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A natureza constitucional dos direitos relativos à Propriedade

No documento Almir Garcia Fernandes.pdf (páginas 70-76)

Segundo Barbosa, não são todas as constituições que incorporam aos seus textos básicos a proteção aos bens da Propriedade Industrial, destacando que a Constituição Brasileira é uma das poucas que se abre para a proteção de outros direitos relativos à Propriedade Intelectual.207

Ainda, o legislador brasileiro vai além quanto à propriedade de bens imateriais, pois tanto o texto constitucional, em seu artigo 5º, XXIX, quanto o artigo 2º, da Lei 9.279/1996, indicam que a proteção dos direitos relativos à propriedade industrial deve considerar o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.

Evidencia-se assim que além do direito de propriedade inerente ao titular desses bens, também se mostram presentes interesses públicos e metaindividuais208. Há, portanto, na proteção dos bens da propriedade industrial uma dimensão ao mesmo tempo pública e privada. Exemplificando esse raciocínio, destaca-se o seguinte trecho, do julgamento da Corte Americana, no caso Motion Picture Patents Co. v. Universal Film Co., 243 U.S. 502 (1917):

205 SZIMD, Rafael. Interfaces entre Direito Concorrencial e Propriedade Industrial. Revista do IBRAC. Direito da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional. Ano 18 v. 19, jan-jun/2011. p. 297-338.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 301.

206 Segundo FIGUEIREDO, Leonardo: “Por mercado relevante entende-se o espaço no qual dois ou mais agentes privados, concorrentes entre si, vão aplicar seus respectivos mecanismos e disputar consumidores. Para tanto, podem se valer de diversos instrumentos, tais como campanhas publicitárias, pesquisa tecnológica para fins de baratear o custo operacional e melhorar a qualidade dos bens ofertados, dentre outros. Conforme entendimento da autoridade concorrencial brasileira, mercado relevante se trata do espaço da concorrência. Diz respeito aos diversos produtos e serviços que concorrem entre si, em determinada área, em razão da sua substitubilidade naquela área.” Ibidem, p. 297.

207 Segundo o Autor: “Não é em todo sistema constitucional que a Propriedade Intelectual tem o prestígio de ser incorporada literalmente no texto básico. Cartas de teor mais político não chegam a pormenorizar o estatuto das patentes, do direito autoral e das marcas; nenhuma, aparentemente, além da brasileira, abre-se para a proteção de outros direitos.” BARBOSA, Denis. Tratado da Propriedade Intelectual, p. 227.

É indiscutível que o monopólio temporário e limitado outorgado aos inventores jamais foi elaborado para [garantir] o lucro ou vantagem exclusiva a eles; o benefício ao público ou comunidade em geral foi outro e sem dúvida nenhuma o propósito principal de outorgar e assegurar tal monopólio.209

Essa afirmativa significa que o Direito da Propriedade Industrial está plenamente inserido em um ambiente, não só de proteção aos direitos de propriedade de seus titulares, mas também de relações harmônicas de mercado e de garantia de direitos fundamentais210.

Tal fato se explica, porque não somente os bens da propriedade industrial, mas em uma escala mais ampla, a própria “propriedade intelectual, em sua essência, é uma medida de fundo econômico, não havendo direito natural aos bens intelectuais. O próprio investimento realizado na criação de determinado bem seria dissipado, caso houvesse liberdade para que fosse copiado.”211

Há, desse modo, uma aproximação da tutela constitucional da Propriedade Industrial com os preceitos de proteção ao mercado e à própria concorrência, previstos igualmente no texto constitucional, reservando-se ao Estado o poder de fiscalizar e de incentivar as atividades econômicas como agente normativo e regulador.

É relevante mencionar que, mesmo sendo institutos de previsão constitucional e tutelas específicas, surge uma tensão natural entre a exploração da propriedade industrial, que demanda restrições àqueles que não possuem o direito de explorá-los, em contrapartida com a liberdade de iniciativa demandada pela proteção da concorrência.

Tais conflitos tornaram-se evidentes, principalmente a partir de 1964, com as discussões quanto à transferência de tecnologia em pauta, nas Nações Unidas. “A resolução brasileira e o relatório dela resultante deflagraram um debate internacional sem precedentes sobre o sistema de PI e, mais particularmente, sobre o papel das patentes na transferência de tecnologia para os países em desenvolvimento.”212

Essas discussões remetiam a um ponto polêmico que nunca deixou de ser pauta no cenário internacional, qual seja, a ideia de que o sistema de patentes poderia gerar monopólios para seus titulares e as consequências disso perante o desenvolvimento econômico e das relações de mercado.

