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4. PAISAGENS E RELAÇÕES INTERCAMBIANTES ENTRE Mythos E Logos

4.1. Espectros e visões de Narciso: supervivência do mito nas intersecções

4.1.1. A natureza que se dobra sobre si mesma: fotografia e pintura

O advento da fotografia no século XIX tem influência não apenas na práxis artística, principalmente de pintores, mas provoca alterações na percepção espaço-temporal e na representação da realidade percebida na sociedade de então. A função de mimese da representação da natureza, antes destinada à práxis pictórica, é deslocada para a fotografia, por ser esta capaz de captar aspectos do mundo fenomênico de forma tão potente, que o sentimento de real era motivo de estranhamento para produtores e receptores de imagens técnicas de então.

A nova tecnologia promovia a equivocada sensação de transparência da imagem, visto que esta não era, para os leigos, entendida como uma maneira de mediação de aspectos da natureza, mas como meio de acesso direto a ela, havendo confusão entre objeto (dinâmico) e signo. Já aí, sob a forma do espanto e do estranhamento, podemos dizer, é possível deduzir que havia rastros latentes do que o artista e teórico Julio Plaza, bem como outros autores como o filósofo Vincent Colapietro, denominarão de signo estético, ambos apoiando-se na teoria semiótica de Charles Sanders Peirce.

À medida que o signo estético é autoapresentativo também é autorrepresentativo, sendo capaz de gerar experiência estética, o que acontece devido à potência de interrogação inerente às suas próprias características artísticas.

Julio Plaza, em diálogo com escritos de Roman Jakobson, Haroldo de Campos e Walter Benjamin, e visando corresponder à complexidade do processo de semiose a partir de objetos estéticos, empreende profunda análise em que relaciona signo estético e tradução (intersemiótica, não necessariamente verbal). Como parte desta complexidade o autor aponta o caráter de autorreferencialidade do signo estético que, então, problematiza a própria concepção tradicional de semiose entendida como rede contínua de conexões de signos que se determinam entre si,

isto porque Plaza explicita que “o signo estético não quer comunicar algo que está fora dele, nem ‘distrair-se de si’ pela remessa a um outro signo, mas colocar-se ele próprio como objeto” 55

.

Neste caso, para que o princípio da semiose — em que, segundo Plaza, “signo traduz signo”56 — ultrapasse o referido impasse na consideração do signo

estético, o exercício de reflexão crítica do autor nos convida a compreender que a tendência totalizante do signo estético não deve aspirar apenas à complementação, mas à ressonância de suas próprias estruturas, o que é possível através da tradução da forma, ou seja, do ato de transcriar57, o que pressupõe interpretação crítica — seja do artista, espectador ou leitor — como parte de processo de criação e recepção, convergindo para compreensão aprofundada de como opera a forma para sua devida transmutação.

Neste contexto a tradução e a criação são operações que se equiparam, de modo que, através dos recursos de seleção e combinação, as relações isomórficas de informações estéticas de sistemas de códigos diferentes possam provocar efeitos de sentido analógicos. Com esta abertura dialógica, e a força polissêmica do signo estético que induz à sua autorreferencialidade, há possibilidades para que motivos/temas sejam interpretados, atualizados e transmitidos ao longo do tempo, da História.

Aproximando-se brevemente desta linha de pensamento, também Colapietro58, apontando a força indicial — que se dá em sentido contrário à concepção habitual — do signo estético, explica que este tipo de signo não chama atenção para um objeto outro, mas sim direciona para e concentra a atenção em si mesmo, sendo esta potencialidade fundamental à sua forma de existência. As obras de arte seriam exemplares máximos desta modalidade de signo.

No campo da produção artística aquele impacto inicial próprio da indicialidade da fotografia também abriu caminho para a exploração do inconsciente ótico da câmera fotográfica, tal qual concebe Walter Benjamin:

55

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003, p. 25. 56

PLAZA, op. cit., loc. cit. 57

CAMPOS, Haroldo de, 1981, p.151 apud PLAZA, op. cit., p.29.

58 COLAPIETRO, Vincent. Visual Semiotics. Presentation at SENAC–SP, p.1-19, 29 out. 2003, p.3. (Informação verbal indireta baseada em transcrição de texto elaborado para apresentação oral pelo próprio autor à ocasião de sua palestra).

A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui um espaço que ele preenche agindo inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que de modo grosseiro, mas nada percebemos de sua postura na fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia torna-a acessível, através dos seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional. Características estruturais, tecidos celulares, com os quais operam a técnica e a medicina, tudo isso tem uma afinidade mais originária com a câmara (...). Mas ao mesmo tempo a fotografia revela nesse material os aspectos fisionômicos, mundos de imagens habitando as coisas mais minúsculas, suficientemente ocultas e compreensíveis para encontrarem um refúgio nos devaneios (...).59

A partir do momento em que a nova técnica passou a fixar aspectos da realidade sensível sobre um suporte plano, também vigorou a experiência do olhar mais detido aos detalhes da natureza que, em sua continuidade movente, passavam despercebidos aos sujeitos. Em função disto, houve repercussões nos modos de representação da realidade dos produtores de imagens que se valiam de técnicas tradicionais de arte. No âmbito pictórico, ao mesmo tempo em que a ascensão da fotografia determinou o declínio da arte que tendia ao naturalismo, também acentuou estudos artísticos e científicos cuja ênfase estava nos novos aspectos e mecanismos de percepção da realidade e da estruturação de imagens.

