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A natureza da obrigação de prevenção: privada ou pública

É particularmente controversa a doutrina sobre a caracterização jurídica da obrigação de prevenção, matéria sobre a qual nos limitamos, aqui, a equacionar os seus termos fundamentais. Para a “teoria jusprivatista”, tal obrigação tem origem no próprio contrato de trabalho, vivendo no seio da relação jurídica que ele estabelece entre os sujeitos (empregador e trabalhador) e terminando com a sua cessação, configurando uma natureza de dívida do empregador correspondente a um crédito do trabalhador.107 Para a “teoria juspublicista”, ao contrário, a obrigação de prevenção assume uma natureza eminentemente pública, em virtude do Estado assumir um decisivo papel na seu desenvolvimento efetivo, com particular incidência na dinamização de um sistema nacional de prevenção de riscos profissionais, como resulta de diversas prescrições estabelecidas em Convenções da OIT (nomeadamente, a Conv 155) e na política da UE (por exemplo, quando atualmente obriga os Estados membros a estabelecer estratégias nacionais para a SST)108.

Neste nosso trabalho assumimos uma visão que parte do pressuposto de que a natureza desta obrigação é mista, em virtude dela se reportar, simultaneamente, a uma relação jurídica de natureza contratual civil (o contrato de trabalho) e a um bem jurídico que reveste interesse público (o direito à vida e à saúde)109.

106 Aliás, se considerarmos a prevenção como obrigação de resultado (matéria abordada mais adiante), mais nos aproximaremos desta conclusão.

107 Neste sentido, veja-se, por exemplo, Hernández, Maria (2006). El Drecho de los Trabajadores a la

Seguridad y Salude en el Trabajo, pp 14 e segs.

108 Sobre os defensores e a argumentação em torno desta perspetiva, veja-se a boa síntese em Díaz, Francisco (2002). La Obligation Empresarial de Prevencion de Riesgos Laborales. pp 102-106.

109 Desta natureza mista resulta que a obrigação de prevenção consiste “num dever público e numa obrigação contratual que incumbe fundamentalmente ao empregador” (Ibidem Díaz, Francisco (2002). Op cit. pp 106-107).

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Com efeito, o direito à SST está consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948 (art. 23) e no Pacto Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos Económicos, Socais e Culturais de 1976 (art 7º) como um direito fundamental dos trabalhadores, direito este que se associa a um “dever de zelar pela sua própria segurança, bem como pela segurança de todo aquele que possa ser afetado por aquilo que outros façam ou deixem de fazer e isto implica um direito à informação adequada e a interromper o trabalho em caso de perigo iminente”110

.

A saúde está assumida como um direito fundamental na CRP (art 64º). A garantia de tal direito conhece, todavia, particularidades em contexto de exercício profissional. Assim, a proteção conferida pela CRP ao direito do trabalhador a condições de SST (art 59º) reporta-se diretamente à natureza subordinada em que ele presta trabalho: cabendo o poder de gestão da empresa e de organização do trabalho ao empregador, aquele direito só é concretizável pela correspondente obrigação da entidade empregadora de assegurar os meios adequados e suficientes à obtenção de tal bem (ainda que para tal objetivo também concorra o dever de cooperação do próprio trabalhador)111. Daqui resulta que a segurança e a saúde do trabalhador se deva entender como um bem desenvolvido plenamente no contexto de uma relação jurídica particular e privada (o contrato de trabalho) ainda que subordinado ao interesse geral e público (o valor da vida humana)112. Na primeira vertente, temos um enquadramento legislativo decorrente do Código do Trabalho (arts 281º e 282º e Lei 102/2009), enquanto na segunda faceta temos o Código Penal a tipificar como crime a conduta de observância de disposições legais ou regulamentares que implique “sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde” (art 152º-B do CP). Estão aqui, então, em causa dois tipos de responsabilidade para o empregador: um dever não só de non facere (um dever de resultado, associado a uma faceta defensiva) inerente à segunda vertente legislativa, e um dever de facere (um dever de ação preventiva concreta, inspirado numa abordagem proactiva) regulado objetiva e pormenorizadamente na primeira vertente legislativa.

110 Alli, Benjami (2008). Princípios Fundamentais de Segurança e Saúde no Trabalho. p 24.

111 “O direito à integridade física reconhecido aos trabalhadores especificamente na relação de trabalho é um direito laboral inespecífico ou inespecificamente laboral uma vez que não tem a sua origem ou razão de ser, principal ou exclusivamente, no âmbito estrito das relações laborais….” (Palomeque Lopez, in Ibidem Hernández, Maria (2006). Op cit; pp 65-66.

