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O Princípio da Reserva do Possível no Supremo Tribunal Federal – uma análise jurisprudencial brasileira

INTRODUÇÃO 27 1 A TRAJETÓRIA DO CONCEITO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: da

2 RESERVA DO POSSÍVEL E O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: do subfinanciamento crônico ao desfinanciamento da política pública de saúde

2.2.2 O Princípio da Reserva do Possível no Supremo Tribunal Federal – uma análise jurisprudencial brasileira

No específico campo da judicialização do direito à saúde, o princípio da reserva do possível é acionado geralmente pelos entes da federação – União, estados, Distrito Federal e municípios – para justificar a argumentação de ausência de recursos financeiros no caixa destes, impossibilitando, dessa maneira, o cumprimento de sentença judicial favorável ao autor, mormente pleiteando demandas sanitárias de alto custo e complexidade.

A contestação jurídica em que se embasam as Administrações Públicas dos entes mencionados por meio de suas procuradorias jurídicas para tentar inviabilizar o

cumprimento de decisão judicial sobre demandas relativas ao direito à saúde relaciona-se com o argumento central da denominada escassez de recursos financeiros. Segundo tal alegação, os gastos não previstos no orçamento e requisitados por meio da judicialização poderiam comprometer a disponibilidade financeira para a efetivação das políticas públicas, não somente na especificidade da política pública de saúde96 mas também na implementação de outras políticas de cunho social.

Dessa forma, já que a responsabilidade pela execução do orçamento público, como competência legal, recai sobre o poder Executivo – que também é o destinatário das decisões judiciais condenatórias – urge, portanto, quando impugnado em juízo, invocar o princípio da reserva do possível, como tentativa argumentativa de afastar a apreciação judicial sobre o cumprimento de uma prestação no campo sanitário.

Nesta seção, tentaremos compreender a função da reserva do possível na jurisprudência do STF. Mais uma vez, assim como no capítulo inicial desta tese, justificaremos nossa análise tendo como referência o STF, pois esse é o órgão de cúpula das decisões nacionais, sendo a corte suprema que reflete e reverbera as discussões político- jurídicas mais importantes da nação, influenciando julgados de outros tribunais superiores, assim como de várias instâncias inferiores espalhadas por toda a jurisdição de nosso país; além de tratarmos de um princípio eminentemente constitucional.

Procuraremos destrinchar algumas questões referentes à reserva do possível em sua inserção na jurisprudência da mais alta corte do país. Para tanto, partiremos de dilemas norteadores tais como: existe uma precisa conceituação sobre a reserva do possível nos acórdãos do STF? Como o STF trata o conceito de reserva do possível no aspecto geral do termo? Como é compreendida a relação entre a reserva do possível e o direito à saúde na jurisprudência da Suprema Corte? Há critérios estipulados pelo STF para a justificativa da utilização do princípio da reserva do possível pelos entes estatais? Como se daria a comprovação da escassez de recursos financeiros pelas partes demandadas?

96 Os casos mais famosos inseridos na judicialização relativos a gastos não previstos na política pública de saúde referem-se às demandas de medicamentos fora da lista do SUS, ou seja, que não fazem parte da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) e das Relações Municipais de Medicamentos (REMUME). Tal conclusão encontra-se na pesquisa “Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução”, divulgada no ano de 2019 em uma parceria entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER). Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2019/03/66361404dd5ceaf8c5f7049223bdc709.pdf. Acesso em 19 out. 2019.

A pesquisa em questão consiste na análise de acórdãos disponibilizados no portal eletrônico do STF97, além de revisão bibliográfica sobre a matéria (WANG, 2008; FALSARELLA, 2012; SILVA, 2016). Esclarecemos que delimitamos por pesquisar somente acórdãos, já que estes são decisões colegiadas que, em razão disso, expressam melhor o pensamento do Tribunal como um todo, o que o próprio glossário jurídico disponibilizado pelo STF confirma, visto que este define os acórdãos como “1. Decisão final prolatada por órgão colegiado. 2. Julgamento colegiado proferido por tribunal, o qual serve como paradigma para solucionar casos análogos”98. Assim, teremos uma compreensão de como o Supremo lida com a reserva do possível como órgão colegiado, e não como divulgador de decisões individuais.

