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Capítulo 5: As perdas do progresso

5.3. Lembrança da nossa vida

Semelhantemente à moda Pousada de boiadeiro (CARREIRO; PARDINHO, 1984), aqui analisada, existem outras modas de viola gravadas pela dupla em questão que também possuem narrativas onde o violeiro desempenha um papel de destaque.

O conjunto dessas modas que devido à semelhança temática corresponde ao que estamos chamando de contexto literário e que, neste caso, corresponde ao ciclo do violeiro, tem um número bastante expressivo dentro do conjunto completo de modas de

viola gravadas por Tião Carreiro e Pardinho. Este ciclo é sendo formado pelas seguintes modas: Minha vida, Cabelos cor de prata, Violeiro do passado, Violeiro solteiro, Gato de três cores, Fandango mineiro, Derrota, Consagração, Última viagem, Ingrata, Clarineta, Triste desengano, Padecimento, Viola vermelha, Caboclo de sorte e Violeiro do passado.

A maioria das narrativas das modas desse conjunto associa a ideia de deslocamento, enquanto representação simbólica do movimento do êxodo rural, à caracterização dos violeiros com exceção de três modas: Clarineta (idem, 1975b), Padecimento (idem, 1981) e Viola vermelha (idem, 1984). Suas narrativas ocupam-se com as diferentes nuanças da vida e profissão de violeiro como: a importância de se ter um bom instrumento, um bom mestre, composições para diferentes ocasiões, as dificuldades da música caipira tradicional no meio da indústria cultural e, por fim, o significado que as composições têm para o próprio violeiro enquanto bálsamo para seus sofrimentos pessoais.

Quanto às demais modas, todas apresentam, em suas narrativas, a ideia de deslocamento geográfico: a moda Pousada de boiadeiro (idem, 1984), como vimos neste capítulo, descreve um cenário de completa decadência social e econômica do meio rural; a moda Cabelos cor de prata (idem 1975b) apresenta um cenário análogo de decadência narrado, porém, da perspectiva de um violeiro que viu este meio cultural se desintegrar ao seu redor com o passar dos anos; e a moda Violeiro solteiro (idem, 1966) descreve um violeiro bonachão que se gaba da vida que tem, sempre viajando de carona de uma festa pra outra onde se apresenta sendo sempre admirado pelas mulheres.

Já na moda Consagração a ideia de deslocamento se faz presente na caracterização de um violeiro que é convidado para comparecer a uma festa na cidade (ou região) de Araguari aonde irá participar de um desafio contra outra dupla. Gato de três cores (idem, 1974b) segue com este mesmo enredo, no qual um violeiro recebe um convite para uma festa onde irá enfrentar outro grande violeiro na arte do desafio saindo, ao final, como vencedor. Algo semelhante se repete na moda Fandango mineiro (idem, 1974b), na qual uma dupla de violeiros é convidada para se apresentar em Três Corações e a narrativa segue descrevendo detalhes do clima festivo, da generosidade nas relações entre as pessoas, da prática do catira, etc. E a moda Derrota (idem, 1975b)

também tem um modelo narrativo semelhante, com a diferença que esta não descreve um episódio específico apresentando, em vez disso, a prática de viagens para participar de desafios como um continuum na profissão de violeiro:

Última viagem (idem, 1975, 1981) tem uma narrativa que também se assemelharia a essas últimas modas, nas quais o violeiro é apresentado como alguém que sempre se desloca para diferentes localidades recebendo convites de desafios musicais. O fim da narrativa, no entanto, é trágico: o companheiro do protagonista morre envenenado pelas pessoas da região que ficaram indignadas ao ver sua dupla local ser derrotada, por eles, no desafio. Com este fim trágico, esta narrativa parece sugerir simbolicamente o fim da profissão de violeiro no meio rural.

E na moda Caboclo de sorte (idem, 1974b), cujo enredo lembra àquela que analisamos no capítulo anterior (Minha vida), temos um violeiro que alcançou grande sucesso na profissão adequando-se às oportunidades e condições que encontrou no meio urbano e que também acha “muito fácil ganhar o dinheiro”. Este violeiro, consonante ao ponto aqui em questão, também está em contínuo deslocamento visitando o “Brasil inteiro” em resposta a convites que recebe para se apresentar tendo, inclusive, cantado “de viola até no estrangeiro”.

Outra moda onde o deslocamento está presente na caracterização do personagem chama-se Violeiro do passado. O tom desta moda, a princípio, é o mesmo da moda Violeiro solteiro (idem, 1966) que apresenta, em sua narrativa, um violeiro bonachão que goza a vida através desta profissão apresentando-se em diferentes lugares e festas onde sempre encontra jovens que se enamoram dele. No entanto, apesar dessas alegrias da profissão, no seu contínuo deslocamento, ele traz consigo a lembrança de algo que perdeu no passado: a rosa branca, representação de um amor ligado à sua terra natal de onde teve que se mudar.

E, embora a letra da música não diga o motivo que levou o violeiro a mudar da sua terra natal, com base no que foi apresentado no terceiro capítulo deste trabalho, podemos inferir que a mudança aconteceu em decorrência do mesmo processo de transformação social que intensificou o êxodo e deixou em cada indivíduo, em maior ou menor grau, esta impressão de perda de algo precioso e irrecuperável. Perda que, na letra desta moda é descrita da seguinte maneira: “quando me mudei de onde nasci \ um amor que eu tinha

não me viu sair \ fiz coração duro, mas não resisti \ só eu é que sei o quanto sofri \ varei quatro noites sem poder dormir.”

Há ainda outras duas modas que se aprofundam no tema do amor sem, no entanto, abandonar a referência ao deslocamento como algo constitutivo da vida. Na primeira dessas modas, Triste desengano (idem, 1966), o narrador nos fala da saudade que sente de um velho amor que ele teve aos quinze anos e que o fez lembrar “daquela ardeia onde o nosso amor nasceu”. Hoje, longe da amada, ele compõe uma triste música donde escolhe os versos “de mais valor” e os manda para sua amada para lhe despertar “lembrança da nossa vida \ saudade do nosso amor”.

Já a segunda dessas modas chama-se Ingrata (idem, 1975b). À exemplo das três últimas modas aqui tratadas, sua narrativa também faz alusão a um grande amor do passado que vive distante: “lá pras bandas d´oeste”. E num gesto épico, quiçá o derradeiro da sua vida, ele então envia notícias a ela enquanto aguarda resposta ou, quem sabe, “uma prece” se a resposta se demorar ainda mais.

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