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3. SOBRE PAISAGENS NA PRODUÇÃO DE ARTE CONTEMPORÂNEA

3.2. O tempo de Arte, Ciência e Humanidade: entre o tudo e o nada e vice-

Como apresentado neste capítulo, no tocante a questões envolvendo modos de representação contemporânea e experiências alegóricas e artísticas na arte, faz-se pertinente a esta pesquisa algumas produções, inclusive abordagens teóricas, do artista Kazimir Malevich. Isto porque suas concepções artísticas, do período suprematista, apontavam a ausência de um objeto referencial para a abstração de formas, ausência de um objeto que fosse imediatamente perceptível ou reduzido a uma figura de rápido reconhecimento, daí também o caráter contemporâneo de virtualidade e da própria condição de existência de certas imagens e dispositivos artísticos em que a imagem também pode estar destituída de uma acepção convencional de objeto e expandir-se para outro entendimento.

Malevich realiza, no livro O mundo não objetivo (versão em espanhol: El

mundo no objetivo)50 (1927), estudos acerca da “criação artística em geral e da

pintura em particular”51

, considerando representações tradicionais de pintura e as vertentes de “estilos” que, há época modernista, surgiam como um modo de experimentação visual impulsionada por aparelhos tecnológicos e a ciência. Kazimir Malevich, artista convivendo em território do Império Russo em meados do século XX, propôs-se a sistematizar alguns procedimentos visuais agrupando mais de um tipo de representação figurativa realizada com objetos técnicos (desenhos, pinturas e fotografias) — inclusive considerando reproduções técnicas destas —, de modo a conceber a teoria do elemento adicional, que, segundo Malevich em seu referido livro, seria um elemento transformador responsável por provocar específicas “metamorfoses na concepção de arte”52

, para tanto, seu interesse estava em descobrir de que modo este elemento adicional teria estimulado o organismo criador do artista (considerando, aí, estímulos sensoriais).

50

MALEVICH, Kasimir. El mundo no objetivo. Aracena: Gegner Libros, 2013. 51

MALEVICH, op. cit., p.4. Tradução livre da autora. Transcrevo, a seguir, o excerto em espanhol do livro: “la creación artística en general y de la pintura en particular”. MALEVICH, Kasimir. El mundo no

objetivo. Aracena: Gegner Libros, 2013, p.4.

52 MALEVICH, op. cit, loc. cit. Tradução livre da autora. “metamorfosis en la concepción del arte”. MALEVICH, Kasimir. El mundo no objetivo. Aracena: Gegner Libros, 2013, p.4.

Inicialmente, àquela época, para conceber sua pesquisa, comparou a fotografia, representações tradicionais de arte e outras de vanguardas modernistas — desenhos e pinturas cujas composições apresentavam graus variados de abstração das formas, marcadamente o cezzanismo, o cubismo e o impressionismo francês, mas também o próprio suprematismo criado por Malevich — com as culturas biológicas e médicas (referindo-se às culturas como diferenciações estruturais de organismos), realizou tal aproximação dialética sem sobrepô-la aos conhecimentos médicos e biológicos, mas por intermédio de comparações metafóricas, sendo este seu método de pensamento. Não se sobrepôs aos referidos conhecimentos e, com o suprematismo pictórico por ele criado (concebido também como imagem técnica em certo sentido), voltou-se a uma vertente de abstração espacial a partir de elementos gráficos e geométricos, considerando, inclusive, a sensação de vistas aéreas com formas “simplificadas” e citando, inclusive, a ideia de uma cosmovisão.

Segundo Malevich, uma cosmovisão era possível através da disposição de elementos espaciais, que desviavam das normas de representação vigente. Como entender esta cosmovisão? Segundo o artista sobre seu empreendimento artístico:

Nascia uma nova cosmovisão, cujo significado e cujos conteúdos não foram compreendidos: a renúncia ao elemento objetivo na pintura não justifica de modo algum que se parta da premissa que se está diante de uma degeneração enfermiça da capacidade de compreensão ou, inclusive, diante da degeneração de uma classe. Estava-se acostumado a perceber os fenômenos cromáticos em relação inseparável com as formas reais da natureza (nuvens, pessoas, povos, etc.) e não se entendia porque a estrutura cromática do quadro abandonava repentinamente a senda fixada para ordenar o verde, o azul, o branco, o cinza, o vermelho de modo <<incompreensível>>, de maneira que as nuvens, os povos e as panorâmicas desapareciam.53

53

MALEVICH, op. cit., p. 44. Tradução livre da autora. Transcrevo, a seguir, o excerto em espanhol do livro: “Nacía una nueva cosmovisión, cuyo significado y cuyos contenidos no fueron compreendido: la renuncia al elemento objetivo em la pintura no justifica d emodo alguno que se parta de la premissa de que se está ante uma degeneración enfermiza de la capacidade de comprensión o, incluso ante la degeneración de uma classe. Se estaba habituado a percibir los fenómenos cromáticos em relación inseparable com formas <<reales>> de la naturaleza (nubes, personas, pueblos, etc.) y no se entendia por qué la estrutura cromática del cuadro abandonaba repentinamente la senda fijada para ordenar el verde, el azul, el blanco, el gris, el rojo de modo <<incomprensible>>, de manera que las nube, los pueblos y las panorâmicas desaparecían.”

