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A ―natureza‖ libidinosa do violão e da modinha

As associações entre música popular (modinha e outros gêneros), violão e sexualidade são recorrentes em ambos os romances. No trecho aqui reproduzido de artigo escrito sobre as danças que faziam sucesso em seu tempo, Lima Barreto declara que se trata da ―danças luxuriosas‖, ―acentuadas na direção de um apelo claro à atividade sexual‖, ―intencionalmente lascivas, provocantes e imorais‖. Aqui, não se está falando dessas danças, e sim da modinha, gênero mais romântico e menos dançante. Mesmo assim, a conotação sexual parece permanecer, tanto pelos termos utilizados para descrever o violão e a música de Ricardo Coração dos Outros em Triste fim..., quanto para justificar toda a trama de Clara dos Anjos.

Associado à luxúria até mesmo por seu formato, que lembra as formas do corpo feminino, já nas primeiras páginas do primeiro romance aqui trabalhado o instrumento recebe essa conotação. Exemplo disso é o uso da palavra ―impudico‖ para caracterizá- lo. Em seguida, essa associação é reforçada:

É verdade que a guitarra vinha decentemente embrulhada em papel, mas o vestuário não lhe escondia inteiramente as formas. À vista de tão escandaloso fato, a consideração e o respeito que o Major Policarpo Quaresma merecia nos arredores de sua casa diminuíram um pouco. Estava perdido, maluco, diziam.227

Mais à frente, o próprio Ricardo Coração dos Outros reitera essa característica do instrumento: ―Major, o violão é o instrumento da paixão. Precisa de peito para falar... É preciso encostá-lo, mas encostá-lo com macieza e amor, como se fosse a amada, a noiva, para que diga o que sentimos...‖228 A conotação sexual que se dava ao

226 BARRETO, L. Clara dos Anjos, p. 253.

227 BARRETO, L. Triste fim de Policarpo Quaresma, p. 10. 228

109 instrumento fica aqui bastante clara. Se o próprio violonista encara seu instrumento dessa maneira, pode-se concluir que esta é, então, uma opinião generalizada na sociedade carioca da época, não sendo de se espantar, portanto, que causasse tanta preocupação nos mais conservadores. Da parte do narrador, ao descrever a maneira como Ricardo realizou o ―concerto‖, mantém-se a associação:

Mal foi aceso o gás, o mestre do violão empunhou o instrumento, apertou as cravelhas, correu a escala, abaixando-se sobre ele como se o quisesse beijar. [...]

Diante do violão, Ricardo ficava loquaz, cheio de sentenças, todo ele fremindo de paixão pelo instrumento desprezado.229

Como foi visto no capítulo anterior, o gênero musical da modinha acabou por ter exatamente a função de tratar da relação entre homens e mulheres, os quais, ao longo do século XVIII, foram ficando mais próximos, e, por isso, tiveram a forma como acontecia sua união drasticamente modificada. Por esta razão, a modinha foi em grande medida censurada pelos moralistas, que acreditavam que o gênero era uma afronta à moral e aos bons costumes. Viu-se também que Policarpo Quaresma afirma ser o violão o instrumento ideal para que se toquem modinhas. Sendo assim, pela fortíssima associação deste instrumento com o referido estilo musical, agrava-se ainda mais este aspecto libidinoso e imoral ao qual era ligado o violão. Numa sociedade complexada, que sonhava com o reconhecimento externo de sua importância, o moralismo tinha um lugar de domínio, não sendo interessante para estas pessoas que fossem vistas como seres carnais cuja limitação intelectual não permitia que o instinto sexual fosse domado. Assim, era quase uma exigência que canções como as de Ricardo e a prática do violão fossem socialmente condenadas.

Em Clara dos Anjos, essa associação do violão e da modinha à sexualidade se faz ainda mais presente, funcionando como o fio condutor de toda a trama. Cassi Jones, modinheiro, era guiado por seu instinto sexual. Agia única e simplesmente em função deste instinto e utilizava seu conhecimento de violão apenas para esse propósito. Clara, por sua vez, é seduzida exatamente por essa habilidade do rapaz, que não era bonito, nem inteligente, nem simpático, mas tocava modinhas inebriantes que faziam com que a moça perdesse seu senso de realidade.

