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O lugar da música popular urbana brasileira no início do século

A música popular urbana brasileira, como já se pode imaginar pelo que foi falado anteriormente, não tinha espaço no mainstream da cultura no país. Ainda que estivesse se desenvolvendo a passos largos, era não só combatida pela elite (Garramuño afirma que ―as primeiras referências ao tango e ao samba foram violentamente negativas, chegando a ser perseguidos, criminalizados e reprimidos em suas primeiras manifestações‖164) como, muitas vezes (o que pode ser até pior), simplesmente ignorada. A elite, naquele momento, se comportava em grande medida como se essas manifestações culturais nem mesmo existissem, o que pode ser notado pelo fato de que, ―nos jornais cariocas das primeiras décadas do século, o samba está completamente excluído‖.165

Nem mesmo no carnaval, momento em que, de certa forma, a tolerância e a aceitação de outras identidades fica maior,166 as manifestações musicais populares recebem algum destaque nas publicações. Quando o carnaval popular, que já começava a ganhar as ruas da cidade, é mencionado em alguma notícia, ―normalmente se trata de

162 MACIEL, E. A eugenia no Brasil, p. 124. 163

SCHWARCS, L. M. Complexo de Zé Carioca: notas sobre uma identidade mestiça e malandra. 164 GARRAMUÑO, F. Modernidades primitivas, p. 43.

165 Ibidem, p. 42.

166 Mônica Velloso, ao falar desse momento de exceção que representa o carnaval, menciona o cronista Francisco Guimarães (apelidado de Vagalume), que, em um de seus textos, ―chama a atenção para a autonomia das ruas, que se apresentam no Carnaval como verdadeiras repúblicas autogestivas. Assim, cada uma delas tem o seu próprio Carnaval com batalhas de confetes, serpentinas, lança-perfumes, bandas de música, coretos e blocos. Na rua do Lavradio, a República dos Trouxas; na Cidade Nova, os Representantes da Miséria, cujo presidente é o lorde Miserável, seguido pela Fome Negra, Passa Fome etc. Há toda uma paródia ao poder, onde são desmitificados valores e ideias. A miséria em que vivem as camadas populares (a fome é que determina a hierarquia social), o engodo da cidadania - República dos Trouxas -, enfim, tudo vem à tona no Carnaval.‖ VELLOSO, M. As tias baianas tomam conta do pedaço, p. 224.

85 alguma notícia policial ou de reprimenda sobre os ‗baixos costumes‘‖.167

Exemplo interessante do que o discurso das elites tinha a dizer sobre o carnaval das classes baixas é a observação assombrosa de Graça Aranha, citado por Mônica Velloso: ―Melopéia negra, melosa, feiticeira, candomblé. [...] Desforra da fêmea. Ressurreição das bacantes, das bruxas, das diabas. Missa negra, tragédia negra, magia negra. Triunfa a negra, triunfa a mulata [...] África, Baía, Brasil.‖168

No que concerne às condições para sua produção, registro e divulgação, também eram muitas as barreiras a serem enfrentadas pela música popular urbana. Os compositores encontravam-se geralmente em uma situação bastante difícil, visto que ―dependiam de autorizações para apresentarem seus trabalhos, dependiam da anuência de chefes políticos para obter patrocínios e [por não terem sido musicalmente educados de maneira formal] dependiam até do interesse dos maestros para que as obras fossem registradas em partituras‖.169

Além de toda essa dependência, a desvalorização da música popular urbana fica clara também pela forma com que a encaravam os principais intelectuais que pensaram a música brasileira no início do século. Ainda que Hermano Vianna tenha apontado a existência de um diálogo entre intelectuais e músicos populares e um certo interesse daqueles pelo trabalho realizado por estes,170 como sinalizado na introdução deste texto, é possível perceber por seu texto que esse interesse era de certa forma superficial. Músicos da elite poderiam até se interessar pelo que faziam os músicos populares, mas os reais produtores dessa manifestação artística, mesmo quando admirados pelas classes altas, não deixavam de ser negros provenientes da periferia: ―A pele escura dos músicos não parecia ter o poder de afastá-los da fama, por mais momentânea que fosse, junto à elite carioca da época.‖171

Quando interessados pela cultura popular, portanto, os intelectuais da elite trabalhavam como mediadores, ―no sentido de colocar em contato mundos bem diversos ou, pelo menos, de transitar por vários mundos, deixando suas marcas em cada um deles, nem que fosse a marca de torná-los expostos ao que vem ‗de fora‘‖, e não como produtores.172

Vale lembrar, ainda, que o texto de Vianna se

167 GARRAMUÑO. Modernidades primitivas, p. 43. 168

VELLOSO. As tias baianas tomam conta do pedaço, p. 222. 169 TATIT. O século da canção, p. 39.

