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CAPÍTULO IV – A DINÂMICA DO INQUÉRITO CIVIL NO

2. FASE DE INSTRUÇÃO DO INQUÉRITO CIVIL

2.2 O problema do custeio da realização das perícias

O dever-poder de requisição engloba a realização de exames e perícias por qualquer organismo, público ou particular. Nesse caso, surge a discussão acerca de quem seria o responsável por custear essas requisições. Hugo Nigro Mazzilli entende que, no inquérito civil, “os custos das perícias, quando houver, devem ser carreados ao Estado, não ao Ministério Público, que não tem personalidade jurídica e é órgão estatal”254

. O problema é complexo, tendo em vista que embora o Ministério Público não possua personalidade jurídica, ele é dotado de autonomia financeira e orçamentária, possuindo orçamento próprio, conforme expressa previsão constitucional (art. 127, §§ 3º a 6º, da Constituição Federal).

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FERRARESI, Eurico. Inquérito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 112. O mesmo autor ainda salienta: “Muito se falou e escreveu da atuação do Ministério Público como autor das ações coletivas. Sobreleva lembrar, contudo, que pouca ênfase se tem dado às audiências públicas. Com efeito, a oportunidade para o debate com a comunidade a respeito dos interesses prioritários será nas audiências públicas; na hipótese de futura propositura de ação coletiva, o ajuizamento da demanda não será um ato isolado do promotor, mas sim a exigência, por intermédio do Poder Judiciário, do que foi discutido com o corpo social. Não é necessário muito empenho para compreender que esse tipo de atitude engrandece o órgão ministerial, aproximando-o do grupo” (Ibidem.). No mesmo sentido se manifesta Gavronki: “As audiências públicas representam importante instrumento de transição de uma democracia representativa para a participativa, na medida em que integram a população na solução dos interesses que lhe digam respeito direto, permitindo que o pluralismo que caracteriza a sociedade contemporânea seja levado em consideração na tomada das decisões de interesse coletivo e que a solução construída seja mais adequada à realidade e às necessidades do caso concreto” (GAVRONSKI, Alexandre Amaral. Técnicas

extraprocessuais de tutela coletiva: a efetividade da tutela coletiva fora do processo judicial. São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 330). 254

MAZZILLI, Hugo Nigro. O inquérito civil: investigações do Ministério Público, compromissos de

Em sede de inquérito civil, a questão vem sendo resolvida com a criação de corpos técnicos no âmbito do próprio Ministério Público, com a finalidade de realizar exames e perícias necessárias à instrução dos procedimentos. Além disso, o Estado conta com órgãos oficiais com a atribuição de realização de perícias e exames nas mais diversas áreas, sendo que tais órgãos devem atender as requisições do Ministério Público, sendo plenamente aplicável, nesse caso, o entendimento de Hugo Nigro Mazzilli, no sentido da obrigatoriedade do Estado custear tais perícias.

No entanto, a questão da responsabilidade pelo custeio de exames e perícias ocorre não somente no âmbito extrajudicial, mas também (até mesmo com maior frequência) na esfera judicial. O Superior Tribunal de Justiça255 vem se posicionando no sentido de que cabe ao Ministério Público realizar o depósito prévio dos honorários do perito, nas demandas em que figure como autor.

Analisando o teor dos votos proferidos, verifica-se que o referido Tribunal pretende imprimir uma nova interpretação ao artigo 18 da Lei 7.347/85256, com base na Súmula 232 do Superior Tribunal de Justiça, que dispõe: “A Fazenda Pública, quando parte no processo, fica sujeita à exigência do depósito prévio dos honorários do perito”. Salienta o Tribunal que o Ministério Público deve ser equiparado à Fazenda Pública, para fins de aplicação da Súmula 232 do STJ. Argumenta-se que uma interpretação literal do artigo 18 da Lei de Ação Civil Pública acarretaria dificuldades na tramitação do processo, em detrimento dos interesses de natureza coletiva ou indisponível, uma vez que não se poderia impor ao profissional que realiza a prova técnica trabalho gratuito em prol da Justiça, nem impor ao réu que suporte o ônus da realização de uma prova de elevado custo, contra ele próprio. Desse modo, e considerando que o Ministério Público possui ainda autonomia financeira e orçamentária, caberia a ele suportar o ônus da prova pericial requerida.

