e outros ambientes públicos, quanto por pequenos grupos sociais, como certas entidades religiosas que realizam cultos em praças das grandes cidades.

A cidade contemporânea está cada vez mais permeada de espaços que são pretensamente públicos, mas que, nas práticas cotidianas são na verdade “espaços concebidos e implementados para um tipo específico de público”, como informa Serpa (2004, p. 34). A valorização imobiliária de certos locais nas grandes cidades, mediada pelo poder público e realizada por grandes grupos econômicos, pode, muitas vezes, inibir ou mesmo inviabilizar a “apropriação social do espaço público no contexto urbano”. Poder público e poder econômico se entremeiam neste processo, e as políticas públicas tendem a valorizar ainda mais locais que já são valorizados urbanisticamente, pelo simples fato de que esses locais tendem a gerar mais retorno financeiro aos grupos econômicos e maior recolhimento de impostos ao poder público. A cidade se configura em um lócus de embate entre propriedade privada e pública, entre as demandas sociais de uma maioria da população e os interesses financeiros de grupos específicos.

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O espaço público é um tema que muitas vezes não é plenamente compreendido, até mesmo por geógrafos que não trabalhem diretamente com este tema. Muitos não têm uma visão precisa do que sejam espaço público e espaço privado, quais as suas semelhanças e diferenças. Diante disto, antes de desenvolver uma apresentação sobre o espaço público de Salvador/BA, é interessante apresentar uma tipologia básica e sintética sobre espaços públicos e espaços privados, delimitando as especificidades de cada um. O trabalho de Castro (2002) discute a questão do espaço público urbano, e aponta que a maioria das pessoas considera espaço público apenas os espaços pertencentes ao poder público de acesso irrestrito à população. A autora aponta que esta definição é errônea, pois, na verdade, espaço público, seja ele de propriedade do poder público ou de propriedade privada, é todo o espaço de acesso irrestrito ao grande público.

Castro (2002), referendada em diversas leituras, aponta que existem espaços públicos e espaços privados, e, para ambos os casos, espaços de acesso amplo e irrestrito e outros de acesso limitado e restrito. Como espaço público de propriedade pública e acesso irrestrito temos a maioria dos espaços urbanos: ruas, praças, parques e órgãos públicos em geral. O espaço público de propriedade pública e acesso restrito pode ser exemplificado pelas bases militares, apenas os engajados nas Forças Armadas podem acessá-los, os civis podem acessar estes espaços desde que tenham uma finalidade específica e uma autorização prévia. Os espaços públicos de propriedade privada e acesso irrestrito são aqueles que, mesmo pertencendo a uma pessoa física e ou jurídica, pode ser acessado pelo grande público: igrejas, templos, terreiros de Candomblé, bares, restaurantes, shopping centers e outros. Em tese, nenhuma pessoa pode ser impedida de frequentar livremente estes locais, sob pena de receber processo por discriminação.

Ainda de acordo com Castro (2002), os espaços privados são, por motivos óbvios, de propriedade privada e acesso restrito: as residências da maioria das pessoas, os condomínios fechados, os clubes, as empresas privadas, as sociedades fechadas, como a Maçonaria, por exemplo, e outros. Nestes espaços privados só têm acesso aqueles que têm alguma veiculação parental (casas e condomínios), institucional (clubes e empresas) e ou cultural (Maçonaria). No intuito de sintetizar as questões pontuadas desde o início deste capítulo, o autor da Tese elaborou o Quadro 9, apresentado a seguir:

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Espaço Propriedade Acesso Exemplos

Público Pública Irrestrito Ruas, praças, parques e órgãos públicos em geral. Público Pública Restrito Bases militares.

Público Privada Irrestrito Entidades religiosas, bares, restaurantes e shoppings.

Privado Privada Restrito Casas e condomínios, clubes e empresas, Lojas Maçônicas etc.

Quadro 9: Síntese comparativa dos espaços públicos e privados, suas especificidades de acesso.

Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Castro (2002).

A cidade de Salvador é uma das mais antigas do Brasil, e foi também, por mais de duzentos anos, a primeira Capital Federal, entre 1549 e 1762, como informam Andrade e Brandão (2009). Em 1501, um ano após a chegada dos portugueses a Porto Seguro, no sul da Bahia, o navegador italiano Américo Vespúcio descobriu a Baía de Todos os Santos, e o sítio geográfico no qual viria ser implantada a cidade de Salvador. Deste referido ano, até 1548, a antiga Vila de São Salvador da Bahia de Todos os Santos funcionou como um ponto estratégico de chegada das navegações portuguesas. Em 1548, o então Rei de Portugal, Dom João III, ordenou ao fidalgo Tomé de Souza a construção de uma fortaleza para resguardar a entrada da baía, o Forte São Marcelo, e ordenou também o povoamento desta região. Um ano depois Salvador era erigida a primeira capital do país, a Figura 4 apresenta uma planta da cidade, datada de 1605, que mostra sua configuração inicial.