170 VIANNA. O mistério do samba. 171 Ibidem, p. 44.

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86 concentra, especialmente, na década de 1920, na qual o samba foi ganhando mais visibilidade, culminando em sua consagração como ritmo nacional na década seguinte. Nesta pesquisa, o foco é o período anterior a esta década, uma vez que os dois livros de Lima Barreto a serem aqui estudados foram escritos antes de 1920, o que faz com que as contribuições de Vianna sejam aqui consideradas, mas com ressalvas.

Além disso, é possível perceber que, mesmo já na década de 1920, esse interesse, quando havia, era limitado, visto que fica claro pelo texto de Vianna, ao enumerar ações realizadas por Afonso Arinos de Mello Franco – que promoveu uma encenação do bumba-meu-boi no Teatro Municipal de São Paulo e fez uma série de conferências sobre ―lendas e tradições brasileiras‖ –, e também pelo texto de Luiz Tatit,173 que a vontade dos intelectuais de divulgar a cultura popular se dava muito mais pelo interesse pelo folclore do que pela cultura urbana. Exemplo disso é o fato de que, de acordo com Tatit, intelectuais como Mário de Andrade e Heitor Villa-Lobos viam como realmente louvável na cultura popular as produções populares rurais, ou folclóricas, como reisados, congados e bumba-meu-boi, em detrimento de gêneros urbanos como a modinha e o lundu, por considerarem que estes estavam muito sujeitos às ―contingências instáveis das cidades‖.174

Em razão do grande prestígio de que gozava Mário de Andrade como musicólogo, tal visão acabou por se tornar a visão geral dos pensadores do período, ficando claro, portanto, que estes intelectuais percorriam ―uma trajetória artística independente, que em hipótese alguma poderia ser associada ao som que vinha das ruas, dos quintais e bailes urbanos‖.175

Aqui, vale citar um trecho do texto de José Miguel Wisnik, ―Getúlio da Paixão Cearense‖, que, apesar de um pouco longo, é uma boa ilustração desta questão:

Tempos mais tarde, já em plena euforia musicológica estado-novista [ou seja, o momento de completa desvalorização do samba já havia passado, e os movimentos de transformação deste gênero em símbolo nacional já tinham bastante força], o crítico Luis Heitor diria, fazendo o elogio da vocação musical nacional, em tom de rádio-ministério-da-educação:

―A época de desconhecimento do valor social e da utilidade educacional da

música, no Brasil, já vai ficando para trás. O impulso musical é insopitável entre a nossa gente. A música é, por excelência, o meio de sublimação da alma

173 TATIT, L. O século da canção. 174 Ibidem, p. 36.

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popular brasileira, uma necessidade de nossa formação, de nossa psicologia

nacional.‖

Para em seguida fazer o reparo:

―Não tomo como índice a música vulgar, a canção das ruas, pois essa é, apenas, a manifestação inconsciente, não disciplinada, do pensador musical.‖

Mas (poderíamos perguntar) e

noel Ismael si

nhôdosprazeres pixindongajazz batutaslamarti nearibar rosa?

E teríamos como resposta inequívoca do crítico a seguinte hierarquização:

―Refiro-me, aqui, justamente, à aptidão do brasileiro, como criador e como

apreciador da música dita ‗artística‘. E acho perigosa a confusão que às vezes se faz, no Brasil, englobando sob o rótulo de música popular não o fundo musical anônimo, de que a música artística se utiliza, para tonificar-se, mas a música sem classificação, baixa e comercial, que prolifera em todos os países do

mundo, sem que por isso tenha direito a ocupar um lugar na história da arte.‖176

É claro que nem toda a intelectualidade se comportava da mesma maneira. Mônica Velloso cita o cronista Francisco Guimarães, conhecido como Vagalume, como alguém que se colocou contra essa corrente:

Destoando do ponto de vista da época, Vagalume faz a defesa do samba como

expressão cultural. Assim, discorda da ideia que associa o samba à desordem, preferindo mostrá-lo como uma tradição que vem das festas de largo da Bahia. Segundo ele, foi na barraca das tias Ciata177 e Pequenina denominada O Macaco É Outro que nasceu, em outubro de 1916, o que seria a primeira versão do

samba ―Pelo Telefone‖. Presente na ocasião, Vagalume registra com euforia o

evento. Conta que o samba ganhou, de imediato, a adesão dos populares que saíram entoando a música em animado bloco pela festa (Jornal do Brasil, out. 1916).178

Apesar da postura mais aberta de Vagalume em relação ao samba, o que se nota é que se trata de uma exceção: o autor ―destoava‖ do ponto de vista da época.

