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INTRODUÇÃO 27 1 A TRAJETÓRIA DO CONCEITO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: da

2 RESERVA DO POSSÍVEL E O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: do subfinanciamento crônico ao desfinanciamento da política pública de saúde

2.1.3 A Natureza Jurídica da Reserva do Possível como Princípio

Para analisarmos a natureza jurídica principiológica da reserva do possível, discutiremos a importância dos princípios jurídicos na interpretação do texto normativo e suas consequências no contexto social. Apresentaremos, de forma sucinta, teses sobre a teoria dos princípios baseadas em Esser (1961), Larenz (2001), Dworkin (2010) e Alexy (2011).

Jossef Esser (1961) destaca as peculiaridades das normas, nas quais estariam embutidos regras e princípios, observando as diferenças entre ambos. Assim, enquanto as regras determinariam as decisões, os princípios estabeleceriam fundamentos que lastreariam determinado mandamento posto em texto jurídico. Para Esser (1961), os princípios enunciariam a essência das normas e trariam em si a resposta correta à determinada demanda, enquanto as regras seriam apenas a aparência das normas jurídicas. Os princípios seriam o motor do direito, dariam o caminho a seguir; o direito seria complementado pelos princípios como um direito em ação.

Já Karl Larenz (2001) define os princípios em um raciocínio dialético: os princípios, que resultariam de outros subprincípios, seriam clarificados quando interpretados à luz dos casos concretos, e estes seriam considerados verdadeiramente como casos concretos do sistema jurídico quando, além da interpretação pelas regras positivadas, também estariam sendo interpretados pelos princípios, que preencheriam qualquer brecha deixada pela regra, complementando-a. Larenz (2001), assim como Esser (1961), defende que os princípios abrem o caminho para a interpretação do caso concreto pelo operador do direito, direcionando-o em sua decisão.

Ronald Dworkin (2010) interpretou os princípios confrontando-os com o positivismo jurídico (general attackon Positivism), indicando que, principalmente em casos complexos e difíceis (hard cases) como, por exemplo, a efetivação do direito à saúde ou a concessão de medicamentos de alto custo para quem necessitar, fossem utilizadas não apenas as regras mas os princípios e as diretrizes políticas, ratificando que a Constituição deve ser interpretada também como uma Carta Política, um programa de Estado.

Destaca-se que Dworkin (2010) diferencia conceitualmente regras, política e princípios. Regras seriam as normas positivadas, o que refletiria em uma interpretação do direito no caso concreto, uma interpretação na base do “tudo ou nada” (all-or-nothing); ou a regra enuncia uma afirmativa ou uma negativa, não destrinchando o caso de forma mais complexa e aprofundada. Já a política seria um objetivo a ser alcançado mediante uma ação positiva nos aspectos econômico, social ou prospectivo com o fulcro de melhoria para a comunidade. E, por fim, os princípios seriam muito mais do que um padrão a ser observado, mas uma imposição de justiça na qual seriam ponderados segundo a especificidade do caso concreto, ou seja, um princípio nunca invalidaria outro, apenas se sobressairia a depender do caso analisado. Sendo assim, os princípios, ao contrário das regras, possuem uma dimensão de peso (dimension of weight) demonstrável na hipótese de

colisão entre os princípios, caso em que o princípio com peso relativamente maior se sobrepõe ao outro, sem que este perca sua validade.

Para finalizarmos o entendimento sobre a importância dos princípios, Robert Alexy (2011) defende, complementando a tese de Dworkin (2010), que os princípios são mandados de otimização, ou seja, podem ser interpretados e efetivados em diferentes graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas. No caso de colisão entre os princípios, a solução não se resolve com a determinação imediata da prevalência de um princípio sobre o outro, mas é estabelecida em função da ponderação entre os princípios colidentes, em função da qual, um deles, em determinadas circunstâncias concretas, recebe a prevalência. Para Alexy (2011), enquanto no conflito entre regras é preciso verificar se a regra está dentro ou fora de determinada ordem jurídica, o conflito entre princípios já se situa no interior desta mesma ordem (teorema da colisão).

Portanto, para esses autores defensores da noção dos princípios como instrumentos de interpretação das normas jurídicas, o direito no caso concreto deve ser resolvido não somente apoiado em normas-regra, mas, principalmente, em normas-princípio, para que a decisão seja a mais avalizada e justa possível, de acordo com a complexidade e profundidade do caso. Nesse sentido, não cabe apenas a análise acerca das regras, mas, primordialmente, acerca de sua essência principiológica.