112 Manuel Roxo sintetiza o enquadramento da obrigação de prevenção em quatro vetores: i) inclui ressonâncias constitucionais do direito à dignidade da pessoa humana e ao trabalho em condições dignificantes, ii) reflete o devir do enriquecimento progressivo do conceito que o Direito da SST regista, iii) integra o interesse privado e extrapatrimonial do trabalhador independentemente do interesse geral e público, e iv) compreende as demais referências legislativas que ao facto se aplicam, podendo ser confrontada com a de outros atores na empresa (os trabalhadores, os profissionais de SST e outros trabalhadores encarregados de funções específicas no sistema de prevenção implementado na empresa (Roxo, Manuel M (2011). Direito da Segurança e Saúde do Trabalho: Da Prescrição do Seguro à

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Tradicionalmente, a prevenção é entendida como um direito subjetivo de origem contratual, pois “os trabalhadores incorporam este direito de proteção ao seu património jurídico diretamente como consequência da celebração dum contrato de trabalho, não antes, nem depois, e podem exercê-lo diretamente e por si próprios face ao seu empregador durante toda a vigência do contrato”113. Daqui resulta para o trabalhador a posição de credor na relação jurídica, constituindo objeto desse crédito a sua proteção face aos riscos profissionais que deve ser assegurada pelo empregador.

Todavia, a SST revela-se como um direito complexo cuja efetividade “envolve várias dimensões que refletem diferentes tipos de tutela”114

. Consequentemente a esta multiplicidade tutelar será de considerar que, atualmente, quando analisamos a questão já não tanto pelo lado do direito subjetivo, mas, antes, pelo lado da obrigação de prevenção a cargo do empregador, não podemos referenciar a sua abordagem exclusivamente a um enquadramento contratual laboral (ao contrário do direito à reparação dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais115), haja em vista o alargamento que o Direito do Trabalho (internacional comunitário e nacional) vem fazendo a outros cenários envolventes do trabalho, como sejam, a obrigação de cooperação entre empresas que operem no mesmo local, a obrigação da empresa em proteger a segurança e saúde de visitantes e qualquer pessoa exposta aos riscos gerados pela sua atividade produtiva, a interligação crescente ente as obrigações de segurança de produto (segurança intrínseca) e segurança do trabalho116.

113 Ibidem Hernández, Maria (2006). Op cit; p 14.

114 Pimpão, Céline, (2011). A Tutela do Trabalhador em Matéria de Segurança, Higiene e Saúde no

Trabalho; pp 86-87.

115 Ac STJ de 24-01-2007 – Proc 06S2711: “Mesmo que o acidente de trabalho seja causado por outros trabalhadores ou terceiros, a responsabilidade objetiva do empregador mantém-se perante o sinistrado (arts. 2.º, 37.º, n.º 1 e 31.º da Lei de Reparação dos Acidentes de Trabalho). Ainda que incumba a um terceiro a direção e orientação da atividade do trabalhador sinistrado e, também, a responsabilidade legal pela observância das condições de segurança num determinado local, continua a ser o empregador – entidade que paga a retribuição e exerce o seu poder de autoridade sobre o trabalhador – o responsável direto perante o trabalhador pela reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho”. No mesmo sentido, pode ver-se, ainda o Ac STJ de 13-07-2006 – Proc 06S697: “É de imputar a culpa do empregador a morte do trabalhador ocorrida em consequência das más condições de trabalho que o navio oferecia (elevadas temperaturas, nomeadamente nas casas das máquinas por falta de adequada ventilação), uma vez que sobre ele recaía a obrigação legal de assegurar ao trabalhador condições de segurança, higiene e saúde em todos os aspetos relacionados com o trabalho. O facto de o navio não lhe pertencer e de a manutenção do mesmo constituir encargo do armador não afasta a sua culpa na produção do acidente, dado que, antes de mandar o sinistrado trabalhar para o navio, tinha a obrigação de se informar acerca das condições de trabalho que o mesmo oferecia e quando, com o navio já em viagem, foi alertada pelos tripulantes para as péssimas condições de trabalho a que estavam sujeitos, devia ter providenciado para que os seus trabalhadores desembarcassem o mais rapidamente possível, caso chegasse à conclusão de que não conseguia persuadir o armador a melhorar substancialmente as ditas condições de trabalho”. 116 Aspetos que serão desenvolvidos neste trabalho, mais à frente.

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