Se no período do advento da fotografia tal conquista tecnológica recebeu críticas, no sentido de ser compreendida como um mero recurso para criar imagens de modo automático, por outro lado, fez com que o indivíduo adquirisse consciência sobre a potência criativa da natureza, então auto suficiente em sua capacidade criadora. A partir daquele momento constatava-se que “a luz podia curvar-se e permitir que a natureza se redobrasse sobre si mesma e restituísse sua própria semelhança”60

mesmo na ausência da intervenção humana. A fotografia, enquanto registro preciso de aspectos da natureza ascendeu como um signo enigmático, mostrando-se superior à percepção humana dos fenômenos e provocando uma crise no universo da representação artística dos pintores da época. Foi então que passou a ter o estatuto de testemunho da verdade e da objetividade do acontecimento.

59

BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 101.

60

KRAUSS, Rosalind. O impressionismo: narcisismo da luz. In:______. O fotográfico. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002, p.67.

A experiência da fotografia provocou uma crise da representação artística, mas também permitiu novas investigações no campo da arte, de modo que, por exemplo, os impressionistas enlevassem seus estudos en plein air, visto que representar as transformações dos objetos observados a partir das mudanças de luminosidade passou a também ser um empreendimento para trazer à tela a organização da percepção e cognição humanas, empenho que se estendeu e permanece até a nossa contemporaneidade nas propostas e práticas artísticas. À nitidez e profundidade dos objetos imediatos presentificados na fotografia através de daguerreótipos segue-se o calótipo, cujo resultado imagético introduzia novas questões que, segundo apontamentos de Rosalind Krauss61, parece ter influenciado a visualidade da pintura impressionista.

O calótipo (ou talbótipo) promoveu barateamento e maior acessibilidade à fotografia, sendo o primeiro procedimento que revelava imagens sobre papel a partir de um negativo, permitindo a reprodução de várias cópias de uma mesma imagem. Krauss realiza aproximações entre a fatura artística de Monet em suas primeiras obras, em que se notavam recortes de massas de cor escuras e claras bastante demarcados, com a experiência que lhe era contemporânea do calótipo, visto que a imagem positivada neste procedimento primava pelos extremos do contraste acromático (campos de luz e sombras) além de incluir um novo dado, pois os referidos polos eram interligados, nas revelações, pela granulosidade repetitiva do papel utilizado no negativo.62 Ordenamento repetitivo de pontos que incidirá sobre a concepção impressionista da pintura, já que a “instantaneidade” da pintura impressionista veio a encontrar uma visão unificadora nos fragmentos luminosos de cor.

Unidade na fragmentação foi o vislumbre e destinação do gesto criativo de Claude Monet, e a experiência de visualidade do calótipo influenciou sua percepção e representação de luzes e sombras. Além disso, parece ter alterado sua consciência sobre a verdade do gesto do pintor, que deveria buscar a consistência da existência desse gesto já que este não mais repousava na imitação naturalista da natureza.

A duração da realização de uma pintura também se mostrava diferente da duração da fixação de imagens técnicas em um suporte — dependente do

61

Ibidem, p. 67-68. 62

procedimento era maior ou menor o tempo dispensado —, porém, enquanto artistas anteriores preparavam previamente a superfície do suporte com castanhos e ocres, além de cores mais escuras, os impressionistas utilizavam-se da crueza da tela, cujas pinceladas vinham encobrir ou deixar a ver as tramas do tecido (a repetição dos mínimos elementos constituintes do suporte). A imagem a ser formada, portanto, diretamente no substrato/tela, não dependia da fina camada que se interpunha entre motivo representado e suporte como tradicionalmente ocorria até então através de translúcidas superfícies de velaturas ou outros métodos de aplicação a priori de pigmento mais espesso.

Monet aguardava as mesmas condições luminosas para dar continuidade a pinturas inacabadas, pois compreendia que a qualia da percepção luminosa era o princípio unificador da imagem e não um tratamento homogêneo que antecedia a experiência da realidade observada, cuja finalidade estava em controlar as soluções luminosas de antemão.

A instantaneidade do signo-fotografia estava na formação da imagem completa em um único ato fundador, no processo de captação simultâneo de determinados aspectos do objeto dinâmico como uma cena, ou seja, na aparição de todos os pontos que constituem aquele signo ao mesmo tempo, enquanto que a instantaneidade de Monet estava na obsessão de arquivar na obra a impressão imediata da luz, cada uma das pequenas pinceladas constituía-se como um signo. Monet parecia buscar não um ato mecânico de precisão da forma, mas a certeza de que a primeiridade do fenômeno imediatamente percebido fosse transferida/materializada em toda sua plenitude em sutis nacos de pigmento. Esta seria a singularidade do artista-pintor face ao aparelho fotográfico.

Ao meu ver, o artista não luta contra a nova expressão da tecnologia, mas a aparição desta coloca aos pintores o desafio de concretizar, por intermédio da sensação da cor luminosa percebida, toda a gama subjetiva que esta lhe provocava — o que Proust denominaria de memórias involuntárias: imagens outras, odores, sabores, emoções — concentrada em um único ponto/gesto criador, afim de que a pintura se tornasse expressão de todo um universo de percepção do momento. Por este viés, a pintura impressionista de Monet era concebida em palimpsesto, dada a sobreposição de instantes gestuais. Nisto, a duração de sua pintura impressionista também adquiria uma duração e profundidade temporal complexa, criativamente

diversa da captação da imagem fotográfica (seja com o procedimento do daguerreotipo ou do calótipo).

4.1.2. O poeta e o artista contemplam: para descer fundo no coração das