Retomando a analogia das constelações apresentada neste Capítulo, a referida cosmovisão, comentada por Malevich no excerto acima, talvez estivesse perceptível na disposição dos elementos da sala expositiva. Apenas para considerar um exercício de imaginação: se cada elemento pictórico correspondesse a uma estrutura celeste, no caso, uma sombra cromática desta estrutura, os objetos reais (referências para abstrações geométricas), pela proposição de Malevich, não necessariamente estariam alocados no campo de visão da tomada fotográfica, há uma espécie de vácuo expositivo (outra característica do cosmos), de caráter perceptivo e mental, que antecede o visionamento daquela exposição por outros espectadores, resta-lhes a pura sensação das cores, do modo de exibição das obras, sem que a origem do gesto criador e todo o processo de criação que o envolve seja captado em sua plenitude. Está aqui anunciado, portanto, um modo de falta criativa, para que o outro se manifeste quanto à percepção da arte que recepciona. Daí que, pode-se apontar, o “vácuo” do espaço expositivo não está vazio. As imagens pictóricas suprematistas de Malevich são o rastro desta pura sensação.

Devido às projeções pictóricas temos aqui, em um caráter poético, a ressonância das sombras da caverna de Platão. Olhar para o céu, ou para uma superfície refletora que o espelhe é também olhar para o passado e se questionar sobre a origem dos fenômenos cósmicos e a constituição do micro e macrocosmo. Ainda neste contexto explicativo, o movimento está presente de forma muito sutil, inerente à proposta da supremacia da sensação, seja por conta da sensação luminosa das cores que estimulam alterações internas às obras apenas ocasionadas pelas relações cromáticas e elementos gráficos estruturais, ou mesmo pela leveza dos suportes pictóricos sutilmente suspensos das paredes na parte superior, porém com a parte inferior de cada obra sutilmente localizada nas paredes.

Retomando a pintura do quadrado preto de Malevich, pode-se dizer que, em sua concretude negra, é um signo ambíguo, carregado de superficialidade e profundidade, como um buraco negro este capta a atenção do espectador além de estar situado na condição limítrofe de um ponto de convergência e divergência tão peculiar que traz a ideia de um intervalo estreito entre dois planos claros — uma sombra entre dois planos luminosos —, proporcionando uma impressão de dinamismo ao espaço expositivo, em que as outras formas suprematistas são percebidas ritmicamente neste “canto”, como notações musicais ou escritas

hieroglíficas. Não por acaso a sensação pura aqui presente, de uma finitude, perante um aparente nada, que na verdade é tudo, anunciado pelo branco, provocam a sensação de uma desconstrução radical, ainda que apenas imaginária, pois as estruturas das paredes convergem para uma aresta vertical, de aspecto umbralino, que apresenta quantidade indefinida (o olhar que submerge na densa massa pictórica se lança em um voo no escuro). Esta sugestão à quarta dimensão, em que o tridimensional se associa ao tempo e que remete a um modo de visualidade, referente a abstração de tais objetos (sobre suportes), também influenciou a teoria do elemento adicional de Malevich.

Surge aqui também a potencialidade de um cubo negro, visto que a proposta suprematista de Malevich não se limita a uma aparente limitação física da percepção de uma figura geométrica, por este viés um quadrado também poderia ser a vista de uma das faces de um cubo ou caixa, de modo que as outras faces destes objetos estivessem ocultas por uma questão de projeção “gráfica” sobre um plano bidimensional e, ainda, por uma questão de ponto de vista: neste caso, um cubo visto de cima ou totalmente de frente nos relegaria à visão de uma pintura como esta. Também poderia ser um poliedro, do qual apenas vemos parte de sua constituição — da qual participam uma face pictórica sobre um substrato real, então registrado na fotografia (Fig. 1), enquanto que há alusão a outras faces por intermédio da projeção de sombras do substrato pictórico real no entroncamento das paredes da exposição. Logo, poderia ser a representação pictórica da sombra de um objeto projetada sobre um plano, neste caso, o Quadrado preto sobre fundo branco seria a projeção de uma projeção, por isso, quando de sua primeira exposição, a sugestão de um deserto do real faz com que a recepção da crítica de arte especializada à época fique espantada, o que se dava justamente pelo modo excepcional de representação de sensações discutidas por Malevich.

Então este procedimento mise en abîme (cena em abismo) por excelência, poderia implicar a ideia de um quadro no interior de outro, valendo-se de um sistema de representação artístico que promove a desconstrução da concepção de um objeto referencial realmente existente se utilizando de um processo de inscrição espacial que parte de ideias abstratas.

No campo da arte moderna, em que o espaço museológico promove um deslocamento dos objetos criados do seu contexto de referencia original, a forma, o conteúdo e a descrição podem estar deslocados um do outro ou, ainda, serem

indicativos de uma notação específica, cuja decodificação requer o conhecimento prévio de códigos combinados, como em um jogo lúdico. O mesmo se passa, por exemplo, com a língua escrita e falada, que, para ser compreendida e aprendida, deve ser convencionada por um grupo, sociedade, etc.

