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CAPÍTULO 3 O EXERCÍCIO DA CIDADANIA POLÍTICA NA REPÚBLICA

3.2 Sufrágio

3.2.1 A natureza jurídica do sufrágio

A natureza jurídica do sufrágio tem suscitado polêmica entre os autores que se debruçaram sobre o assunto.

Segundo Azambuja, para os que se baseavam na doutrina da soberania popular e da origem contratual do Estado, o voto era considerado “um direito individual, imprescritível e inalienável, que pertencia a todos os membros da comunidade nacional. Essa corrente, revigorada pelas conquistas e franquias obtidas contra o absolutismo, pleiteava a extensão do voto e via nele o símbolo da luta contra os antigos privilégios da nobreza”280.

279 CANOTILHO, op. cit., p. 432. 280 AZAMBUJA, op. cit., p. 337.

Azambuja preleciona que “Entre os adversários do regime democrático e mesmo entre alguns que o aceitam, têm surgido críticas acerbas contra o sufrágio, mostrado-lhe os vícios e os defeitos”281. Viam no sufrágio, não um direito individual, mas apenas uma função de escolha dos representantes para governar.282 Azambuja, embora considere que o sufrágio não seja um meio infalível para designar os representantes, concorda que, “de todos os meios para designar os homens mais capazes para o governo, o sufrágio é o menos defeituoso”283, sob os seguintes argumentos: entre a eleição, a hereditariedade e a força, como meio para preenchimento de cargos de governo, a eleição pelo sufrágio é o mais aceitável, além de ser o único meio realmente democrático.284 Quanto à natureza jurídica do sufrágio, embora tenha havido grandes discussões a respeito, autores como Fávila Ribeiro, Darcy Azambuja, entre outros, passaram a considerar o sufrágio um direito - de designar as pessoas que devem exercer os cargos eletivos - e ao mesmo tempo função, levando em conta o dever do cidadão de manifestar sua vontade pelo voto para escolher seus governantes no regime representativo.285

Fávila Ribeiro assevera: “A obrigatoriedade afirma-se no dever político de participar das atividades exercidas mediante o sufrágio popular, para que a aritmética eleitoral possa exprimir autêntica vontade coletiva”286.

281 AZAMBUJA, op. cit., p. 335. 282 Ibid., p. 337.

283 AZAMBUJA, op. cit., p. 335. 284 Ibid., p. 335-336.

285 DALLARI, op. cit., p. 155. 286 RIBEIRO, op. cit., p. 191.

Ocorre que, com a obrigatoriedade do exercício do sufrágio, respeitando o entendimento de Fávila Ribeiro, o resultado do pleito somente representará a autêntica vontade coletiva quando o voto for depositado na urna com consciência de cidadania política e com absoluta liberdade, ou seja, quando o cidadão desejar participar da vida política do Estado, e não enquanto for obrigado a fazê-lo de forma coercitiva sob pena de sofrer punições.

José Afonso da Silva ao escrever sobre a natureza do sufrágio posicionou-se no seguinte sentido:

O sufrágio é um Direito Público subjetivo democrático, que cabe ao povo nos limites técnicos do princípio da universalidade e da igualdade de voto e de elegibilidade. É um direito que se fundamenta [...] no princípio da soberania popular e no seu exercício por meio de representantes.

A distinção entre o direito de sufrágio e o voto, que encontra apoio na Constituição (art. 14 e seu § 1Q), mostra que não tem cabimento discutir se o sufrágio é direito, função ou dever, porque ele é apenas direito, de que o voto é tão-só uma manifestação no plano prático, um dos atos de seu exercício.287

Para Darcy Azambuja, pouco importa a natureza jurídica do sufrágio, porque ele considera que:

Se é direito, é um direito que deve ser exercido; se é uma função, é uma função que deve caber a todos os cidadãos capazes de validamente manifestar sua opinião, pois o poder repousa no consentimento dos indivíduos, ou pelo menos da maioria deles.288