Dessa forma, interpretamos que a reserva do possível pode ser tomada no âmbito da análise jurídica – especificamente nas decisões em torno do direito à saúde – como um princípio jurídico. Sendo assim, o princípio da reserva do possível deve ser sopesado no caso concreto em que se decida sobre os princípios constituintes da política pública de saúde, de acordo com o normatizado pela Constituição Federal, como os princípios da universalidade, integralidade e equidade, problematizando, principalmente, a questão orçamentária da política pública em comento.

2.2 DO PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL: as origens germânicas

As origens conceituais sistematizadas do denominado princípio da reserva do possível (Der Vorbehalt des Möglichen) surgiram com um tríptico de decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht) entre 1973 e 1977 sobre o direito ao acesso às universidades públicas, iniciado pelo notório caso do numerus

clausus93I (BVerfGE 33, 303, de 1973), o qual foi reiterado a seguir na decisão sobre as universidades ou Hochschul-Urteil (BVerfGE 35, 79, de 1973) e posteriormente ratificado no julgamento numerus clausus II (BVerGE 43, 291, de 1977). Tal encadeamento de decisões em sentido análogo levou à consolidação conceitual e jurisprudencial do conceito da reserva do possível (SGARBOSSA, 2010; MENEZES, 2015).

Esses três julgados do Tribunal Constitucional alemão referem-se ao direito ao acesso, pelos estudantes, às vagas das universidades públicas – principalmente os casos contidos nos numerus clausus I e II, que apresentam como base a premissa do artigo 12, § 1º, da Constituição de Bonn: “Todos os alemães têm o direito de escolher livremente a sua profissão, seu local de trabalho e o lugar de formação94” (KELBERT, 2011).

No numerus clausus I – depois ratificado pelo numerus clausus II – a Corte Alemã apreciou caso no qual uma ação judicial tinha como escopo permitir a certo estudante cursar o ensino superior público, no caso específico, a Faculdade de Medicina. Tal ação se baseava na garantia prevista pela Constituição Federal alemã – Lei Fundamental de Bonn – que assegurava a livre escolha de trabalho, ofício ou profissão, tendo em vista que não havia disponibilidade de vagas em número suficiente para todos os interessados em frequentar as universidades públicas (KRELL, 2002; SARLET, 2012).

A decisão proferida pelo Tribunal estabeleceu que só se poderia exigir do Estado o atendimento de um determinado interesse, ou a execução de uma prestação específica em benefício do interessado, caso fossem observados os limites da razoabilidade e proporcionalidade. Segundo tal entendimento, os sujeitos à reserva do possível devem sopesar a racionalidade de cada caso concreto, refletindo sobre o aspecto econômico do Estado (KRELL, 2002), conforme seguinte excerto do julgado apud Sgarbossa (2010):

93 Segundo Sgarbossa (2010): “Numerus clausus, expressão latina que significa número limitado, é a denominação que se dá ao sistema de seleção de candidatos às universidades adotado em diversos países como, por exemplo, nos Estados Unidos da América e na Alemanha e de outros países da Europa Continental. Baseia-se, em regra, no desempenho do candidato nos exames ditos de maturidade (Abitur, Matura, maturità) que constituem a coroação dos estudos do nível correspondente ao ensino médio no Brasil. Os exames de aptidão, denominados de Abitur na Alemanha, são chamados Abitur Matura na Áustria, ou Maturität, na Suíça” (SGARBOSSA, 2010, p. 133).

94 Na íntegra, o art. 12 se referia ao seguinte: “Artikel 12 [Berufsfreiheit, Verbot der Zwangsarbeit] (1) Alle Deutschen haben das Recht, Beruf, Arbeitsplatz und Ausbildungsstätte frei zu wählen (2) Die Berufsausübung kann durch Gesetz oder auf Grund eines Gesetzes geregelt werden.” Tradução: Artigo 12 [Liberdade de Profissão, proibição de trabalhos forçados]. (1) Todos os alemães têm o direito de escolher livremente sua profissão, seu local de trabalho e seu estabelecimento de formação. (2) O exercício da profissão pode ser regulamentado pela lei ou em razão de uma lei (DEUTSCHLAND, 2011). Tradução disponível em: https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf. Acesso em 19 out. 2019.