Cabe, entretanto, um breve comentário em relação às decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, nos precedentes mencionados. Trata-se de decisões proferidas por órgão fracionário do referido tribunal, que claramente afastaram a

255 REsp 891.743/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, 2ª Turma, data do julgamento: 13/10/2009, DJe 04/11/2009 e AgRg no REsp 1091843/RJ, Rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma, data do julgamento: 12/05/2009, DJe 27/05/2009. Disponível em www.stj.jus.br. Acesso em 04 de maio de 2011.

256 Art. 18 da Lei 7.347/85: “Nas ações de que trata esta Lei, não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogado, custas e despesas processuais”.

incidência do artigo 18 da Lei de Ação Civil Pública, que é claro em afirmar que não é cabível o adiantamento de honorários periciais nas demandas regidas por aquela lei. Essas decisões, portanto, violaram o artigo 97 da Constituição Federal257, que estabelece a reserva de plenário para decisões que afastam a incidência de dispositivo legal, mesmo sem declarar expressamente sua inconstitucionalidade. É exatamente esse o teor da Súmula Vinculante nº 10 do Supremo Tribunal Federal: “viola a cláusula de reserva de plenário (CF, art. 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”.

A solução a ser adotada pelo membro do Ministério Público, em face de decisões dessa natureza, que afastam a incidência do artigo 18 da Lei de Ação Civil Pública sem respeitar a cláusula de reserva de plenário, é o ajuizamento de Reclamação perante o Supremo Tribunal Federal258.

Todavia, embora os acórdãos do Superior Tribunal de Justiça sejam passíveis de impugnação, por desrespeito à reserva de plenário, o problema levantado ainda persiste259. De fato, ainda que deva ser dada primazia à defesa dos direitos que são objeto de tutela por meio da ação civil pública, por seu caráter indisponível ou coletivo, não é de somenos importância o argumento de que não se pode obrigar um perito particular a trabalhar gratuitamente para a Justiça (visto que no caso de peritos e instituições públicas, é cabível exigir que o custo da realização da perícia seja suportado

257

Art. 97 da Constituição Federal: “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.

258

A legitimidade ativa autônoma do Ministério Público Estadual para propor reclamação perante o Supremo Tribunal Federal foi reconhecida na Rcl 7358/SP, rel. Min. Ellen Gracie, 24.2.2011, publicada no Informativo Semanal de Jurisprudência nº 617, do Supremo Tribunal Federal. Em seu voto, o Min. Cezar Peluso ressaltou que fazer com que o Ministério Público Estadual ficasse na dependência do que viesse a entender o Ministério Público Federal seria incompatível, dentre outros princípios, com o da paridade de armas. Salientou, ainda, que se estaria retirando do Ministério Público estadual uma legitimidade que seria essencial para o exercício das suas funções, as quais não seriam exercidas pelo Ministério Público Federal. Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 04 de maio de 2011.

259

O drama da questão do pagamento dos honorários periciais nas ações coletivas foi exposto por Paulo de Bessa Antunes da seguinte forma: “[...] Em primeiro lugar, há que considerar a própria dificuldade técnica de perícias ambientais que, raramente, são elementares. Uma outra questão relevante é a que se relaciona ao pagamento de honorários, uma vez que a lei da ação civil pública determina que não haverá adiantamento de honorários periciais, gerando muitas dificuldades para aqueles que exercem a nobre missão de expert do juízo, que não podem trabalhar sem a devida remuneração. A questão é tão dramática que alguns desavisados já chegaram a cogitar de transferir o ônus da remuneração do perito para o réu, o que implica nulidade da sentença!” (ANTUNES, Paulo de Bessa. Prova pericial. In A ação civil pública após 20 anos: efetividade e desafios. Edis Milaré (coord.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, pp. 468-469).

pelo Estado, conforme já ressaltado), e nem o réu a custear uma perícia de custo às vezes elevado, para contribuir para a realização de uma “prova” contra si mesmo.

Esse último argumento, contudo, pode ser combatido pela moderna concepção de que o processo constitui-se em uma instância democrática de resolução dos conflitos e tutela dos direitos fundamentais, em que a cooperação entre as partes deve ser encarada não somente como um direito, mas como um dever260. Com base nessa visão, o Projeto de Lei nº 5.139/09 e todos os anteprojetos de Código de Processo Coletivo, trazem comandos normativos no sentido de que o ônus da prova deve ser suportado pela parte que disponha dos conhecimentos técnicos, informações, ou recursos financeiros mais adequados à realização da prova261.