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Clara, que sempre a modinha a transfigurava, levando-a a regiões de perpétua felicidade, de amor, de satisfação, de alegria, a ponto de quase ela suspender, quando as ouvia, a vida de relação, ficar num êxtase místico, absorvida totalmente nas palavras sonoras da trova, impressionou-se profundamente com aquele jogo de olhar, com que Cassi comentava os versos da modinha. Ele sofria, por força, senão não punha tanta expressão de mágoa, quando cantava - pensava ela.

Tão embevecida estava, tão longe pairava o seu pensamento que, quando Cassi acabou, se esqueceu de aplaudir o troveiro que, para o seu rudimentar gosto, lhe tinha proporcionado tão forte prazer artístico.230

Não apenas o êxtase inocente de Clara é associado à modinha. Assim como em Triste fim..., aqui também a forte conotação sexual se faz presente. Como visto anteriormente, Joaquim dos Anjos, mesmo admirando o violão, não aceitava que Clara aprendesse a tocá-lo, uma vez que o instrumento ―era desmoralizado e desmoralizava‖, e Cassi Jones, ―o menestrel suburbano da modinha lânguida e acompanhamento luxurioso de olhares revirados‖,231

ao empunhar este instrumento, não apenas levava as moças aos sonhos, a esse êxtase pueril sentido por Clara, mas conseguia fazer com que elas passassem a sentir forte atração física por ele:

Era bem misterioso esse seu violão; era bem um elixir ou talismã de amor. Fosse ele ou fosse o violão, fossem ambos conjuntamente, o certo é que, no seu ativo, o Senhor Cassi Jones, de tão pouca idade, relativamente, contava perto de dez defloramentos e a sedução de muito maior número de senhoras casadas.

A modinha, com suas letras costumeiramente piegas e baseadas num romantismo afastado da realidade, é descrita no romance como detentora de um enorme poder de sedução, capaz de proporcionar às moças, especialmente as pobres como Clara, uma visão distorcida das relações amorosas. Clara é, aqui, uma espécie de Emma Bovary da música popular. Da mesma forma que Emma sonhava com um mundo muito diferente do dela a partir da leitura dos romances românticos, Clara, ao ouvir as ―lânguidas‖ modinhas, sonhava viver num mundo de romance, em que o amor era maior que todo o resto.

Acresce, ainda, que era geral em sua casa o gosto de modinhas. Sua mãe gostava, seu pai e seu padrinho também. Quase sempre havia sessões de

230 BARRETO, L. Clara dos Anjos, p. 136-137. 231

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modinhas e violão na sua residência. Esse gosto é contagioso e encontrava, no estado sentimental e moral de Clara, terreno propício para propagar-se. As modinhas falam muito de amor, algumas delas são lúbricas até; e ela, aos poucos, foi organizando uma teoria do amor, com os descantes do pai e de seus amigos. O amor tudo pode, para ele não há obstáculos de raça, de fortuna, de condição; ele vence, com ou sem pretor, zomba da Igreja e da Fortuna, e o estado amoroso é a maior delícia da nossa existência, que se deve procurar gozá-lo e sofrê-lo, seja como for. O martírio até dá-lhe mais requinte...

As emolientes modinhas e as suas adequadas reações mentais ao áspero proceder da mãe tiraram-lhe muito da firmeza de caráter e de vontade que podia ter, tornando-a uma alma amolecida, capaz de render-se às lábias de um qualquer perverso, mais ou menos ousado, farsante e ignorante, que tivesse a animá-lo o conceito que os bordelengos fazem das raparigas de sua cor.232

O uso da palavra ―contagioso‖ aqui é sintomático. Afinal, denota uma carga negativa ao gosto por esse gênero musical, associando-o a uma doença.

Por essas passagens é possível notar, portanto, que muito do preconceito sofrido pelo violão e as canções com ele tocadas parte dessa conotação sexual que lhes dava a sociedade. Numa sociedade falsamente moralista que, para tentar aproximar-se do padrão europeu, buscava inibir os impulsos sexuais da população (especialmente a população mais pobre e de cor, para fins da eugenia), nada que pudesse ser associado a atividades imorais seria visto com bons olhos.