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CAPÍTULO III – A PROCESSUALIZAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS NO

2. A NATUREZA JURÍDICA DO INQUÉRITO CIVIL: PROCEDIMENTO OU

2.2 A natureza jurídica do inquérito civil e sua tendência à processualização

O inquérito civil é um procedimento administrativo prévio, a cargo do Ministério Público, que possui a finalidade de coletar elementos de convicção que possam embasar a sua atuação. É clássica a definição proposta pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello Filho, ainda quando exercia a função de Assessor do Gabinete Civil da Presidência da República, no bojo do projeto que veio a converter-se na Lei de Ação Civil Pública:

Trata-se de procedimento meramente administrativo, de caráter pré- processual, que se realiza extrajudicialmente. O inquérito civil, de instauração facultativa, desempenha relevante função instrumental. Constitui meio destinado a coligir provas e quaisquer outros elementos de convicção, que possam fundamentar a atuação processual do Ministério Público. O inquérito civil, em suma, configura um procedimento preparatório, destinado a viabilizar o exercício responsável da ação civil pública.

Conforme ressaltado por Celso de Mello, a instauração do inquérito civil é facultativa. Mas isso não significa que o órgão de execução possa dele prescindir para a

159 O princípio do contraditório, ao lado do princípio da imparcialidade do julgador, potencializa a legitimidade do procedimento, não só no aspecto institucional, mas principalmente no aspecto funcional, prestigiando uma atuação mais democrática do poder estatal. Tal é a lição de Loïc Cadiet: “Avec le principe de la contradiction e le principe de l‟impartialité, nous nous trouvons à la pointe de la pyramide de la legalité procédurale. [...] Ces deux principes ajoutent au fondement institutionnel de cette legitimité, tiré de la Constituition, une justification fonctionnelle, fondée sur une methodologie juridictionnelle ramenée, pour l‟essentiel, au débat contradictoire qu‟un juge impartial et indépendant fait respecter et respecte lui-même dans le cadre d‟une justice démocratique” (CADIET, Loïc. La

legalité procedurale em matière civile. In Revista de Processo. Ano 33. n. 161. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, jul. 2008, p. 82-83). 160

ZANETI JR., Hermes. Processo Constitucional: O Modelo Constitucional do Processo Civil

realização de investigações e coleta de informações visando a proteção dos direitos subjetivos individuais indisponíveis ou coletivos. Caso já se disponha de elementos de convicção suficientes para a propositura de Ação Civil Pública ou celebração de Compromisso de Ajustamento de Conduta, poderá o membro do Ministério Público adotar quaisquer dessas medidas sem a necessidade de instauração do inquérito civil. Poderá, ainda, caso não possua elementos suficientes, instaurar procedimento administrativo preliminar, a fim de coletar dados visando apurar a efetiva necessidade de instauração do inquérito civil.

O que não poderá fazer o membro do Ministério Público é promover a instauração de procedimentos administrativos preliminares sem prazo de conclusão (que acabam por funcionar na prática como um verdadeiro inquérito civil, sem, no entanto, sujeitar-se ao controle do Conselho Superior), ou mesmo juntar informalmente elementos de convicção ao longo dos meses, visando coletar dados para sua atuação funcional. Tais práticas desvirtuam o objetivo do inquérito civil, impedem o controle administrativo de seu regular processamento e, certamente, ferem direitos fundamentais do investigado, por se constituírem em modalidade ilegítima de exercício dos deveres- poderes outorgados pela lei161.

Vale a pena destacar, mais uma vez, que tudo o que se disse até aqui deve ser aplicado o Ministério Público. O poder estatal conferido ao membro do Ministério Público também deve ser exercido por meio de procedimentos. E o procedimento de atuação por excelência do Parquet é o inquérito civil.

A doutrina, de um modo geral, considera o inquérito civil como um procedimento administrativo de natureza inquisitiva, instaurado e presidido pelo

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Serão analisados com maior vagar, adiante, as diversas espécies de procedimentos administrativos que podem ser instaurados pelo Ministério Público para o exercício de seus deveres-poderes. Saliente-se, no entanto, desde já, que existem respeitáveis vozes na doutrina que repudiam a existência de procedimentos administrativos de natureza diversa do inquérito civil: “No nosso entendimento, todos os procedimentos administrativos utilizados pelo Ministério Público para a investigação de fatos relacionados ao exercício de direitos transindividuais devem ser considerados inquéritos civis, inclusive porque a disciplina legal é sempre a mesma. Assim, não importa o nome que se dê à investigação, se „dossiê‟, „peças de informação‟, „representação‟, „procedimento administrativo – PA‟, ou „inquérito civil‟, existem sempre os mesmos poderes, as mesmas limitações e a mesma necessidade de controle por parte de órgãos superiores da Instituição” (RODRIGUES, Geisa de Assis. Ação civil pública e termo de ajustamento de conduta:

teoria e prática. 3 ed. Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 76). O referido posicionamento encontra-se,

todavia, em descompasso com a Resolução nº 23/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público e boa parte da doutrina, que admitem a existência de outros procedimentos administrativos diversos do inquérito civil, instaurados pelo Parquet.

