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2. A COMPLEXIDADE DO CONCEITO DE PAISAGEM

2.1. Desdobramentos sobre o potencial da paisagem e da estética no campo

2.1.2. A respeito de Khôra

Todas estas abordagens sobre a ressignificação do termo paisagem, dentre as quais a capacidade de evocar memória e torná-las paisagem, “lugar de contemplação” externo ao indivíduo ou, ainda, inaudito, em sua forma de concepção imagética e mental e, portanto, insondável — quando não externalizada a outrem, ou, ainda que externalizada a outrem, inexprimível e inapreensível em sua plenitude — e mesmo a acepção intermediária entre o mundo das Ideias e do sensível,

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remete-nos às abordagens de Jacques Derrida a respeito de khôra, sendo este um termo utilizado no campo da filosofia, em Timeu, um dos diálogos de Platão.

Sócrates aparece como um dos personagens, sendo o anfitrião do diálogo, e três dos convidados (Timeu, Hermócrates e Crítias) estão presentes, havendo um quarto, que está ausente. Como o convite à fala seria direcionado a este quarto, que não estava à vista, Timeu, então, é convidado por Sócrates a discorrer sobre a criação do Mundo (entenda-se aqui o universo), realizando algumas distinções prévias acerca do eterno e do que é gerado 21. O eterno, por ser sempre o mesmo e não ter gênese, é um modelo Ideal (portanto, idêntico a si mesmo), e aquilo que está vinculado à geração, é susceptível de sofrer mudanças — daí participando do mundo sensível, o que está em movimento, o que está em devir, tal qual, por exemplo, o diálogo em acontecimento. Nesta tese de doutorado, apreende-se neste discurso um recurso que entrevê já a existência de Khôra/khôra, pois Timeu aparece no diálogo primeiramente como um indivíduo Ideal (ele é anunciado por “Sócrates”, e, diga-se de passagem, Platão fala através de Sócrates), mas sua presença no discurso faz com que ele participe do mundo sensível. Para discorrer sobre as bases da criação do Mundo, e há vários jogos interpretativos e lógicos no início deste “diálogo”, há a presença da Memória/memória a constituir paisagem no próprio texto. Nas questões abordadas por Timeu22, há a Alma do Mundo e a alma da qual são dotados os entes em devir (que são almas particulares, individuais); a Alma do Mundo, nesta concepção; é automovente por impulso de algo além de um artista/demiurgo. O movimento, enquanto qualia, é discutido em mais de um momento desta tese, e, ainda que se trate de uma contribuição modesta de pesquisa, é especificamente aprofundada no capítulo sobre a complexidade da conceituação de paisagem (aqui neste caso, considerando o campo da arte).

Em seu livro homônimo, Derrida discutirá a dificuldade, e antes, a intraduzibilidade do termo khôra, inclusive, em mais de um momento do livro há

oscilação no linguajar, pois que, em alguns momentos, este se refere a “ela” como

um substantivo feminino, utilizando-se de um artigo definidor de gênero a khôra, para então expor a complexidade que implica sua indefinição/indeterminação, faz com que o artigo definido lhe seja retraído, ou melhor, o artigo definido se retrai por

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PLATÓN. Platón (Timeo) — Traducción, introducción y notas de Conrado Eggers Lan. Buenos Aires, Argentina: Ediciones Colihue S.R.L., 1995.

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Abrem-se aqui parênteses para acrescentar que no livro Platón (Timeo), citado na nota anterior, a grafia de Khôra aparece como Chóra.

um movimento do pensamento de quem está a pensar (pensar em movimento, contemplação ativa, porque ainda que estática, paradoxalmente também está em movimento), denominando khôra de triton genos (terceiro gênero).

Aqui, portanto, a referencia à sexualidade apontada pelo autor é colocada em questão, pois se refere a algo que excede a polaridade do mythos e do logos, o que dá a entender que não se referiria propriamente ao sexo masculino ou feminino — nem mesmo às questões transgênero, assunto que está habitualmente em vários ramos da imprensa, o que poderia levar o leitor desta tese a compreender tal denominação de acordo com esta tendência atual, o que não é o topus desta tese —, caso houvesse a submissão e/ou dominação de um gênero discursivo por outrem, Derrida estaria situando khôra em apenas um dos pólos binários, daí, embora isto não esteja explícito no livro de Derrida, compreendo que o caráter indefinido de khôra e o alcance ideal, e não dominador, de sua concepção estaria mais voltado a um sentido de amor à sabedoria e também ao conhecimento, amor essencial a determinados preceitos.

Comenta Derrida: “Talvez seja porque leva além ou aquém da polaridade sentido metafórico/sentido próprio, que o pensamento da khôra excede a polaridade, sem dúvida análoga, do mythos e do logos.”23

Daí que o pensar inclui o mythos, quando, na inacessibilidade de uma definição explícita, este parece se aproximar do que é incognoscível. Mythos, portanto, também estaria na imanência de Khôra.