(...) na medida em que os direitos de tomar parte (Teilhaberechte) são limitados e não existentes a priori, encontram-se sob a reserva do possível, no sentido daquilo que o indivíduo pode racionalmente esperar da sociedade.

(...)

(...) Cabe, em primeiro lugar, ao legislador julgar, sob sua responsabilidade, quando da elaboração do orçamento da economia da comunidade, levar em consideração outras preocupações, bem como a disposição expressa do artigo 109, § 2º, da Lei Fundamental de atentar às exigências de equilíbrio global (BVerfGE 33, 303, p. 333 apud SGARBOSSA, 2010, pp. 135-136, grifo nosso).

Ou seja, a supracitada conclusão obstaculizaria qualquer pretensão acima de um patamar considerado logicamente razoável de exigências sociais, razão pela qual o Tribunal decidiu, nesse caso específico, que o Poder Público não estaria obrigado a disponibilizar um número ilimitado de vagas para acolher todos os interessados em ingressar nas universidades públicas (KELBERT, 2011; SARLET, 2012). Em essência, tal julgado definiu que as decisões da macrojustiça, que favorecem toda a sociedade, contrapõem-se às decisões de microjustiça, que atuam contra o patamar de igualdade almejado pela população, conforme trecho da mesma decisão:

Por outro lado, não há qualquer ordem constitucional no sentido de que, para cada candidato, em qualquer época e local de estudo à sua escolha, os custosos investimentos em educação superior sejam orientados exclusivamente em função da demanda pelos flutuantes e variados fatores individuais. Isso conduziria a uma outra falsa concepção da liberdade, na qual seria desconsiderado que a liberdade pessoal não pode ser dissociada da função da capacidade e do equilíbrio do conjunto, permitindo realizar uma conexão ilimitada da compreensão dos direitos subjetivos em detrimento da coletividade, a qual é incompatível com a ideia de Estado Social95 (BVerfGE, 33, 303, p. 335 apud SGARBOSSA, 2010, p. 137).

Dessa forma, o conceito da reserva do possível, ao partir das concepções jurisprudenciais do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha em seus julgados dos anos 1970, apresenta como característica principal a necessidade comprobatória da existência de recursos financeiros como meio apto para se efetivar os direitos fundamentais sociais, pois segundo Kelbert (2011):

95 No original: “Andererseits verpflichet ein etwaiger Verfassungsauftrag aber nicht dazu, für jeden Bewerber zu jeder Zeit den von ihm gewünschten Studienplatz bereitzustellen und auf diese Weise die aufwendigen Investitionen im Hochschulbereich ausschlieblich von der häufig fluktuierenden und durch mannigfache Faktoren beeinfluBbaren individuellen Nachfrage abhängig zu machen. Das liefe auf ein Mibverständnis von Freiheit hinaus, bei dem verkannt würde, daB sich persönliche Freiheit auf die Dauer nicht losgelöst von Funktionsfähigkeit und Gleichgewicht des Ganzen verwirklichen läBt und daB ein unbegrenztes subjektives Anspruchsdenken auf Kosten der Allgemeinheit unvereinbar mit dem Sozialstaatsgedanken ist.” BVergGE, 33, 303, p. 335 apud Sgarbossa (2010, p. 137).

(...) se consignou que a prestação de direitos sociais fica na dependência da existência de meios e recursos, mormente os financeiros, o que se manifesta por meio dos orçamentos públicos, bem como da disponibilidade de dispor desses meios e recursos, aspectos que compõem as dimensões da reserva do possível (KELBERT, 2011, p. 71).

Dessa forma, o princípio da reserva do financeiramente possível pode ser utilizado como instituto de restrição da aplicação de direitos fundamentais em sua integralidade, só cabendo a efetivação de um núcleo básico, ou seja, um mínimo existencial de direito em respeito a uma genérica e abstrata dignidade da pessoa humana. Como nos ensina o mantra do direito econômico, as necessidades são infinitas, mas os recursos são finitos, apesar de não haver nenhum critério ou indicador que comprove o equilíbrio pragmático de tal afirmação.

2.2.1 O Advento do Princípio da Reserva do Possível no Brasil: a análise doutrinária

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