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Capítulo 3: A história dos vencidos

3.4. A natureza desta relação

Maria Isaura Pereira de Queiroz, no seu livro O campesinato brasileiro, diz que economicamente o camponês se define pelo seu objetivo de plantar para o consumo (QUEIROZ, 1976, p. 30). O que aconteceu, entretanto, ao longo principalmente da década de 1960 e 1970, foi que o caipira foi cada vez mais perdendo o acesso a esta condição que o definia, para tornar-se um proletário obrigado a vender sua mão de obra para sobreviver.

Já vimos aqui como a confusão feita pelo governo Vargas, ao tomar o êxodo como causa e não como efeito, fez aumentar ainda mais o êxodo rural. Essas medidas, que implicavam na industrialização do campo tiveram, no entanto, continuidade nos governos que o sucederam, até que, em 1963, no governo João Goulart, foi aprovado uma lei que seria preservada no governo militar, reforçando ainda mais o êxodo: o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR). Teoricamente, o ETR concedia ao trabalhador do campo os mesmos direitos que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) propiciava ao trabalhador urbano. Entretanto, ele também criava uma taxa extra de encargos trabalhistas para os proprietários das fazendas onde esses trabalhadores residiam. Por isso, dispensá-los, tornando-os não residentes, e contratá-los conforme as demandas produtivas passou a se tornar mais vantajoso para os grandes proprietários que, desta maneira, também se protegiam de possíveis processos trabalhistas.

A dispensa de trabalhadores na década de 1960 e 1970 foi também favorecida pelo incremento da industrialização e mecanização das indústrias monocultoras que tinham um único ciclo de plantio e colheita. Assim, os grandes proprietários só precisavam contratar os trabalhadores rurais em larga escala em momentos específicos como os da colheita. E como não se tratava de trabalhadores residentes, a eles não se aplicava mais o ETR e o custo se tornava ainda mais baixo do que antes da lei. Desta maneira, a instituição dessa nova lei, que pretendia levar ao trabalhador rural os mesmos benefícios do trabalhador urbano, graças ao contexto da industrialização do campo, acabou levando para o mundo rural outra característica existente no trabalho industrial urbano: a proletarização.

Mas não foi a lei em si que levou a este cenário. Ela foi apenas um dentre outros vários elementos que o promoveram como, por exemplo: a industrialização e consequente aceleração do tempo de produção e colheita; a distribuição desigual da

terra, que permitia aos grandes proprietários criar fazendas voltadas para a produção em larga escala; e os programas de financiamento e créditos para que essas grandes propriedades produzissem o que o governo desejava, como o programa que favoreceu o plantio da cana de açúcar no estado de São Paulo (SILVA, M., 1999, p. 67).

Segundo Elbio Gonzales e Maria Inês Bastos, há um elemento que teve papel determinante na constituição e viabilização desses projetos de produção em larga escala: a criação de uma mão de obra de trabalhadores rurais dispostos a trabalhar desta maneira, já que não havia mais outra forma de obter o sustento para eles e suas famílias:

O trabalho volante é uma modalidade de trabalho assalariado por tarefa, ou seja, uma forma concreta de relação social de produção capitalista. À natureza desta relação pressupõe, por um lado (não só como condição necessária, mas como resultado) um mínimo e sempre crescente volume de capital nas mãos dos empresários agrícolas e, por outro, um contingente de trabalhadores despojados dos meios de produção. [...] Assim, tanto o capital quanto a força-de- trabalho disponível são condições necessárias de existência do trabalho volante como uma forma que é de trabalho assalariado. (GONZALES, 1979, p.36)

O fenômeno de proletarização do trabalhador, criando um contingente maior do que o necessário para realizar a produção não é uma especificidade do caso brasileiro. Pelo contrário, ele faz parte do movimento de desenvolvimento e instauração do capitalismo, sendo conhecido, na teoria de Marx, como exército industrial de reserva, conforme observa Jacob Gorender, na apresentação d´O Capital:

À medida que se implementam inovações técnicas poupadoras de mão-de-obra, tais ou quais contingentes de operários são lançados no desemprego, em que se mantêm por certo tempo, até quando a própria acumulação do capital requeira maior quantidade de força de trabalho e dê origem a novos empregos. Assim, a própria dinâmica do capitalismo atua no sentido de criar uma superpopulação relativa flutuante ou exército industrial de reserva. (MARX, 1996a, p. 41)

Como foi possível, então, produzir tão rapidamente, no espaço de trinta anos, esse exército industrial de reserva no meio rural paulista? Vários autores já se dedicaram ao assunto e parte desta história já foi contada aqui quando nos referimos às causas do êxodo, ao projeto de industrialização e modernização do campo e ao aumento dos preços da terra. Desses autores, a grande maioria se utiliza sempre do adjetivo expropriação ao se referir a este processo pelo qual o camponês perdeu a terra. Além da concorrência de mercado com grandes proprietários, que tinham a seu favor a produção em larga escala e o acesso a créditos e benefícios fiscais do governo, houve também a

própria disputa com grandes posseiros que desejavam, pela violência, aumentar o tamanho de suas terras.

