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Capítulo 2: As ruínas do passado

2.2. A Verdadeira música caipira

As análises de José de Souza Martins e Waldenyr Caldas, de 1975 e 1976, como vimos, foram as primeiras análises sociológicas sistemáticas da música caipira, mas, não as únicas. Somente em 1990, ou seja, quatorze anos depois, surgiria uma nova análise sociológica de envergadura: Violas e violeiros na grande pátria caipira, dissertação de mestrado de Iride Maria Tognolli (1990). Seis anos depois desta, surgiria a tese de doutorado Caipira e country: a nova ruralidade brasileira (ALEM, 1996). E doze anos depois desta última, surgiriam outras duas dissertações: Nas melodias da toada: riso e performance no cururu paulista (SANTOS, E. J., 2008) e Moda de viola e modos de vida: as representações do rural na moda de viola (MENEZES, 2008). Essas novas análises sociológicas, assim como outras realizadas em outras áreas do conhecimento, ampliaram a compreensão da música caipira até então balizada pelo trabalho de Martins e Caldas.

Violas e violeiros na grande pátria caipira (TOGNOLLI, 1990), por exemplo, sugere que a música caipira, mesmo na sua fase de reprodução técnica, desempenha o papel de mediadora das relações sociais; de certa forma, adiantando a reflexão que Ivan Vilela faria na sua tese de doutorado, de título Cantando a própria história, defendida em 2011.

Nas melodias da toada: riso e performance no cururu paulista (SANTOS, E. J., 2008), o autor analisa o esforço de adaptação da prática do cururu (que integra a música caipira como um subgênero desta, desde suas origens rurais) no contexto do processo capitalista de produção. Sua análise ecoa algumas percepções presentes em outras dissertações de mestrado sobre o tema: O tronco da roseira: uma antropologia da viola caipira (OLIVEIRA, 2004), O cururu – uma manifestação folclórica caipira – e sua sobrevivência frente à globalização (CASTILHO, 2008) e Análise da preservação do cururu nas rádios de Piracicaba (SANTANA, 2007). Nas melodias da toada revela, no plano da cultura, algo que acontecia também na esfera da produção: a luta pela resistência da cultura caipira tradicional, mesmo diante das transformações promovidas pelo desenvolvimento da indústria e do capitalismo. Este aspecto se completa diante da perspectiva de que a luta pela resistência da cultura tradicional implica também a preservação de valores que configuram uma identidade cultural.

Já a tese Caipira e country: a nova ruralidade brasileira (ALEM, 1996) não é sobre a música caipira em si, mas, sobre as festas de peão e grandes eventos da indústria agropecuária, onde a música caipira é apresentada numa espécie de salada pós-moderna de mistura com a música sertaneja, o rock, a música romântica, o tecno-pop, etc. O fato da música caipira estar presente neste tipo de evento demonstra, minimamente, que ela não pode ser ignorada como representante da cultura rural brasileira indicando, assim, um dos lugares conquistados pelo esforço e resistência continuada, ao longo de décadas, por duplas caipiras. Porém, mais importante que o uso comercial da música como um produto para atrair o público, é o resgate da música caipira que liga esta pesquisa ao quarto e último trabalho de sociologia a ser aqui tratado: Modas de viola e modos de vida: as representações do rural na moda de viola (MENEZES, 2008).

Fruto de um mestrado recente realizado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, a pesquisa parece ter um contexto que se liga ao revival que Ivan Vilela afirmou que vem ocorrendo com a música caipira desde a década de 1990:

Porém, contingências de âmbito internacional, como a globalização e a ideia ecológica de preservação da diversidade cultural, e de âmbito nacional, como a desilusão com o mundo da cidade grande, fizeram com que começassem a ser resgatados valores desta cultura e, consequentemente, suas sonoridades. O uso da viola, que diminuía consideravelmente nos anos 70 e 80 do século XX, voltou com força renovada nos anos 90. Programas de televisão em redes regionais surgiram para divulgar esta música. Curiosamente, a música pop, numa versão antropofágica, começou a incorporar elementos das músicas tradicionais. Numa outra vertente, surgiram inúmeros instrumentistas vindos de outros segmentos musicais, como a música instrumental brasileira e a música erudita, que tomaram a viola e começaram a dar a ela um novo uso. Isto fez com que ela começasse a se projetar em outros espaços, como as salas de concerto e teatros, conquistando assim um novo público e se tornando um instrumento de uso universal como outros. (VILELA, 2004, p. 184)

E um dos autores que se aprofundou na análise deste revival da música caipira foi Alex Dent: pesquisador de origem canadense que estudou a música caipira brasileira no contexto de uma tese de doutorado na Universidade de Chicago, Country Critics: Música Caipira and the Production of Locality in Brazil (DENT, 2003), cujo conteúdo foi retomado e desenvolvido no livro River of Tiers: Country Music, Memory, and Modernity in Brazil (DENT, 2009).

Esses dois trabalhos tratam dos novos expoentes e intérpretes da música caipira, cujo desempenho acabou conquistando o público universitário gerando, de modo imprevisto ou não, pesquisas acadêmicas a respeito do assunto. Prova disso são as mais de quarenta teses e dissertações realizadas desde o ano 2000 (vide relação completa no apêndice 1

desta tese). Para este público e mesmo para os novos intérpretes que deram nova ênfase para a música caipira, não raro baseadas em performances de viola instrumental, a música caipira passou a ter um novo significado revelando novos horizontes.

One of the most significant aspects of this Brazilian musical ideology is that it elevates music over other forms of public culture as fundamental to Brazilian self-understanding and self- projection. [...] Music in Brazil, therefore, is intrinsically political, as its users believe that it provides one of the primary channels through which social reproduction takes place. (DENT, 2009, p. 86)

É, portanto, neste contexto de ressignificação da música caipira que surge a referida dissertação de mestrado Moda de viola e modos de vida (MENEZES, 2008) onde o autor se detém na análise das letras das modas de viola, compostas e gravadas ao longo do século XX, com o objetivo de identificar as representações do rural nelas presentes. Mas Eduardo de Almeida Menezes não elegeu a moda de viola como objeto de pesquisa por acaso. A moda de viola, a exemplo do cururu, compõe a música caipira e, na opinião dos próprios cururuzeiros, é um dos gêneros mais representativos da música caipira comprometidos com sua essência:

A moda-de-viola é um outro gênero praticado e valorizado pelos violeiros piracicabanos. É tida, por vários deles, como o exemplo da “verdadeira música caipira", e sempre que eles querem se referir ao que não é música caipira ou sertanejo-raiz, eles citam duplas midiáticas que não cantam modas-de-viola. (OLIVEIRA, 2004, pg. 127)

Diante do vasto universo de modas de viola gravado ao longo do século XX, Menezes se deteve em dez composições para análise, baseando-se no seguinte critério de seleção: as modas que foram mais regravadas por diferentes duplas. Desta escolha, surgiu o curioso fato, para o presente trabalho, de que, das dez modas selecionadas para análise, nove foram gravadas por Tião Carreiro e Pardinho, a dupla do nosso recorte de pesquisa. A coincidência, no entanto, explica-se pelo fato de esta dupla ter sido uma das que mais se notabilizou pelo sucesso na interpretação de modas de viola, como veremos. Antes, porém, precisamos apresentar um pouco da história da música caipira que já havia sido escrita, por assim dizer, quando a dupla surgiu.