Dessa maneira, a seleção do universo da pesquisa foi realizada acessando-se o sítio eletrônico do STF na seção "Jurisprudência > pesquisa > pesquisa de jurisprudência” e inserindo-se primeiramente o termo geral “reserva do possível”, o que trouxe um retorno de 156 (cento e cinquenta e seis) acórdãos. Especificamente, inserindo o termo “reserva do possível direito à saúde”, o retorno foi de 26 (vinte e seis) acórdãos e, por fim, “reserva do possível saúde”, chegou-se a um total de 27 (vinte e sete) acórdãos99.

Desse universo entre 26 (vinte e seis) e 27 (vinte e sete) acórdãos sobre a matéria, selecionamos as deliberações que continham em suas respectivas ementas as nomenclaturas “reserva do possível” e “reserva do financeiramente possível”, nomenclaturas essas que são compreendidas como sinônimos pelo Supremo. Também abordamos as de maiores impactos com força vinculante na jurisprudência do Tribunal, ou seja, as mais citadas em votações e debates posteriores.

Destarte, no resultado definitivo sobre a pesquisa estipulada, os principais julgados sobre a reserva do possível e o direito à saúde, apresentando um recorte temporal entre 2004 e 2015, foram os seguintes: ADPF 45/2004; STA 223 AgR/2008; STA 175 AgR/2010; SL 47/2010; RE 368564/2011; RE 642536 AgR/2013; RE 581352 AgR/2013; ARE 727864 AgR/2014; RE 581488/2015. Embora a ADPF 45/2004 e a STA 175 AgR/2010 já tenham sido analisadas no primeiro capítulo desta pesquisa, serão novamente

97 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/. Acesso em 19 out. 2019. 98 Disponível em: http://stf.jus.br/portal/glossario/. Acesso em 19 out. 2019.

99 A diferença de 1 (um) acórdão entre uma pesquisa e outra foi constatada pela inclusão de um agravo regimental a mais quando utilizamos o termo “reserva do possível saúde”. Disponível em: http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RESERVA+DO+POSSIVEL+SAUDE

%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/ybz7u7bn e

http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RESERVA+DO+POSSIVEL+DIREIT O+A+SAUDE%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/ybk2so3j. Acesso em 19 out. 2019.

citadas nesta parte, pois também são “leading cases”100 quando o assunto se refere à reserva do possível e o direito à saúde.

Iniciando pelo primeiro julgado, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 45 em Medica Cautelar (MC), datada de 29/04/2004, destacada no primeiro capítulo desta tese quando analisamos a terceira fase de julgamentos do STF sobre o Custo dos Direitos, o relator min. Celso de Mello primeiramente esboça uma apresentação do princípio da reserva do possível com base na obra de Holmes e Sustein (1999):

Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível” (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”, 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.

É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política (STF-ADPF:45 DF, Relator: Min. Celso de Mello, j. 29/04/2004; DJ 04/05/2004, grifo nosso). A seguir, o relator pondera que para o Estado implementar os direitos econômicos, sociais e culturais, como o direito à saúde, necessitaria de “um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias”, não sendo possível ao ente público financiar e implementar políticas sociais sem a devida rubrica orçamentária; mas ressalva que para o Estado abrir mão de cumprir com os desígnios constitucionais deverá comprovar sua argumentação baseada na reserva do possível. Caso contrário, se demonstrará uma grande fraude, impossibilitando, de modo ilegítimo e arbitrário, o mínimo existencial à saúde para os cidadãos contribuintes responsáveis pela sustentação do Estado:

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político- administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo,

100 A expressão “leading case”, conforme Soares (1999), apresenta o seguinte significado: “é uma decisão que tenha constituído uma regra importante, em torno da qual outras gravitam” (SOARES, 1999, p. 40).

arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade (STF-ADPF:45 DF, Relator: Min. Celso de Mello, j. 29/04/2004; DJ 04/05/2004, grifo nosso).

