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A ideia do samba como o principal ritmo nacional já se encontra arraigada nas mentes de brasileiros e estrangeiros quando o assunto é cultura musical brasileira. No que tange às manifestações artísticas do país, o samba aparece unânime como um dos mais fortes símbolos de nosso cenário cultural. O samba, entretanto, assim como outros representantes da música popular urbana (sobre os quais será falado posteriormente), nem sempre foi unanimidade. Pelo contrário. Esse outro contexto cultural brasileiro, datado de inícios do século XX, no qual o conflito entre popular e erudito, entre classes populares e elite, entre primitivismo e modernidade, era expressivo, faz parte da história da música popular brasileira, ainda que muitas vezes ignorado por uma ideia de que a cultura brasileira seria algo agregador (a exemplo do mito da democracia racial) e estanque. Sem um estudo um pouco mais aprofundado, tendemos a nos esquecer de que

144 WISNIK. Algumas questões de música e política no Brasil, p. 206.

145 Esta escolha se baseia também numa motivação de ordem prática: o romance Triste fim de Policarpo

Quaresma, embora tenha sido escrito já no século XX, com um olhar de século XX (já distanciado do

contexto da Revolta da Armada, pano de fundo da trama), se passa em fins de século XIX. Em razão desta ambivalência, pode haver certa confusão na classificação temporal do romance. Uma definição mais abrangente deste século XX permite que o texto seja estudado de forma mais clara e sem amarras, sem a barreira colocada pela questão das datas.

78 o mundo como conhecemos hoje é fruto de um longo processo, que o lugar hegemônico que o samba passou a ocupar na segunda metade do século XX está longe de ser o que ocupava nos primórdios da modernização e que sua história, que em muito se confunde com a história da música popular brasileira de modo geral, está repleta de percalços, antagonismos, barreiras e conflitos. Geni Rosa Duarte, referenciando Stuart Hall, explica a importância da resistência – cuja existência pressupõe o conflito – para a ideia de cultura popular:

De acordo com Stuart Hall, qualquer estudo sobre a cultura popular, tanto das suas bases como das suas transformações, deve considerar as lutas em torno da cultura, tradições e formas de vida das classes populares – a tradição popular constituindo um dos principais locais de resistência às imposições feitas sobre o

povo, seja no sentido de ―reformá-lo‖, moldá-lo, discipliná-lo. Luta e

resistência, apropriação e expropriação – esse duplo movimento possibilita

entender oscilações e disputas em torno do popular, entendendo que ―a cultura popular não é, num sentido ‗puro‘, nem as tradições populares de resistência a

esses processos, nem as formas que as sobrepõem. É o terreno sobre o qual as

transformações são operadas‖ (HALL, 2003, p. 232).146

Florencia Garramuño chama atenção para o valor de se encarar o conflito como parte essencial de uma cultura, e por isso se dá a motivação de se compreender melhor essa época em que o conflito era uma forte característica do contexto musical urbano brasileiro.147 Garramuño afirma que o samba, no Brasil, e o tango, na Argentina, teriam sido protagonistas de uma situação cultural bastante conflituosa entre 1880 e 1930, ou mesmo 1940, e manifesta sua crença na importância de se falar mais nesse contexto conflituoso, uma vez que ―a ideia de que a cultura seja um campo de negociações não levou necessariamente ao estudo das diferenças que essa cultura articula‖.148

Essas diferenças só funcionaram como trampolim para que se tirassem conclusões em que esses conflitos eram resolvidos: ―Em muitos casos, inclusive, o estudo dessas negociações construídas pela cultura analisa como o conflito deixa de ser conflito, para

146

DUARTE, G. R. O coração negro do samba, p. 97.

147 Não que esse conflito tenha se acabado; ele continua presente quando se pensa no lugar que outros gêneros, sendo o funk carioca o principal exemplo, ocupam no cenário cultural da atualidade. Há, contudo, uma diferença importante: enquanto o samba representa metonimicamente toda a produção de música popular do início do século, tratando-se, então, de um conflito entre popular e erudito, o funk aparece num contexto em que a música popular já tem o seu lugar no cenário cultural (um lugar, inclusive, de maior destaque e importância que o da música erudita), tratando-se, portanto, de um conflito mais localizado, menos abrangente.

148

79 penetrar na cultura.‖149

Essa observação exemplifica bem a ideia de Benjamin de que a história é escrita de forma a beneficiar os vencedores. Ainda que o conflito esteja presente nos estudos que tratam do complexo processo de desenvolvimento do cenário cultural de um determinado local, esses estudos trabalham na direção de uma resolução dos conflitos, como se só fosse possível discutir o ambiente cultural no momento em que se diluem as dissidências. Isso faz com que se privilegie o lado vencedor do conflito, já que é este que sobrevive quando se dá a análise do ―produto final‖. Para tentar superar esta tendência, a autora propõe uma outra forma de leitura dos acontecimentos relacionados à gênese da cultura nos dois países com que trabalha (Brasil e Argentina); ―uma leitura que procure na cultura os conflitos que a constituem, tentando entender como se articulam [...] e não apenas a sua superação‖.150

O interesse desta pesquisa surgiu exatamente a partir do descobrimento do conflito. A ideia de um Brasil em que a música popular era malvista, rejeitada, e sua execução em locais públicos chegou até mesmo a ser proibida, a ideia de que em inícios de século XX se instaurou um conflito cultural de tamanhas proporções, fez com que se iniciasse a presente pesquisa. O foco aqui, portanto, é o conflito, e não sua resolução.

3. Modernidade X Primitivismo: o lugar (ou não lugar) do primitivo num Brasil