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Sobre o conceito e a natureza jurídica da Reserva do Possível no Supremo Tribunal Federal

INTRODUÇÃO 27 1 A TRAJETÓRIA DO CONCEITO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: da

2 RESERVA DO POSSÍVEL E O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: do subfinanciamento crônico ao desfinanciamento da política pública de saúde

2.2.3. Sobre o conceito e a natureza jurídica da Reserva do Possível no Supremo Tribunal Federal

Avaliando o material empírico da pesquisa em tela por meio da leitura analítica dos acórdãos acima selecionados, concluímos que não há um conceito definido e específico sobre o que seria a reserva do possível nas declarações dos ministros do STF. Há, inclusive, a utilização das expressões “reserva do financeiramente possível” e “reserva financeira do possível” como sinônimos da expressão “reserva do possível”, sem um esforço analítico sistemático para se projetar a construção de um conceito objetivo sobre o que seria, afinal, a reserva do possível.

Apesar dessa constatação, há alguns elementos que poderíamos traçar como integradores de uma aproximação conceitual judicializada sobre o que se compreenderia como reserva do possível no âmbito do STF. Para tanto, utilizaremos como ponto de análise os votos dos ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes, pois são, juntos, responsáveis por 70% (setenta por cento) dos votos sobre essa temática na jurisprudência da corte (SILVA, 2016).

O primeiro elemento de definição da reserva do possível poderia ser sintetizado no seguinte raciocínio: o de que a implementação principalmente dos direitos fundamentais sociais, classificação em que se inclui o direito à saúde, depende de uma atuação concreta e onerosa por parte do Estado, leia-se investimento financeiro. O outro elemento seria uma relativização ao primeiro, pois a implementação desses direitos fundamentais sociais poderia sofrer uma limitação material de cunho orçamentário, a depender da fragilidade econômica do ente estatal, com a ressalva de que deveria ser judicialmente comprovada. Por fim, conclui-se que a comprovação objetiva da incapacidade financeira do Estado para efetivação de direitos sociais tornaria inexigível a prestação imediata da obrigação estatal em virtude justamente do limite econômico-material. Deveria ser respeitada a interpretação baseada na razoabilidade e proporcionalidade sopesada pelo conflito entre o princípio da

dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial versus o princípio da reserva do financeiramente possível.

Dessa forma, concluímos que não há um conceito explícito do que seria a reserva do possível, mas apenas aproximações conceituais tendo em vista os julgados do STF analisados nesta tese, principalmente os decididos pelos ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes, responsáveis por mais de 70% (setenta por cento) dos casos sobre a matéria.

Sobre a natureza jurídica da reserva do possível, a maioria dos ministros que julgou a matéria relata que se trata de um valor normativo inerente a um princípio101, tal qual nosso entendimento na análise inicial neste capítulo, na parte sobre o valor normativo atribuído pela doutrina. Mas tal definição não é utilizada como referência nas decisões, variando conforme as seguintes situações: ministro votante, tempo, conteúdo, matéria e critério jurídico a ser utilizado.

Assim como não há um conceito definitivo e claro, seguido por todos os ministros em qualquer situação, que sedimente uma aguardada segurança jurídica e coerência jurisprudencial, sobre o que seria a reserva do possível; também concluímos, pela análise ora realizada, que não há uma definição assertiva sobre a natureza jurídica da reserva do possível. Às vezes, a reserva do possível tem o valor normativo de cláusula ou até mesmo de teoria, isso no entendimento dos ministros do órgão de cúpula do Poder Judiciário (STF), não havendo estabilidade conceitual.

Dessa forma, destaca-se que não há uma justificativa sobre o critério a ser utilizado para a definição da natureza jurídica da reserva do possível. Os ministros do Supremo simplesmente a classificam sem aprofundar sobre a questão do valor normativo posto ao termo em comento (FALSARELLA, 2012).

Por meio da análise da jurisprudência do STF a respeito da relação entre a reserva do possível e o direito à saúde, constatam-se duas funções exercidas pelo princípio da reserva do possível: a) o de ser um instituto responsável por integrar o aspecto econômico da política pública com o direito e seus instrumentos jurídicos de decisão, incluindo o direito econômico em si; b) o de ser uma ferramenta utilizada como importante

101 STF: ADI 3768, Rel. Min. CarménLúcia, j. 19/09/2007, p. 12. STF: RE 368.564, Rel. Min. Menezes Direito, j. 13/04/2011, p. 23. STF: RE 642.536 Agr, Rel. Min. Luiz Fux, j. 05/02/2013, p. 8.

STF: RE 592.581, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 13/08/2015, p. 45. STF: RE 581.488, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 03/12/2015, p. 56.

condicionante a ser avaliada para a implementação de políticas públicas pela via judicial (WANG, 2008).

