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Capítulo 4: A explosão artística

4.4. Minha vida

Como tivemos oportunidade de tratar na primeira parte deste trabalho, a trajetória das duplas caipiras implicava numa longa caminhada até chegar à gravação do primeiro disco mesmo quando elas conseguiam o apadrinhamento de outra dupla já famosa ou de alguém com influência no meio como aconteceu com o próprio Tião Carreiro e Pardinho que foram apadrinhados por ninguém menos que Teddy Vieira: um dos diretores da gravadora e um dos mais bem-sucedidos compositores da música caipira (NEPUMOCENO, 1999, p. 340).

Figura 12 – Teddy Vieira, Lourival dos Santos, Pardinho e Tião Carreiro

Imagem extraída do site Tião Carreiro HomePage, disponível em

http://www.tiaocarreiro.pgl.com.br/teddylourivalpardinhoetiao.htm

Neste sentido, a trajetória das duplas caipiras espelha a saga do próprio migrante que, ao mudar-se do campo para a cidade, passava por uma série de subempregos até alcançar uma situação profissional mais estável. Este é o cenário presente na narrativa da moda que nos deteremos aqui e que mostra tanto a trajetória profissional de um migrante rural quanto sua luta para se tornar um violeiro profissional. A narrativa da moda, no entanto, não descreve a luta do violeiro dentro da indústria cultural, mas, sim dentro do universo urbano para o qual ele migrou.

Composição de Carreirinho e Vieira, a moda Minha vida (CARREIRO; PARDINHO, 1975b) que fez parte do segundo volume da série Modas de viola classe A, gravado em 1975, tem a seguinte letra:

Trago na lembrança Quando era criança Morava na roça Gostava da troça Do monjolo d'água Da casa de tábua Quando o sol saía A invernada eu subia

Prás vacas leiteira Tocar na mangueira

Fui moleque sapeca Levado da breca Gostava da viola E ainda ia na escola Eu ia todo dia

Numa égua tordilha

Com quinze anos de idade Mudei pra cidade

Saí da escola Era rapazola Deixei de estudar fui caixeiro num bar Trinta mil réis por mês Pra servir os freguês Vendendo cachaça Aturando arruaça

Pra mim só foi boa a minha patroa Vivia amolado com meu ordenado Trabalhei sete mês Recebi só uma vez Eu não via dinheiro Entrei de pedreiro Pra aprender o ofício Mas, foi um suplício Sol quente danado Emboçando o telhado A escadeira doía E eu me arrependia Mas, não tinha jeito Era meter os peito

No duro enfrentei Mas não me acostumei

Sou um pouco retaco Meu físico é fraco Só de falar no trabalho Quase que me desmaio

Tive grande impulso Com outro recurso A viola é tão fácil É só mexer nos traços Fazer modas boa Quando o povo enjoa Fazer modas dobrada E bem selecionada Pras festas que for Não passar calor

Evitar de beber Pra voz não perder Dinheiro no bolso Vem com pouco esforço Neste meu sol de anil Divertindo o Brasil

Como se pode ver, a narrativa desta moda nos apresenta um personagem de origem rural que migrou para a cidade ainda bem jovem. No meio rural ele se ligava afetivamente ao monjolo d´água, à casa de tábuas, aos passeios na invernada, às travessuras de criança tocando vacas no pasto, à montaria e a ouvir o som da viola. Todos esses elementos compunham seu contexto rural que também era o de muitos ouvintes deste tipo de música e que remetia, portanto, ao aspecto residual de uma formação social anterior aquela que a expansão e o inchaço das cidades iriam construir. No novo contexto social urbano, o personagem tentou ganhar a vida através dos subempregos que exigiam trabalho braçal no lugar de uma especialização profissional que ele não tinha. Neste sentido, sua trajetória espelha a de muitos outros migrantes da época:

Como trabalhador marginal, isto é, que trabalha sem contrato legal, os migrantes podem se dedicar a uma grande variedade de serviços, como os de limpeza de pequenos estabelecimentos, como “ajudante” das mais diferentes ocupações: de cozinheiro, de vendedor ambulante, de chofer de caminhão. Mas é a indústria de construção que absorve a maior parte dessa mão-de- obra, empregando-a como servente de pedreiro e vigia de construção. (DURHAN, 1973, p. 153)

Note-se aqui o fato curioso que a primeira colocação profissional do protagonista será justamente uma das enumeradas por Durhan: a de servente de pedreiro. Essas circunstâncias do personagem correspondem ao aspecto dominante da estrutura social, que se evidencia através do mercado de trabalho urbano donde se destaca a estratificação que diferenciam os empregos que exigem qualificação dos subempregos que não a exigem tendo, no entanto, condições e remunerações inferiores. A narrativa nos mostra então o protagonista passando por diferentes profissões até chegar àquela que corresponde à sua vocação: a de violeiro. E quando descobre esta vocação, ele dedica-se com afinco e disciplina compondo e preparando diferentes tipos de músicas para as diferentes ocasiões e situações que um profissional pode encontrar. Como resultado disso, o personagem sente que a arte de tocar viola é fácil além de rentável quando afirma que “dinheiro no bolso vem com pouco esforço”.

Esta adaptação ao novo contexto urbano e às novas regras da profissão de violeiro se alinha à perspectiva conciliatória que destacamos ao mencionar o aspecto

emergente na análise das modas anteriores: a conciliação entre a tradição (tocar viola) e a modernidade (a nova economia que responde pelo mercado deste tipo de profissional). Estamos, portanto, diante de mais uma variação sob o mesmo tema onde a proposta de conciliar tradição e modernidade parece exercitar sua legitimidade na cultura caipira através da incorporação das suas mais expressivas representações figurativas. E não se pode dizer que este esforço de adaptação não tenha obtido sucesso nessas narrativas. Ao menos, até agora. O conteúdo do próximo capítulo, no entanto, haverá de mostrar o “outro lado” dessa perspectiva otimista de conciliar o presente com o passado do caipira.