Além do prazer sensual — aqui compreendida a percepção sensual, no sentido de sensorial —, há níveis de percepção da realidade até o Incognoscível, ao que se poderia denominar Real, sendo alhures e inatingível. Por isso, ao invés do pensamento da khôra, o pensamento de khôra. Mas este alhures, inapreensível em sua substância, mas não sem essência, já não seria khôra, mas algo mais, Khôra. Daí, as vertentes do espacial e do lugar. Algumas matérias e substâncias estão cristalizadas, outras, no entanto, não se dão a ver. Não se dar a ver não seria deixar de existir. Seria demasiado exagerado pensar que não há apenas um modo de coexistência? O distante e o próximo não necessariamente são os mesmos, pois se assim o fosse, nada existiria, tudo estaria em um único plano. Será que o mundo é tal qual eu vejo ou se trata de uma anamorfose?

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Como exposto em tópico anterior, ao situar a paisagem, mesmo em suas vertentes ressignificadas, está-se a constituir níveis diferenciados de alteridade. Há variados modos de abstração, aqueles de caráter mais simples e outros mais complexos, daí havendo a problemática do aparelho psíquico e do inconsciente: o que permite que o imaginário exista também, assim como o imagético e o visual. No entanto, se Khôra é Alteridade radical, deve haver aqui também um cuidado para não confundi-la (a citada Alteridade) com o Mal radical.

Ainda no prefácio do livro, Derrida argumenta: “Sabe-se bem: o que Platão designa sob o nome de khôra parece desafiar, no Timeu, essa “ ‘lógica de não-contradição dos filósofos’ ”, daí, penso eu — ou o universo me pensa, já não sei — que um terceiro gênero não apenas se interpõe entre eles como que também os engloba. Existe mais de um modo de pensar interface. De fato, a camada de ozônio existe, interfaces de computadores também, também interfaces orgânicas e mecânicas... mas também esse Algo, esse elemento adicional que está aquém e além.

Em suma, pode-se explicitar que, embora intraduzível e talvez mesmo por conta disso, Khôra é indesconstrutível e um terceiro gênero que há entre o mundo inteligível (imutável) e a cópia destas Ideias (seus resquícios no mundo sensível). Khôra seria receptáculo total — daí sua apreensão abissal, sem delimitações e sua própria intraduzibilidade — das imagens potenciais de todas as coisas que as dota de aparência sensível, e participa de sua substância no mundo objetivo sem, no entanto, tomar a forma ou adquirir as propriedades individuais destas coisas. Assim sendo, Derrida expõe que transitam em Khôra as imagens potenciais das coisas, trata-se de espaço e espaçamento em abismo que proporciona lugar à existência e, neste processo, mantêm-se informe. Este espaçamento não quantificável de sobreimpressão (porte-impreinte) sem fundo/suporte aparente somente é pensado na pesquisa — devido à sua radical indeterminação — em relação metafórica com a estrutura de instalações e sua inscrição no vazio do espaço expositivo, portanto, considerando a recepção das obras pelo sujeito (espectador/autor/pesquisador) e suas condições de produção.

A seguir, uma forma de escrita filosófica e poética, de caráter autoral, que resulta do pensamento a respeito de paisagem e de Khôra:

Quando se olha para trás, se vê as coisas de outro ponto de vista. Não olhar para trás é mais fácil do que deixar de olhar para trás. Não se trata de um simples olhar para trás, isto feito como um gesto natural e mecânico muitas vezes não deixa de ser isto mesmo, apenas um movimento corporal para percepção espacial, informativa, ou, ainda, uma mera visão retroativa por intermédio de um dispositivo especular... mas, em outra acepção, vou ousar dizer aqui, mais poética — embora alguns leitores (um ou dois, diga-se de passagem, se é que alguém lê estas palavras que aqui escrevo) talvez me condenem pelo uso deste termo, condenação não em sentido jurídico, mas em outro sentido, talvez menos por ódio e mais por advertência e cuidado — olhar para trás é também olhar o Silêncio, coisas que deixaram de ser e, estranhamente, ainda o são. Mas todos olham para trás desse modo? Pois se trata de um movimento estranho, mais do que olhar, é um contemplar estático que, simultaneamente, está em movimento. Por onde passa o rio da Memória também passa o do Esquecimento? Ou é o mesmo rio e são as margens que mudam? E o que não tem margens ainda posso chamar de rio ou já aí tem a semelhança do mar, do oceano, da Via Láctea? Estamos constantemente atravessando de um lado ao outro deste rio incógnito? Ou somente Eu estou fazendo isso? Tu também estás? Ou Nós estamos sem termos consciência Um do Outro? Que Memória é esta que é feita de outras tantas memórias, pois até para escrever (re)flexiono o Eu em mais Pessoas?