Outra observação sobre a interpretação da reserva do possível na jurisprudência da Suprema Corte brasileira seria o uso do mínimo existencial como limite à concretização da reserva do financeiramente possível. Ou seja, mesmo que os entes públicos comprovassem não ter dinheiro em suas contas públicas para efetivar as demandas de saúde pleiteadas pelos autores, dever-se-ia cumprir com o mínimo existencial do demandante, respeitando o supraprincípio da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, ratifica-se pela jurisprudência do STF a razoabilidade proporcionada pela demonstração da reserva do possível, mas com o cumprimento de um mínimo existencial de saúde para o cidadão requerente102.

2.3 A RESERVA DO POSSÍVEL E O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: um retrocesso sanitário?

Iniciaremos nesta parte do capítulo uma problematização em relação ao princípio da reserva do possível frente ao direito fundamental social à saúde. Afinal, a utilização da reserva do possível pelo direito brasileiro poderia ser considerada um retrocesso sanitário, no sentido de obstaculizar a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) de acordo com os parâmetros constitucionais?

Krell (2002) já inicia o debate afirmando que o princípio da reserva do possível não pode ser aplicado em nossa realidade, pois caso os doutrinadores ou operadores do Direito alemães se confrontassem com o quadro socioeconômico de exclusão social do Brasil e, consequentemente, com a ausência de condições mínimas para o usufruto de uma existência digna, passariam a exigir a atuação do Poder Judiciário para, juntamente com outros poderes da República, tentar amenizar as desigualdades sociais existentes.

Complementando, Krell (2002) ainda destaca que se as condições para a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais se resumirem à existência de recursos financeiros nos caixas de governos, a eficácia em torno dessa efetivação se aproximará de zero, realçando que os direitos sociais não devem ser postos abaixo das condicionantes econômicas, sob o risco de se relativizar a legitimidade desses direitos. Tal modo de operação poderia ocasionar uma crise do incipiente Estado Social e Democrático de Direito brasileiro ainda em via de consolidação, não sendo positiva a comparação de

102 Porém, no próximo capítulo, veremos que o mínimo existencial pode ter um efeito de retrocesso sócio- sanitário quando interpretado à luz do direito universal à saúde no Brasil.

uma economia central do continente europeu com outro tipo de formação cultural e institucional.

Cunha Jr (2010), ratificando o pensamento de Krell (2002), é ainda mais incisivo, ao fazer constar que, mesmo com os avanços conjunturais nos últimos anos, representados por políticas de transferência de renda e ratificação das políticas públicas, não se enxerga uma mudança estrutural efetiva no Brasil, o qual ainda figura entre os países líderes de estatísticas de concentração de renda e de população sobrevivendo abaixo da linha de pobreza103. Tal conjuntura sinaliza, segundo o autor, uma pretensa exigência para que os direitos sociais sejam retirados da condição de reféns do condicionamento provocado propositadamente pela justificativa do princípio da reserva do possível.

Como vimos, o princípio da reserva do possível é conceituado apresentando como referência duas principais características: reserva do possível considerada fática e reserva do possível de vertente jurídica. A primeira se caracterizando como a existência de um contingenciamento financeiro a que se encontram submetidos os direitos prestacionais; e a segunda se caracterizando pela ausência de previsão orçamentária que destine os recursos financeiros à consecução de um determinado interesse ou requerimento de uma determinada demanda no campo do direito sanitário (DA SILVA, 2010).

Sobre a reserva do possível de característica fática há o aspecto de uma crítica sobre a inexistência de critérios jurídicos ou, principalmente, econômicos, que possam balizá-la, correndo o risco de se tornar uma ficção conceitual, como relata Souza (2009):

A reserva do possível fática (ausência de recursos) é um conceito ainda mais problemático, ainda mais fluido, ainda mais polêmico que o de mínimo existencial. Tem sido alegada indiscriminadamente pelo Poder Público para se furtar à implementação de direitos fundamentais e não existem ainda critérios objetivos para delimitá-la (SOUZA, 2009, p. 4000, grifo nosso).

Farena (1997) destaca o risco de se colocar como pressuposto básico para a efetivação dos direitos sociais a quantidade de recursos suficientes do Estado de forma abstrata, explicitando assim um retrocesso social que imobilize as pretensões contidas nas políticas públicas ratificadas em nossa Constituição Federal:

103 Segundo reportagem do jornal Folha de São Paulo, de 19 de agosto de 2019, baseada no Relatório da Desigualdade Global – Escola de Economia de Paris, o Brasil apresenta-se hoje como o país democrático que mais concentra renda no 1% do topo da pirâmide. Disponível em: https://temas.folha.uol.com.br/desigualdade-global/brasil/super-ricos-no-brasil-lideram-concentracao-de- renda-global.shtml. Acesso em 20 out. 2019.

As alegações de negativa de efetivação de um direito social com base no argumento da reserva do possível devem ser sempre analisadas com desconfiança. Não basta simplesmente alegar que não há possibilidades financeiras de se cumprir a ordem judicial; é preciso demonstrá-la. O que não se pode é deixar que a evocação da reserva do possível converta- se em verdadeira razão de Estado econômica, num AI-5 econômico que opera, na verdade, como uma anti-Constituição, contra tudo o que a Carta consagra em matéria de direitos sociais (FARENA, 1997, pp. 13-14, grifo nosso).

