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Definir senso comum é uma tarefa bastante complexa da qual não será possível me encarregar neste texto. Aqui cabe apenas uma breve reflexão sobre o termo e o que este acarreta para nossa discussão. Ainda que haja muitas diferentes concepções de ―senso comum‖, nota-se que, em geral, este termo está relacionado a unidade, a comunidade, a universalidade. A palavra ―comum‖ remete necessariamente a algo partilhado, a algo relacionado à generalização. Senso comum, nessa perspectiva, seria algo relacionado a uma sensibilidade geral, mas também, e principalmente, a um pensamento geral, a uma forma generalizada em uma comunidade de se encarar o mundo. Trata-se de um acordo universal (mesmo que esse ―universal‖ diga respeito a uma pequena comunidade) em que se define o comportamento, o modo de pensar, o modo de responder ao mundo de uma coletividade.

Dermeval Saviani, em livro que trata da questão da educação e de uma necessária passagem de uma caracterização baseada no senso comum a uma consciência filosófica nesse âmbito, coloca o senso comum como o lugar da não reflexão, contrapondo-o, assim, à consciência filosófica.70 De fato, diferentemente do pensamento filosófico, o senso comum não é construído de forma ativa, consciente, de forma a tirar o indivíduo do comodismo em que vive; ele é construído de forma razoavelmente natural e gradativa. É claro que o pensamento filosófico tem a capacidade de, de tempos

69 COMPAGNON, A. O demônio da teoria, p. 196. 70

41 em tempos, modificar o senso comum, mas isso só costuma acontecer a partir de rupturas conscientes, de um trabalho de conscientização que, pelo menos por um certo tempo, nada contra a corrente das convenções sociais.

Sobre o processo de construção do senso comum, vale citar a reflexão de Eduardo Duarte, que trata do processo histórico que fez com que o homem pudesse viver em sociedade, partilhando ideias, crenças e uma forma de comportamento em grande medida homogeneizado:

Os hábitos foram lentamente ganhando estrutura, e suas motivações, mergulhando nas profundezas do inconsciente de nossa espécie, foram naturalizando nossas práticas. Esses primeiros acordos eram ainda formas errantes de uma protorrazão coletiva, ou seja, o estabelecimento dos laços afetivos no grupo criava a percepção de um senso comum, e organizava a presença do humano no mundo, permitindo sua sobrevivência. Esses acordos coletivos momentâneos que serviam para dar conta de contextos sociais

emergentes eram ―regras de passagens‖, no dizer de David Hume (HUME,

2001). Mas, como também aponta Hume, as regras de passagens deram prova de uma eficiência social que naturalizou as práticas, institucionalizando-as. As práticas assumiram espontaneamente o valor de regras comuns, que progressivamente passaram a ser lembradas como leis sociais; essas foram por sua vez naturalizadas e transmitidas de geração em geração.71

É interessante notar pela leitura do trecho que o senso comum, ainda que pareça algo natural, é, na verdade, algo ―naturalizado‖, ou seja, vai, aos poucos, fazendo parte do cotidiano de uma sociedade. Além disso, observa-se que esse senso, tão próximo do natural, varia de acordo com a sociedade de que se está falando, havendo ―sensos‖ comuns àqueles que convivem em uma mesma comunidade, e não necessariamente um único senso comum a todos os seres humanos.

Ainda que ―naturalizado‖ e desprovido de reflexão, como quer Saviani, o senso comum só pode ser assim chamado a partir do momento em que deixa de representar um sentido afetivo para significar um sentido lógico, uma forma de pensamento comum a uma comunidade. Isso quer dizer que, embora tenha partido de uma questão afetiva, de uma necessidade de acabar com o medo e a admiração pelo desconhecido, pelo inexplicável, o processo de naturalização de um modus vivendi fez com que esse comportamento passasse a significar algo lógico, algo de sentido, algo racional. Passado

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42 o medo, estabelecidas as formas de lidar com o até então inexplicável, o aspecto sentimental que forçava os homens a agir, a procurar soluções, se transformou em comportamento comum, em pensamento natural, encarado quase que como intrínseco à espécie humana. Coube e continua cabendo a uma minoria de nós colocar novamente as questões relacionadas às convenções, ao pensamento, ao comportamento, às convicções, em um lugar de questionamento, de ―antinaturalidade‖, de dúvida, sugerindo novas possibilidades e promovendo, assim, a reflexão e, possivelmente, mudanças de paradigmas para um novo senso comum, que será posteriormente também alvo de nova reflexão e possivelmente modificado num movimento lento, porém contínuo de construção e desconstrução do pensamento.