O Projeto de Lei nº 5.139/09, em seu artigo 21, propõe ainda uma solução que merece elogios: após determinar que a realização da prova técnica ou pericial deve ficar

260 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. – (Coleção temas atuais de direito processual civil; v. 14), passim. No mesmo sentido leciona Artur Carpes: “A partir da compreensão de que o processo constitui instrumento para a tutela dos direitos fundamentais, ganha relevo não apenas a atividade e responsabilidade do juiz, mas também a atividade e responsabilidade das partes, a fim de que tal finalidade seja alcançada. Consagrado o direito fundamental à tutela jurisdicional adequada e efetiva, exige-se do juiz esforço ainda maior na tarefa de formação do juízo de fato, na medida em que somente dessa forma será possível alcançar a justiça. Tal esforço, todavia, é compartilhado com as partes, às quais também é endereçado semelhante dever de cooperação. Afinal, se o processo cumpre a função pública de pacificar com justiça, constitui dever de todos os sujeitos processuais, bem como de terceiros eventualmente, colaborar para que tais escopos sejam atingidos”. (CARPES, Artur. Ônus dinâmico da

prova. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 62). A cooperação (ou colaboração) vem

sendo entendida como uma característica marcante da sociedade pós-industrial, em contraposição à sociedade “de massa” da era industrial. Essa visão foi muito bem exposta por Don Tapscott, estudioso canadense do impacto da tecnologia nas empresas e nas sociedades: “Na era industrial, tudo é feito para a massa. Criamos a produção de massa, a comunicação de massa, a educação de massa, a democracia de massa, a sociedade de massa. A característica central da sociedade industrial é que as coisas começam com um (aquele que tem o conhecimento) e chegam a muitos (aqueles que não têm o conhecimento). [...] Na sociedade pós-industrial, o conhecimento será transmitido não mais de um para muitos, mas de um para um ou de muitos para muitos. Será a era da inteligência em rede, num sistema de colaboração de massa”(TAPSCOTT, Don. Entrevista concedida à Revista Veja. Editora Abril: 13 de abril de 2011. Edição 2.212. Ano 44. Nº 15, p. 22). O raciocínio de Tapscott pode ser transportado para o terreno do processo, com a superação de uma verdade “ditada” pelo juiz, para um processo de “construção colaborativa” da verdade, por todos os sujeitos processuais.

261 Nesse sentido, cf. Projeto de Lei nº 5.139/09 (art. 20, inciso IV); Código de Processo Civil Modelo para Países de Direito Escrito (arts. 11 e 12); Anteprojeto de Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América (art. 12); Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos (art. 11); e Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos (UERJ/UNESA) (art. 19). Esse modo de distribuição do ônus da prova vem sendo denominado pela doutrina como “distribuição dinâmica”, consistindo, portanto, “na atribuição, do ônus probandi, à parte que, no caso concreto, se revela como titular de melhores condições de produzir a prova sobre determinada alegação (de fato ou de direito). Como se vê, para que a carga probatória seja distribuída de forma dinâmica, é necessária a prolação de decisão judicial devidamente fundamentada” (REDONDO, Bruno Garcia. Ônus da Prova e Distribuição Dinâmica:

lineamentos atuais. In Panorama atual das tutelas individual e coletiva: estudos em homenagem ao

a cargo, preferencialmente, de servidores públicos especializados, prevê a possibilidade de utilização recursos do Fundo de Reparação dos Direitos Difusos para o custeio das diligências necessárias à produção dessas provas, caso não haja servidor público apto a desempenhar a função pericial. A análise de critérios de razoabilidade, proporcionalidade e economicidade na utilização de recursos desse fundo deverá, obviamente, ser realizada pelo seu conselho gestor, do qual participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da sociedade civil, consoante determina o artigo 66 do citado projeto de lei262.

Saliente-se que a solução aventada para custear a realização de perícias pode ser aplicada também no âmbito do inquérito civil. Assim, caso não seja possível a realização da prova técnica ou pericial por servidores ou instituições públicas, o membro do Ministério Público que preside o inquérito civil deve solicitar e justificar a necessidade da utilização dos recursos para realização da prova, ficando o requerimento sujeito à análise e decisão do Conselho Gestor do Fundo.

2.3 Provimentos judiciais incidentais, antecipatórios e cautelares no curso do