O que se constata é que os autores que se dedicaram a escrever sobre a natureza jurídica do sufrágio trataram do tema com uma certa indiferença e passaram a aceitar o sufrágio tanto como um direito, uma função ou dever, ao argumento de que o povo tem a obrigação de designar as pessoas que devem

287 SILVA, J.A., op. cit., p. 314. 288 AZAMBUJA, op. cit., 1998, p. 337.

exercer os cargos eletivos, sem considerar que é o povo o detentor do poder, ou seja, o titular da soberania.

Talvez o motivo pelo qual, no Brasil, adotou-se a obrigatoriedade do voto foi o fato de que nossos direitos políticos não foram objeto de conquista efetiva da sociedade civil. Enquanto na Inglaterra, a liberdade civil e política foram conquistadas simultaneamente, resultado de lutas vividas pela Sociedade que se arriscava, nos comícios e nas revoluções, contra o absolutismo, no Brasil, os direitos políticos foram concedidos na Constituição de 1824, sem que houvesse uma ativa vontade para reivindicá-los, o que prejudicou a consolidação da consciência de cidadania.289

Nesse sentido, Oliveira Vianna posicionou-se:

Os ingleses conquistaram estas liberdades, vivendo-as, nos comícios, nos motins, nas revoluções, nos cadafalsos, jogando a vida, ora com a espada na mão, ora com o mosquete de pederneira e a pólvora seca de Cromwell. Já o nosso método caboclo foi outro, menos trabalhoso, sem dúvida: estas garantias e liberdades sempre as tivemos on paper e ‘por cópia uniforme’. Toda diferença - imensurável diferença - entre eles e nós está nisto: - e, entretanto, isto é insuprível [...].290

Portanto, no Brasil, ocorreu um processo histórico atípico no que se refere à construção da cidadania, pois os direitos políticos foram concedidos num processo de cima para baixo, antes mesmo que os brasileiros tivessem adquirido os direitos civis.

289 CASTRO JR., Osvaldo Agripino de. Guia da cidadania: teoria, prática e legislação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998. p. 14.

290 VIANNA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1955. p. 633-634.

Assim, considerando que o direito dos brasileiros em participar da vida política do Estado não foi resultado de luta, mas uma concessão do próprio Estado, acabou ocorrendo uma espécie de retardamento no que tange à consciência de cidadania política, razão pela qual a obrigatoriedade do exercício do sufrágio foi passando de Constituição a Constituição, sem que houvesse maior questionamento pela Sociedade.

Todavia, hoje, diante da evolução dos direitos civis e sociais garantidos pela própria Constituição Federal, os direitos políticos devem ser exercidos por ato de consciência dos cidadãos, e não por obrigação. Para isso, o que se faz necessário é que o povo seja educado para o exercício de seu

status de cidadania.

Sobre a educação do povo para a democracia Néri da Silveira ponderou:

[...] se na ordem democrática, importa assegurar as liberdades civis e individuais, não menos exato é que o povo há de se preparar, consequentemente, para o efetivo e correto exercício das liberdades políticas. A democracia, enquanto forma de convivência social, é um valor, realizável e inexaurível. Assegurada, nas instituições, a universalidade do sufrágio, tarefa da maior importância com vistas a consolidar esse regime, impende ocorrer, qual seja, a de educacão do p o v o

para a democracia. [...] A educação para a democracia não pode, ademais ser obra, apenas, das campanhas eleitorais. Iniciada no lar, continuada na escola, desenvolvida no cotidiano das leituras e das informações, a cultura política levará o cidadão ao partido, à candidatura, ao sufrágio consciente e livre.291 [Grifei].

Desta forma, o sufrágio como função ou dever não se coaduna com o princípio basilar da democracia, que é a liberdade, devendo ser considerado pelo processo democrático da gerência da coisa pública.