Como foi discutido no primeiro capítulo desta tese, a ADPF 45 foi a primeira decisão na seara do Supremo em que um ministro da corte elaborou explicitamente um critério para se averiguar o cabimento do princípio da reserva do possível. O critério sugerido lastreava-se na junção entre razoabilidade da pretensão e disponibilidade financeira do Estado. Caso ambos os elementos formadores do critério sugerido pelo ministro fossem afirmativos, comprobatórios e cumulativos (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado), estaria configurada obrigação estatal em efetivar o direito demandado, caso contrário, restaria descaracterizada a possibilidade do ente público de realização prática de tais direitos, no nosso caso específico, do direito fundamental à saúde. Como se atesta:

Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da "reserva do possível", ao processo de concretização dos direitos de segunda geração – de implantação sempre onerosa –, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas.

Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar- se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos (STF-ADPF:45 DF, Relator: Min. Celso de Mello, j. 29/04/2004; DJ 04/05/2004, grifo nosso).

Outro julgado paradigmático sobre o princípio da reserva do possível e sua ligação com o direito à saúde, assim como também relatamos no primeiro capítulo, desta vez na análise sobre a quarta fase de julgamentos do STF, denominada Medicina Baseada em Evidências (MBE), foi o Agravo Regimental impetrado pela União na Suspensão de Tutela Antecipada nº 175 – AgR na STA 175/CE, tendo como relator o min. Gilmar Mendes.

No conteúdo do voto, o relator apresenta uma solução para os complexos casos que abarcam o direito prestacional à saúde, na tentativa de minimizar o dilema de, por um lado, haver muitas demandas na área sanitária e, por outro, ser justificado pelos entes públicos um orçamento cada vez mais ínfimo. Desse modo, o ministro Gilmar Mendes defende que o Estado utilize o critério da justiça distributiva baseada em escolhas alocativas – para tentar minar as escolhas trágicas – e a ratificação de uma política pública que apresente como parâmetro métodos de igualdade material frente ao simplismo da igualdade formal e a defesa de uma interpretação que respeite a macrojustiça contra o limitado conceito da microjustiça, senão vejamos:

Dessa forma, em razão da inexistência de suportes financeiros suficientes para a satisfação de todas as necessidades sociais, enfatiza-se que a formulação das políticas públicas e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria, invariavelmente, escolhas alocativas. Essas escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem ‘escolhas trágicas’ pautadas por critérios de macrojustiça (STF – STA: 175 CE, Relator: Min. PRESIDENTE, j. 17/03/2010; DJ 30/04/2010, grifo nosso).

Apesar de que, em nosso entendimento, não há uma obrigação político-jurídica muito menos uma obrigação de cunho financeiro-econômico de definição conceitual do princípio da reserva do possível pela Suprema Corte, cabendo esse desiderato a obras doutrinárias que também são importantes fontes do direito, o debate atual no STF segue na tentativa de esboçar um conceito da reserva do possível, como argumenta o ministro Edson Fachin em julgado do Recurso Extraordinário RE 592581 de 2015:

Para além disso, sua efetiva realização (de direitos sociais) apresenta dimensão econômica que faz depender da conjuntura; em outras palavras, das condições que o Poder Público, como destinatário da norma, tenha de prestar. Daí que a limitação de recursos constitui, na opinião de muitos, no limite fático à efetivação das normas de natureza programática. É a denominada 'reserva do possível'. Pois a 'reserva do possível', no que respeita aos direitos de natureza programática, tem a ver não apenas com a possibilidade material para sua efetivação (econômica, financeira, orçamentária), mas também, e por consequência, com o poder de disposição de parte do administrador, o que imbrica na discricionariedade, tanto mais que não se trata de atividade vinculada (STF: RE 592581, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 13/08/2015, p. 70, grifo nosso).

Constatamos, dessa maneira, em uma descrição inicial sobre a jurisprudência brasileira, alguns pré-requisitos de impacto gerados pelo princípio da reserva do possível, em um sentido geral do termo. No próximo item, discorreremos especificamente sobre o lugar da reserva do possível na jurisprudência da corte suprema, em uma sistematização mais específica sobre a matéria.

2.2.3. Sobre o conceito e a natureza jurídica da Reserva do Possível no Supremo

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