209 BARBOSA, Dênis; GRAU-KUNTZ, Karin; BARBOSA, Ana. Ibidem, p. 25. 210 Ligados à dignidade humana no que diz respeito às orientações mercadológicas.

211 VIEIRA JÚNIOR, Walter Pinto; FREITAS, Riva Sobrado de. Proteção Constitucional da Propriedade Industrial e seus paradoxos ante a possibilidade de quebra de patente amparada pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Anais do Seminário Nacional de Dimensões Materiais e Eficaciais dos Direitos

Fundamentais. Disponível em:

<http://editora.unoesc.edu.br/index.php/seminarionacionaldedimensoes/article/view/909, p. 333. Acesso em 20 de novembro de 2014>. Acesso em 20 nov. 2014.

Com a criação do Acordo sobre Aspectos do Direito da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) e da Organização Mundial da Propriedade Industrial (OMPI), no final do século XX, vislumbrou-se um entendimento entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, estabelecendo regras de utilização de patentes, entretanto, ainda hoje, aventa-se o impacto da proteção dos bens da Propriedade Industrial, no Desenvolvimento Econômico dos países em desenvolvimento.

Tal episódio ficou visível, em setembro de 2004, com a proclamação da Declaração de Genebra sobre o Futuro da OMPI. Segundo Straus:

A declaração afirma que a OMPI por anos reagiu predominantemente “aos interesses mesquinhos de editoras, indústrias farmacêuticas, agricultores e outros interessados comerciais”. Agora deve tratar das necessidades fundamentais da proteção ao consumidor e dos direitos humanos: “os interesses dos pobres, doentes, deficientes visuais e outros, há tanto negligenciados, devem ter prioridade.”213

Isso exigiu uma reformulação no modo de pensar a exploração da Propriedade Industrial, dando- lhe um enfoque humanístico não observado em outros tempos. Justamente essa reformulação não encontrou pontos pacíficos, “sobretudo por conta da, muitas vezes, conflituosa reação entre os interesses coletivos e individuais que elas se propõem a equacionar, no que resulta um imenso contencioso judicial que vem sendo travado perante nossos tribunais.”214

Por outro lado, não somente a Propriedade Industrial passa por um período de reformulação e adaptação às questões ligadas à proteção de direitos fundamentais nas relações privadas, mas também o próprio Direito Constitucional acabou por sofrer transformações em suas bases, a partir do final do século XX e início do século XXI, que não eram vivenciadas em períodos anteriores.

Essas mudanças ligaram-se à possibilidade de interferência do Estado nas relações privadas, para a garantia do exercício de Direitos Humanos, que atualmente, no “direito constitucional, consistem esses direitos na sua própria razão de ser”215, portanto, pode-se afirmar que a proteção de direitos fundamentais, em qualquer área do conhecimento jurídico, inclusive nas questões relativas a direitos privados, é matéria de ordem constitucional, pois repousa no berço do constitucionalismo.

Nesse sentido, Canotilho apresenta uma definição de Constituição voltada para a garantia de direitos fundamentais, a qual merece destaque:

213 STRAUS, Joseph. O impacto da nova ordem mundial no desenvolvimento econômico. O papel do regime dos direitos de Propriedade Intelectual. IDS – Instituto Dannemann Siemsen de Estudos Jurídicos e Técnicos.

Propriedade Intelectual: plataforma para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 128.

214 LABRUNIE, Jacques; BLASI, Marcos Chucralla Moherdaui. O sistema constitucional de patentes e os prazos de vigência. In LIMA, Luís Felipe Balieiro (coord.) Propriedade Intelectual no direito empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 271.

215 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do Direito Constitucional contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 279.

Constituição é uma ordenação sistemática e racional da comunidade política, plasmada num documento escrito, mediante o qual se garantem os direitos fundamentais e se organiza, de acordo com o princípio da divisão de poderes, o poder político.216

Assim, toda matéria de ordem constitucional deve guardar relação entre a organização do Estado e a garantia de direitos do cidadão, especialmente aqueles relacionados às suas garantias fundamentais, que em nosso ordenamento jurídico ganham status de cláusulas pétreas, não podendo ser modificadas senão por uma nova ordem constituinte.