Já sobre a reserva do possível jurídica, a crítica é sustentada pela defesa de um maior protagonismo do Poder Judiciário no que tange ao controle da legislação orçamentária. Para Grau (2011), a atuação do Poder Judiciário, em colaboração com os demais poderes, deve conter um viés e inclinação pró-desenvolvimento dos direitos sociais, infringindo retrocessos político-jurídicos que venham a surgir, pois o processo de aplicação do direito por meio do mandamento advindo das decisões judiciais é um processo de permanente recriação e atualização do direito, abrindo espaços para inovações e retirando principalmente o juiz do estado de letargia de ser apenas “a boca da lei”, devendo não apenas reproduzir, mas produzir o direito com o intuito de efetivar a aplicação constitucionalmente imediata de um direito fundamental social. É o caso de inverter as prioridades: o direito social é que deve influenciar o orçamento e não o contrário.

Para concluirmos o debate em torno da reserva do possível fática e jurídica, destacamos a passagem de Cunha Jr (2010), em que o autor advoga pela imprescindibilidade da comprovação de ausência de recursos financeiros no âmbito do Estado para servir de garantia para o cumprimento dos direitos sociais, e que, ainda segundo o autor, o que ocorre na realidade é uma má distribuição desses recursos e até mesmo desvios ilícitos. Neste caso, sustenta Cunha Jr (2010), o Poder Judiciário deve atuar tendo como referência o princípio da proibição do retrocesso social104, para evitar teses restritivas como a reserva do possível, alertando sobre instrumentos de fiscalização sobre o gasto público a fim de evitar casos como desvios de verbas com obras superfaturadas, cartões corporativos, corrupção ativa e passiva, empresas corruptoras e corruptas, cultura “do favor e do jeitinho”; para que esse dinheiro seja aplicado em prol das necessidades básicas da comunidade, de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Concordamos com a interpretação de que o direito à saúde, assim como todos os direitos – sendo estes sociais ou liberais –, não seria absoluto, devendo-se analisar a

104 Utilizaremos, no último capítulo, o princípio da proibição do retrocesso social como uma das propostas jurídico-políticas para a consolidação do direito constitucional à saúde no Brasil.

proporcionalidade, a razoabilidade e o caso específico em si. Mas utilizar-se do argumento de que não há recursos disponíveis sem comprovação empírica é característica de setores que têm como escopo principal restringir e, até mesmo, excluir o direito à saúde da Constituição, atacando principalmente os princípios da integralidade, universalidade e equidade. É urgente, também aqui, que a hermenêutica jurídica atue com o fito de proibir este retrocesso social denominado “reserva do financeiramente possível” (MOREIRA, 2011).

Complementamos esse raciocínio com a citação de trecho da tese de doutorado de Fernando Aith (2006, pp. 397-398), intitulada “Teoria Geral do Direito Sanitário Brasileiro”, em que se defende a totalidade do princípio constitucional da integralidade em seus mais variados níveis de complexidade no caso específico da saúde, sendo, para isso, de fundamental importância manter um lastro orçamentário condizente com essa atuação dos entes públicos para que se faça valer a nossa Constituição da República:

(...) a diretriz de integralidade das ações e serviços públicos de saúde representa um importante instrumento de defesa do cidadão contra eventuais omissões do Estado, pois este é obrigado a oferecer, prioritariamente, o acesso às atividades preventivas de proteção da saúde. A prevenção é fundamental para evitar a doença, entretanto, sempre que esta acometer um cidadão, compete ao Estado oferecer o atendimento integral, ou seja, todos os cuidados de saúde cabíveis para cada tipo de doença, dentro do estágio de avanço do conhecimento científico existente. Assim, sempre que houver uma pessoa doente, caberá ao Estado fornecer o tratamento terapêutico para a recuperação da saúde dessa pessoa de acordo com as possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento científico. Assim, não importa o nível de complexidade exigido, a diretriz de atendimento integral obriga o Estado a fornecer todos os recursos que estiverem ao seu alcance para a recuperação da saúde de uma pessoa, desde o atendimento ambulatorial até os transplantes mais complexos. Todos os procedimentos terapêuticos reconhecidos pela ciência e autorizados pelas autoridades sanitárias competentes devem ser disponibilizados para a proteção da saúde da população (AITH, 2006, pp. 397-398, grifo nosso).

Portanto, a ultimação do direito à saúde por parte do Estado é obrigatória e deve atender a todos. A reserva do possível não deve ser usada como argumento a obstaculizar esta conquista da nossa cidadania, pois, como vimos, ela necessita de uma melhor definição em relação a seus critérios objetivos, assim como as procuradorias jurídicas dos entes públicos necessitam comprovar seu pressuposto básico – a escassez de recursos por parte do Estado brasileiro, Estado aqui utilizado em sentido genérico, abarcando todos os entes públicos de nossa federação (KELBERT, 2011).

2.4 O PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL E O FINANCIAMENTO DA

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