Ministério Público, sem maiores formalidades, não sujeito obrigatoriamente à observância do princípio do contraditório162.

Pelo fato de não ser considerado pela doutrina como um processo administrativo, e sim como mero procedimento, não estaria o inquérito civil sujeito à incidência do disposto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, segundo o qual “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

O dispositivo constitucional citado faz menção à obrigatoriedade da observância do princípio do contraditório em processo judicial ou administrativo. No entanto, segundo raciocínio normalmente trazido pela doutrina, o termo processo pressuporia a aplicação de sanção ao investigado, o que não ocorre no inquérito civil, onde não há litígio, nem a imposição de sanção como consequência final de sua conclusão163. Assim, sendo considerado procedimento, e não processo, não haveria a incidência da regra constitucional do contraditório em relação ao inquérito civil.

Essa conclusão, contudo, não é absoluta. A função investigatória do inquérito civil, embora possa atenuar a garantia do contraditório, não a elimina. Conforme ressaltado no tópico anterior, atualmente vivemos uma fase de processualização dos procedimentos. Os procedimentos, métodos de exercício do poder no Estado Democrático de Direito, vêm sendo cada vez mais modulados com a observância do princípio do contraditório164. Por conseguinte, embora não seja obrigatório, pode o presidente do inquérito civil desenvolver as investigações com a sua observância, visando garantir maior legitimidade aos atos administrativos praticados, bem como ao material probatório coligido. Eurico Ferraresi se posiciona nesse mesmo sentido:

162 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo. 6 ed. V.4. Salvador: Editora JusPodivm, 2011, p. 226.

163 Por todos, Hugo Nigro Mazzilli: “A rigor, o inquérito civil não é processo administrativo e sim

procedimento; nele não há uma acusação nem nele se aplicam sanções; dele não decorrem limitações, restrições ou perda de direitos. No inquérito civil não se decidem interesses; não se aplicam penalidades. Apenas serve para colher elementos ou informações com o fim de formar-se a convicção do órgão do Ministério Público para eventual propositura de ação civil pública ou coletiva” (MAZZILLI, Hugo Nigro.

O inquérito civil: investigações do Ministério Público, compromissos de ajustamento e audiências públicas. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 48).

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DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo. 6 ed. V.4. Salvador: Editora JusPodivm, 2011, p. 231.

Mesmo que se sustente o caráter inquisitorial do inquérito civil, está claro que nada impede que o promotor de justiça abra essa

possibilidade. O contraditório no inquérito civil robustece a prova nele

produzida. Salvo situações excepcionais, em que de fato o sigilo seja importante para garantir o sucesso das investigações, mostra-se medida de boa técnica a ampla participação do investigado no inquérito civil165.

Importa salientar, portanto, na esteira de Ferraresi, que em determinadas situações, pela natureza das investigações, pode ser necessária a decretação do sigilo no âmbito do inquérito civil, assim como ocorre em relação ao inquérito policial. Nessa hipótese, o contraditório não seria observado, sob pena de se inutilizar esse importante instrumento de investigação. Não haveria, no entanto, qualquer desrespeito a tal garantia constitucional, uma vez que com a propositura da ação civil pública poderá o requerido aduzir suas alegações em relação a toda prova produzida no curso do inquérito civil – trata-se do contraditório diferido.

O inquérito civil possui, portanto, a natureza de procedimento administrativo, pois a adoção do contraditório não é obrigatória em seu âmbito, embora seja altamente recomendável, quando não prejudicar as investigações.

Mas mesmo possuindo a natureza de procedimento administrativo, o inquérito civil, assim como os demais procedimentos administrativos estatais, possuem uma tendência de processualização, ou seja, de adoção do contraditório, como forma de garantia de maior legitimidade através do debate democrático. Proto Pisani salienta ainda que essa tendência pode ser observada tanto nos procedimentos administrativos como na atividade jurídica privada: “O art. 101 enuncia o princípio do contraditório (audiatur et altera pars) como um princípio fundamental do processo civil (em via de expansão também no procedimento administrativo e, por meio da cláusula geral da correção e da boa-fé, na atividade jurídica privada)”166.

165 FERRARESI, Eurico. Carga valorativa da prova produzida no inquérito civil. In Panorama atual das tutelas individual e coletiva: estudos em homenagem ao professor Sérgio Shimura. MOREIRA, Alberto Camiña et al. (coord.). São Paulo: Saraiva, 2011, p. 326.

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Tradução livre: “L‟art. 101enuncia il principio del contraddittorio (audiatur et altera pars) cioè un principio fondamentale del processo civile (in via di espansione anche nel procedimento amministrativo e, per il tramite delle clausole generali della correttezza e della buona fede, nell‟attività giuridica privata” (PROTO PISANI, Andrea. Lezioni di diritto processuale civile. 5ª ed. Napoli: Jovene Editore, 2006, p. 200)

2.3 A valoração probatória em juízo dos elementos coligidos no curso do inquérito