O próprio direito privado, atualmente, depende de fundamentos constitucionais. Como prescreve Larenz, as leis ordinárias que estejam em contradição com um princípio de nível constitucional carecem de validade, tanto quanto aquelas que não possam ser interpretadas “conforme a Constituição”; se é factível uma interpretação em conformidade com a Constituição, aquela que tem preferência sobre qualquer outra modalidade de interpretação.217

Os bens da Propriedade Industrial nem sempre estão presentes nos textos Constitucionais, tal como ocorre com a Constituição da República Federativa do Brasil, ou na Constituição dos Estados Unidos da América. “Constituições de teor mais político não chegam a pormenorizar o estatuto das patentes, do direito autoral e das marcas; nenhuma, aparentemente, além da brasileira, abre-se para a proteção de outros direitos.”218

Sendo assim, não se pode negar que tais bens tenham natureza constitucional, pois que não se prestam a regulamentar as simples relações de propriedade, mas toda uma ordem harmônica de mercado. Essa ordem econômica é considerada um elemento indispensável na consolidação dos direitos fundamentais, pois “deve ser dinamizada tendo em vista a promoção da existência digna de que todos devem gozar.”219

Nesse sentido, identifica-se proteção constitucional aos bens incorpóreos da Propriedade Industrial, desde a Constituição do Império de 1824, cujo artigo 179, n. 26, já determinava que os inventores teriam a propriedade de suas descobertas, ou das suas produções.220Repetem essa proteção as Constituições brasileiras de 1891 (art. 72, §25), de 1934 (art.113, n. 18), a de 1937 (art. 16, XXI) a de 1946 (art. 141, §17) e a de 1967 (art. 150, §24).

216 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6 ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 12

217 LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Trad. Miguel Izquierdo y Macías‐Picavea. Madrid: Edersa, 1978, p. 96.

218 BARBOSA, D. B. Tratado da Propriedade Intelectual, p. 227. 219 GRAU, Eros, Ibidem, p. 194.

220 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acessado em 19 jun. 2014.

Por fim, a atual Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 5º, inciso XXIX, incluiu a propriedade industrial dentro do contexto das garantias constitucionais fundamentais, ampliando as normas genéricas que protegem a propriedade.

Em contrapartida, os bens da Propriedade Industrial constituem-se como uma forma de propriedade sui generis, pois “a natureza imaterial desses bens implica necessariamente a adoção de um regime jurídico próprio, em vista de sua proteção adequada. É uma categoria de bens à parte, que foi ignorada pelo direito romano.”221

Assim, sua presença nos textos constitucionais revela uma especial preocupação dos legisladores em demonstrar que os bens protegidos por este subsistema jurídico são de vital importância na ordem econômica e social.

Dessa forma, resta dúvida se eles constituem uma modalidade de direitos fundamentais propriamente ditos, ou simples disposição de garantia da ordem econômica derivada do direito de propriedade.

A solução desse problema encontra duas correntes doutrinárias em sentidos opostos, a primeira, mais tradicional, não reconhece a Propriedade Intelectual como direito fundamental e a segunda, mais atual e ainda em formação, reconhece-a como modalidade de direitos humanos.

Prevalece, atualmente, a primeira posição, entendendo que os direitos de Propriedade Industrial não podem se enquadrar como direitos fundamentais, mesmo que constitucionais, pois são, em verdade, instrumento para a garantia desses direitos e não direitos fundamentais propriamente ditos.

Nesse sentido, Barbosa afirma que:

Mesmo quando erguida à categoria de Direito Constitucional, os direitos exclusivos em seu aspecto patrimonial não são normalmente tidos como parte do Bill of Rights, ou seja, dos direitos fundamentais, restando como tal apenas o aspecto moral dos mesmos direitos quando reconhecido.222

Esse posicionamento consubstancia-se na interpretação do artigo XXVII, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que expressamente declara: “Todo homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.”

221 GUSMÃO, José Roberto d’Affonseca. A natureza jurídica do Direito de Propriedade Intelectual. Disponível em: <http://www.glpi.com.br/noticias-publicacoes/publicacoes-e-artigos/propriedade- intelectual/natureza-juridica-do-direito-de-propriedade-intelectual/98>. Acesso em 30 abr. 2014.p. 37.