Ao tratar da Teoria da Literatura, Antoine Compagnon, em O demônio da teoria: literatura e senso comum, afirmou ser exatamente este o papel dessa disciplina. É interessante observar, nesta discussão teórica sobre a questão do senso comum, que, ainda que o termo apareça já no título da referida obra, pouco é discutido nela sobre a questão. Antoine Compagnon parte de uma espécie de ―senso comum sobre o senso comum‖ e, parece-me, não julga necessária uma discussão mais aprofundada sobre o tema. Há, entretanto, várias diferentes elaborações sobre o termo; algumas, inclusive, bastante contraditórias, como nos explica Sérgio Schaefer.72 Pelo capítulo de introdução, ―O que restou de nossos amores‖, contudo, é possível compreender que o que Compagnon chama de senso comum são as ideias preconcebidas, já desprovidas de reflexão. O uso da palavra ―já‖ aqui se justifica porque, como discutido, o pensamento que numa época é parte do senso comum passou por um processo de naturalização até que chegasse a esse status; o senso comum de hoje, muito possivelmente, representou ideias inovadoras em momentos anteriores da história.

Neste texto, com a consciência de que há várias outras possibilidades de se encarar a questão do senso comum, adotar-se-á uma concepção parecida com a de Antoine Compagnon: de que se trata de ideias preconcebidas e desprovidas de reflexão. O senso comum, nessa perspectiva, representa a tradição; e o pensamento, a consciência filosófica, uma possibilidade de quebra de paradigmas, de uma ruptura com a tradição não reflexiva.

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43 Assim como já discutido em outras seções deste capítulo, é válido pensar aqui no papel da literatura nesse processo. Se o papel da Teoria da Literatura, como querem autores como Antoine Compagnon e Jonathan Culler,73 é o de desafiar constantemente as ideias dominantes, o papel da literatura em si pode ser tanto esse como o seu contrário. Como produtores de um discurso inserido numa sociedade, detentora de uma cultura específica e de concepções de mundo já definidas, os autores de textos literários podem tanto buscar uma quebra de paradigmas, um desafio ao pensamento vigente, quanto reforçar esse pensamento. Trata-se do mesmo princípio discutido quando se falou na ideia de alegoria da literatura. É possível que com ela se encontrem maneiras de perpetuar a dominação (inclusive intelectual), mas também de desafiá-la.

A hipótese deste trabalho é a de que a literatura de Lima Barreto seja, de modo geral, uma literatura que funciona da segunda maneira, como texto desafiador do senso comum, mas que, no caso da música popular brasileira, o autor não tenha sido capaz de se desvencilhar, pelo menos não completamente, do senso comum de sua época.

No próximo capítulo, será discutida com mais atenção a escrita de Lima Barreto de um modo geral e a forma como esta se relaciona com o senso comum concernente a diversos assuntos relativos à cultura brasileira, tais como política, pobreza, justiça, nacionalismo, o lugar da mulher na sociedade, etc. Sua relação com a música, especificamente, será discutida no Capítulo IV.

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44 Capítulo II

LIMA BARRETO, A HISTÓRIA E O SENSO COMUM

No capítulo anterior, conduziu-se uma discussão sobre a relação entre literatura e mundo, literatura e contexto histórico, literatura e discurso histórico, literatura e senso comum. Naquele primeiro momento, realizou-se, portanto, uma generalização acerca do que consiste o discurso literário. Mas nem toda literatura, nem todo escritor, lida com essas questões da mesma forma, não havendo um manual de produção literária a que todos devam seguir. Sendo assim, cada texto, cada autor, tem sua forma peculiar de lidar com o mundo, de se relacionar com ele. Em razão disso, faz-se importante que se discuta especificamente a relação da literatura produzida por Lima Barreto, cuja obra foi escolhida como objeto desta investigação, com todas essas questões.

Ademais, este texto parte do pressuposto de que Lima Barreto foi um escritor que produziu um discurso, de um modo geral, desafiador do senso comum da época e do espaço em que vivia, o que faz com que seja importante que se expliquem as razões pelas quais se chegou a esta conclusão. Por que é possível afirmar que este era um autor que se posicionava de forma a questionar o senso comum? Que aspectos de seus textos permitem que se afirme isso?

Este capítulo parte, portanto, da necessidade de se compreender melhor a maneira como a obra de Lima Barreto se relaciona com os contextos históricos, com a sociedade em que se inseria e com o pensamento que a rodeava. Assim, várias questões que perpassam o discurso barretiano serão analisadas, mesmo que de forma mais superficial, para que se verifique se procede, de fato, essa ideia de que este era um escritor que, em geral, desafiava em seus textos o pensamento vigente.