Diga-se também que são os grandes ocupantes quem, regra geral, conseguem legalizar os seus títulos de posse, sendo os pequenos posseiros sumariamente expulsos das terras que exploravam, num nítido processo de grilagem dos grandes ocupantes em relação aos pequenos, antes mesmo de regularizarem os seus títulos de posse. (SILVA, J. G., 1981, p. 72)

Outra medida governamental que viria ainda favorecer a expulsão dos camponeses do meio rural foi a política de erradicação do café, que trouxe como principal cultura substitutiva a criação de pastos para a pecuária:

As consequências dessa “modernização” da agricultura paulista sobre a ocupação da mão-de- obra começam a se delinear ainda mais claramente após a implementação da política de erradicação do café do período 1962/67. Retirado o café, a atividade substitutiva preferida pelos grandes proprietários foi a pecuária, principalmente a de corte. (SILVA, 1981, J. G., p. 116).

A criação de gado, diferentemente do cultivo do café, precisa de um número muito menor de trabalhadores. Assim, muitos que antes trabalhavam no café foram dispensados. Inclusive, aqueles que trabalhavam em grandes fazendas no regime de colonato que foi um regime de trabalho criado nas grandes fazendas, ainda no século XIX, para receber principalmente o grande contingente de imigrantes europeus que vieram trabalhar na agricultura do café. Neste contexto, aos colonos era dedicada uma área onde eles trabalhavam plantando produtos para a subsistência de suas famílias (CAÍRES, 2008, p.163).

Na série de livros dedicados à História social do campesinato no Brasil, publicados pela Editora da UNESP e pelo Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (NEAD) do Ministério do Desenvolvimento Agrário, há pelo menos dois artigos que falam especificamente sobre o fechamento dessas grandes fazendas de café. No primeiro desses artigos, O colonato na usina Tamoio, Ângela Cristina Ribeiro Caíres fala de uma fazenda de dois mil alqueires, localizada na região de Ribeirão Preto, que contava com índices elevados de produtividade no mercado de açúcar, já na década de 1920, embora tivesse anteriormente trabalhado também com café (CAÍRES, 2008, p.165). Em sua fase áurea, na década de 1950, a fazenda chegou a abrigar nada menos que doze mil pessoas. Mas, em 1968 ela foi vendida para um forte detentor de capital financeiro, passando, em seguida, por uma crise, até ser fechada em 1982.

Já Carmen Silvia Andriolli e Maria Aparecida de Moraes Silva (2008) relatam, no artigo Da fazenda de café a área de preservação, a dissolução do colonato na fazenda Jatahy, localizada no nordeste paulista, próxima também à região de Ribeirão Preto. Habitada por aproximadamente 200 famílias, incluindo adultos e crianças, a fazenda se dedicou, da década de 1920 até a de 1940, ao cultivo do café e da pecuária. Mas, em meados da década de 1940, ela foi vendida e o novo proprietário reduziu as atividades de criação de animais e os campos cultiváveis, transformando-os em plantação de eucalipto. E em 1959, devido a dívidas, a fazenda foi entregue ao governo do estado, que então a transformou em uma unidade de produção de silvicultura (ANDRIOLLI, 2008).

Figura 8 – Boia-fria almoçando em meio ao canavial

Imagem extraída do site Jornalismo Cultural de David Arioch disponível em

http://davidarioch.wordpress.com/2010/04/16/o-cotidiano-do-boia-fria/

A expulsão dos colonos se integrou e deu força aos outros métodos de expropriação dos camponeses mencionados neste capítulo, gerando, desta maneira, uma massa de trabalhadores com habilidades que seriam então apropriadas pela indústria rural. E como resíduo dessas transformações é que irá surgir o Brasil urbano do final do século XX e um novo personagem, por assim dizer, do meio produtivo rural paulista: o trabalhador volante, também chamado de boia-fria, devido ao fato de suas refeições serem feitas numa marmita que levava para os canaviais, comendo-as, ali, sem

esquentar. Esta nova categoria profissional, que tem sua própria complexidade, já que o volante pode se dedicar ao trabalho durante o ano todo, na época das safras ou apenas em período específicos (SILVA, J. G., 1981, p. 134), chama a atenção pelo paradoxo de ser, a princípio, um morador da cidade que trabalha no campo. Nesta nova condição, no entanto, ele já não mais pode ser classificado como camponês, segundo a definição de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973) apresentada no início deste capítulo, sem contar o fato de ter suas raízes culturais viradas pelo avesso.

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