222 BARBOSA, Denis Borges. As bases constitucionais do sistema de proteção das criações industriais. in SANTOS, M. J. P. dos e JABUR, W. P. Criações industriais, Segredos de Negócio e Concorrência Desleal. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 9-10.

Destaca-se que a declaração frisou à proteção de interesses morais, especialmente ligados ao direito autoral e não aos bens da Propriedade Industrial. Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “esta matéria não mereceria ser alçada ao nível de direito fundamental do homem.”223

Por outro lado, a Europa assiste grande discussão atual sobre a inclusão dos direitos da Propriedade Intelectual como sendo direitos humanos. Tal fato inclusive mereceu estudo especial pela Comissão Europeia de Direitos Humanos, a partir de julgados da Corte Europeia de Direitos Humanos, constatando a existência de situações arbitrárias no uso dos bens da Propriedade Industrial.

A esse respeito Helfer indica a existência de três julgados na Corte Europeia de Direitos Humanos (ECHR) que sustentaram serem as patentes, marcas, direitos autorais e outros interesses econômicos, bens de conhecimento intangíveis protegidos pela Convenção Europeia de Direitos da Propriedade. No julgamento do caso Anheuser-Busch Inc. v. Portugal, em 2007, a corte entendeu que a exploração desses bens tem implicações nos direitos humanos, servindo de base para futuras normas de proteção da Propriedade Industrial na Europa.224

Todavia, o autor entende que esses julgamentos devem ser vistos com ressalva, pois “protegem os direitos fundamentais das empresas multinacionais, em vez de pessoas singulares”. Salienta, ainda, que tal decisão apresenta um caráter político, pois haveria nos “últimos anos uma explosão de reivindicações de direitos humanos relativas à propriedade intelectual, na Europa, nos Estados Unidos, e em vários outros locais”.225

É óbvio que o simples fato de vincular os Direitos de Propriedade Industrial a grandes empresas não lhes retiraria o caráter de direitos humanos, pois também as pessoas jurídicas podem ser titulares de direitos fundamentais.226

223 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2 ed. v.1. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 50.

224 HELFER, Laurence R. The New Innovation Frontier? Intellectual Property and the European Court of Human Rights. Harvard International Law Journal, v. 49, p. 4, 2008; Vanderbilt Public law Research Paper n.07-05; Vanderbilt law and Economics Research Paper n. 07-05. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=976485>. Acesso em 24 jun. 2014.

225 HELFER, Laurence: “the decision protects the fundamental rights of multinational corporations rather than

those of natural persons” e “The last several years have seen an explosion of competing human rights claims relating to intellectual property—in Europe, in the United States, and in numerous international venues”. Idem.

(tradução própria)

226 Nesse sentido SARLET, Ingo: recepcionada no direito constitucional brasileiro a tese de que as pessoas jurídicas, ao contrário das naturais (físicas ou singulares) não são titulares de todos os direitos, mas apenas daqueles direitos que lhes são aplicáveis por serem compatíveis com a sua natureza peculiar de pessoa jurídica, além de relacionados aos fins da pessoa jurídica, o que, todavia, há de ser verificado caso a caso. A eficácia dos direitos

Assim, no caso em pauta, os direitos relativos às marcas, patentes, desenhos industriais, modelos de utilidade e indicações geográficas não significam necessariamente uma espécie distinta de Direitos Humanos, mesmo que atendam à função econômica das pessoas jurídicas, sejam elas grandes empresas ou não.

A análise dos bens da Propriedade Industrial como direitos fundamentais parece, no mínimo, perigosa, pois já estão inseridos em um universo de proteção do direito de propriedade, aliados a um aspecto econômico singular de desenvolvimento social e de proteção da concorrência, existindo, inclusive, instrumentos nas legislações constitucionais e infraconstitucionais, para garantia de sua exploração adequada.

Dar ao Direito da Propriedade Industrial um caráter de direito fundamental significa ampliar a sua aplicação para níveis que se vinculam a outros aspectos de proteção da dignidade humana, como o direito à vida, à liberdade, que não se compatibilizam com este subsistema jurídico, senão por via reflexa.

Seção III – A aplicação dos princípios constitucionais da Ordem Econômica na

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