Ao discutir a música no século XIX brasileiro, José Miguel Wisnik também acena para uma possibilidade um pouco diferente de se pensar a maneira como era

176 WISNIK, J. M. Getúlio da Paixão Cearense, p. 132.

177 Tia Ciata era uma das mais famosas tias baianas e uma importante personagem da história da cultura negra do Rio de Janeiro. Para mais detalhes sobre essas tias, ver nota 177, a seguir.

178

88 tratada a cultura popular. Ainda que, discursivamente, houvesse uma clara separação entre música ―boa‖ e ―ruim‖, música de respeito e produções chulas, na prática, as coisas não funcionavam com o mesmo maniqueísmo. Citado por Wisnik, Lorenzo Mammì argumenta que, no Brasil do século XIX, erudito e popular se misturavam de forma muito mais efetiva do que o purismo retórico possa nos fazer acreditar num primeiro momento:

Numa sociedade pouco diferenciada como a nossa, nunca houve uma separação

muito nítida entre práticas musicais ―altas‖ e ―baixas‖. No século XIX, o lundu

era cantado nos teatros, a polca e a valsa se dançavam na rua (e daí surgiu o maxixe e a brasileiríssima valsinha). Coros de escravos eram recrutados para cantar óperas, e um músico de banda podia, num dia, acompanhar a procissão do Divino e, no dia seguinte, participar da encenação de um drama de Verdi.179

Pode-se argumentar, entretanto, que em inícios de século XX, período portanto posterior ao descrito no trecho, essa postura até então marcada pelo descompromisso com a hierarquização, com a classificação do bom e do mau, modificou-se em razão do objetivo da modernização por meio da europeização do país. Além disso, vale pensar na possibilidade de uma busca maior, por parte das elites brancas, de uma mais clara diferenciação cultural entre eles e os recém-libertos negros escravos. Sem a óbvia diferenciação social e econômica garantida pelo sistema escravista, é possível que se tenha buscado uma radicalização da questão cultural para que fosse reforçada a separação dos representantes da elite, branca, europeizada e erudita, das classes pobres, miscigenadas, iletradas e produtoras de música popular.

Considerados, portanto, pela maioria da intelectualidade, como produtores de uma cultura menor, sem grande importância, estes músicos eram também diminuídos pelas autoridades, que vetavam suas apresentações em áreas públicas do Rio de Janeiro. Sendo assim, eram poucos os lugares em que podiam tranquilamente se expressar. O principal exemplo desses lugares eram as casas das tias baianas,180 onde encontravam abrigo os improvisadores de versos, os violonistas e ritmistas que, ―quase sempre

179 MAMMÌ apud WISNIK. Machado Maxixe: o caso Pestana, p. 56.

180De acordo com Tatit, ―chamavam-se tias as baianas que, na passagem do século XIX ao XX, fixaram

residência no Rio de Janeiro e mantiveram vivos os costumes culturais dos negros de Salvador. Eram sacerdotisas de culto aos orixás mas também exímias festeiras, sambistas, passistas, improvisadoras e excelentes cozinheiras que abriam suas portas aos conterrâneos que, como elas, tentavam a sorte na então

89 desempregados, passavam o tempo inventando refrãos e desenvolvendo seus dotes musicais espontâneos‖.181

Mesmo nas casas das tias a democracia não era total. Cada estilo musical, de acordo com sua origem – do mais popularesco, o batuque, ao mais próximo da música erudita, o choro –, poderia ocupar uma parte diferente da casa: o primeiro ficava com o quintal, e o último com a área nobre, a sala de estar; nos outros cômodos ficavam aqueles que se encontravam no meio do caminho entre batuque e choro, podendo-se encontrar o lundu, o maxixe, o samba e a modinha.