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CAPÍTULO 2 REPRESENTAÇÃO POLÍTICA MODERNA

2.4 O princípio da regra da maioria e seus limites

Bobbio, ao escrever sobre o princípio da regra da maioria, diz que, embora a opinião comum seja de que um sistema democrático deva ser caracterizado pela regra da maioria - como se democracia e princípio majoritário fossem conceitos da mesma extensão e portanto coincidentes - , na verdade, democracia e regra da maioria, em vez de serem conceitos de igual extensão, têm apenas uma parte da sua extensão em comum, porque podem ocorrer decisões coletivas de sistemas democráticos tomadas não com base na regra da maioria, assim como sistemas não-democráticos poderão conhecer a regra da maioria. Isso quer dizer que é equivocada a afirmação que a democracia é, em absoluto, “governo da maioria”, pois democracia significa

186 BOBBIO, Teoria..., p. 281. 187 Ibid., p. 283.

poder político nas mãos de muitos em oposição ao poder de um só ou de poucos, porém, nem sempre é aplicada a regra da maioria, sem que por isso tais decisões tomadas deixem de ser incluídas entre os sistemas democráticos.188 O que caracteriza a democracia não é o consenso do maior número.

Bobbio entende que:

[...] para se afirmar que um sistema é democrático não basta saber que o princípio de maioria maximiza a autodeterminação e portanto o consenso, mas precisa saber quantos são aqueles que se beneficiam dessas vantagens (posto que sejam vantagens embora possamos admitir que não sejam) do princípio de maioria.189

Para ele, o que caracteriza o sistema democrático não é o princípio da maioria, mas o sufrágio universal.

Aliás, a regra da maioria, como expediente técnico, não se preocupa com a hipótese de que os votos a serem computados tenham sido depositados com liberdade ou não, por convicção ou por medo, por vontade ou pela força. Portanto, um decisão coletiva tomada por maioria, por si só, não prova absolutamente nada a respeito da maior ou menor liberdade com que essa decisão foi tomada.190 Na verdade, infelizmente, na maior parte das vezes, “as maiorias são formadas não pelos mais livres, mas pelos mais conformistas”191. Como regra, quanto maior é a maioria, principalmente aquelas que se

188 BOBBIO, Teoria..., p. 429. 189 Ibid., p. 435.

190 Ibid., p. 436. 191 Ibid., p. 436.

aproximam da unanimidade, maior é a suspeita de que a expressão do voto não tenha sido livre.

Portanto, resultados de decisões coletivas baseadas no princípio majoritário não significam que partiram de uma Sociedade livre, ou seja, o que caracteriza o sistema democrático não é a regra da maioria. O sistema majoritário é apenas um elemento para o bom funcionamento do sistema.

Ademais, faz-se necessário salientar que o princípio da regra da maioria, suporte do regime democrático, enfrenta limites.

Canotilho, ao analisar o assunto, afirma:

A maioria não pode dispor de toda a ‘legalidade’, ou seja, não lhe é facultado, pelo simples facto de ser maioria, tornar disponível o que é indisponível, como acontece, por ex., com os direitos, liberdades e garantias e, em geral, com toda a disciplina constitucionalmente fixada (o princípio constitucional sobrepõe-se ao princípio maioritário). Por vezes a importância do assunto exige maiorias qualificadas não só para se garantir a bondade intrínseca da decisão mas também para a proteção das minorias. Por último, devem referir-se os limites internos do princípio maioritário: se ele tem a seu favor a possibilidade de as suas decisões se tornarem vinculativas por serem sufragadas por um maior número de cidadãos, isso não significa que a solução maioritária seja materialmente mais justa nem a única verdadeira. O princípio maioritário não exclui, antes respeita, ‘o pensar de outra maneira’, o ‘o pensamento alternativo’. Noutros termos: o princípio maioritário assenta politicamente num ‘relativismo pragmático’ e não num ‘fundamentalismo de maiorias’.192

Bobbio analisa outras espécies de limites que vão contra a regra da maioria, quais sejam: validade, aplicação e eficácia.

Quanto ao primeiro limite suscitado, isto é, o da validade, ele faz a seguinte indagação:

O princípio da maioria tem uma validade absoluta [...] ou a própria regra da maioria está submetida a uma outra regra superior que impede que se tome, por maioria, a decisão de abolir o princípio de maioria, e dessa maneira a sua validade não é absoluta?193

Bobbio procura responder a questão da seguinte forma:

Trata-se de fato de colocar na balança os inconvenientes que podem derivar do ato de excluir dos benefícios do princípio de maioria cidadãos dos quais se suspeita que não o respeitariam caso se tornassem maioria, e os inconvenientes que uma liberdade ilimitada pode causar à sobrevivência da liberdade.194

Assim, Bobbio entende que a maioria não pode abolir o princípio majoritário, mas somente a unanimidade, ou seja, a regra da maioria não tem validade absoluta.

No que se refere ao segundo limite por ele apontado, o da aplicação da regra da maioria, enfoca que determinadas matérias não podem ser confiadas à regra do maior número por tornar-se inoportuna ou até injusta. Os direitos do homem e do cidadão, por exemplo, considerados “invioláveis”, não podem ser limitados e muito menos suprimidos por uma decisão coletiva tomada por maioria.195

Ao lado dos princípios e dos direitos fundamentais que não são opináveis, tampouco negociáveis, há matérias impossíveis de serem decididas com o critério da maioria por razões objetivas e por razões subjetivas.

Por razões objetivas, não podem ser decididas com o critério da maioria questões científicas ou técnicas. A decisão em favor de uma tese

193 BOBBIO, Teoria..., p. 442. 194 Ibid., p. 442.

científica ou de outra, por exemplo, não pode ser submetida à regra da maioria, pois depende de conhecimentos complexos. Da mesma maneira, as decisões que dizem respeito a matérias técnicas, tais como política econômica e financeira.

Por razões subjetivas, não podem ser decididas pelo critério da maioria as questões de consciência, sendo que consciência o mesmo autor define como aquilo que se costuma chamar de “foro íntimo”.

No que tange ao terceiro limite, o de eficácia, significa dizer que o princípio da maioria não manteve todas as promessas que nasceram com o regime democrático, que era “o de transformar radicalmente as relações entre as classes sociais”196.

Bobbio afirma que o princípio majoritário não é completamente eficaz por que não tem o poder de reverter situações fáticas criadas pela ordem precedente ou por normas aprovadas anteriormente. São dificilmente reversíveis, por exemplo, as situações criadas por grandes reformas, tais como a divisão de latifúndios ou nacionalização de uma indústria.197

Embora o regime democrático enfrente limites, tendo em vista que a regra da maioria não é absoluta, considerando que “o direito da maioria é sempre um direito em concorrência com o direito das minorias com o conseqüente reconhecimento de que estas podem se tornar maiorias”198, cabe

196 BOBBIO, Teoria..., p. 446. 197 Ibid., p. 447.

aplicar nos regimes democráticos.

2.5 Democracia liberal, social e os efeitos da globalização sobre o regime