Este modo de exposição do Quadrado preto sobre fundo branco (1913- 1915) (Fig.2), como se convencionou denominá-lo, está vinculado ao modo como são dispostos os ícones russos, o que dá margens interpretativas à ideia de que a obra estaria conferindo, por assim dizer, status de sacralidade ao espaço expositivo por conta da manifestação de A Última Exposição Futurista „0,10‟ (Fig.1). Não se trata da última exposição futurista de fato, visto que ao longo de todo o século XX e também no século atual, outros artistas, das mais diferentes áreas e espaços de trabalho, percebendo o potencial abstrato de Malevich e o modo de construir suas obras no espaço expositivo-institucional, utilizando cores puras destituídas de qualquer objeto referencial, também se utilizaram desta vertente criativa. De modo que tanto as experimentações suprematistas quanto outras vertentes do modernismo, tem suas repercussões na produção artística atual, estes argumentos são melhor detalhados nos Capítulo 4 e 5 desta pesquisa.

É comum que muitos artistas sejam considerados loucos por pensarem de modos diferentes, mas se trata de uma loucura sã. No livro “O mundo não objetivo” Malevich comenta sobre isso, muitas vezes, mas não sempre, a crítica se manifesta sem considerar os motivos representativos inscritos em superfície tênue e silenciosa, porque muitas vezes é difícil entender as singularidades do outro, perceber a importância da reedição de certos programas estéticos e os cuidados para com esta imagem representativa do outro também é essencial.

Alguns poderiam designar certos trabalhos como arte degenerada, como reiteradamente ocorreu com as vanguardas modernistas, mas é importante compreender que a inspiração artística tem modos de expressões distintos. Se, através do registro fotográfico, Malevich realizou uma exposição em uma galeria ou salão oficial, ou se, por acaso, tivesse construído/projetado a obra em uma gaveta de escrivaninha ou arquivo, em uma mala ou caixa, se, para tal, utilizou os papeis descartáveis, postais, livros, catálogos, tubos de projeto arquitetônico, processos analógicos de imagens técnicas, entre tantas outras possibilidades, isto não desqualifica o trabalho do artista e nem seu pensamento poético ou lógico e filosófico.

Malevich, no livro O mundo não objetivo (1927), diz que há dois grupos que vão se diferenciando conforme o tipo de “relações que vão se conformando: as categorias da <<proporção natural>> e as da <<proporção antinatural>>”54

. O termo antinatural apresentado por Malevich não está em oposição à natureza e à paisagem (aquelas que se criam e existem por si só e, a princípio, não são construídas pelo ser humano) e este termo também não é oposto à conservação da biodiversidade, inclusive nativa, que tem existência real e objetiva. O autor está a conjecturar, conceitualmente, sobre a desnaturalização do olhar humano concernente a representações visuais e níveis variados de reconhecimento e abstração de elementos que configuram espacialmente tais representações, sendo que tais abordagens se voltam, em outros capítulos desta tese de doutorado, à análise de obras selecionadas de artistas.

Não por acaso, a presença dos estudos de Malevich, bem como a sistematização de representações artísticas que este artista e teórico legou às gerações futuras — inclusive e especialmente no caso da nossa também, pois no mundo contemporâneo mais de um tipo de organismos de gerações diferentes estão convivendo — é muito importante na trajetória desta tese, sendo que a presença de seus escritos é aqui pertinente. Não optei pelo seu esquecimento em função de outros movimentos vanguardistas, tal qual o construtivismo russo — com produções mais voltadas aos interesses de propaganda política da época, na qual havia unipartidarismo, entre outras particularidades contextuais —, pois seria como que repetir um ato histórico não conveniente ao campo do conhecimento (e do entendimento), inclusive para a compreensão desta tese, que veio a se inspirar, em certa medida, no supracitado método comparativo de Malevich. Logo, não se está a falar de um tipo de construtivismo em particular, mas do caráter construtor, do qual participa sua teoria.

Daí a necessidade de não incorrer em determinismos ideológicos partidários de esquerda ou de direita. Também é importante salientar que não se está, nesta tese, a se fazer uma crítica à Rússia na atualidade, não sendo pensada como uma forma de utilidade partidário-propagandística.

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MALEVICH, op. cit., p.5. Tradução livre da autora. Transcrevo, a seguir, o excerto em espanhol do livro: “relaciones que se van conformando: las categorias de la <<proporción natural>> y las de la <<proporción antinatural>>.” El mundo no objetivo. Aracena: Gegner Libros, 2013, p.5.

Não se trata de se associar a produção artística a ideologias políticas, mas de estabelecer uma verdadeira comunicação entre ambas as estruturas (esquerda e direita). Mais do que apenas incluir o humano nesta perspectiva ativa e imaginária, vale observar o entorno e perceber, em sua humanidade, os entes de diferentes escalas que nos circundam. Assim se estabelece uma verdadeira comunicação, digna do mistério do mundo, e cada qual está a par do milagre da vida criativa e a salvo da ignorância destrutiva.