• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2. ENQUADRAMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO:

3.5. A necessidade e o direito à fruição das paisagens da geodiversidade sob o

PATRIMÔNIO CULTURAL

A experiência da paisagem é uma modalidade do viver (cf. item 3.2). Uma paisagem é um “lugar de experiência vital” (Carapinha 2009), perante o qual se estabelecem direitos e deveres baseados numa relação ética e estética. Tais deveres assentam na necessidade de respeito à temporalidade e à materialidade viva, dinâmica, processual, produtiva e sistêmica própria da paisagem. Um lugar ou território estão sempre enraizados numa diversidade de relações, em perpétuo movimento e em constante evolução, entre fatores abióticos (geodiversidade), bióticos (biodiversidade) e culturais. Uma compreensão integradora, inclusiva e interdisciplinar da paisagem, vista como espaço estético e ético da relação homem- natureza, pode impedir que as formas de degradação natural e antropogênica se combinem para criar um cenário nunca antes testemunhado (Carapinha 2009).

Paisagens são propriedades emergentes da combinação de ambientes específicos, numa dimensão objetiva, e modos humanos qualificados, dignificados, de vivenciá-los, compondo o referido patrimônio vivencial (Meneses 2015). A interpretação sistêmica do texto da CRFB, Seção II, “Da Cultura”, nomeadamente do art. 216, II e V, conduz a uma compreensão integradora da experiência da paisagem, a reconhecer a inter-relação inextricável entre os aspectos objetivo e subjetivo dessa experiência. A CRFB preceitua que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem “os modos de criar, fazer e viver” (art. 216, II). Adicionalmente, declara constitutivos do patrimônio cultural brasileiro “sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico” (art. 216, V).

97

Objetivamente considerados, espaços de interesse geológico em sentido lato, desde a perspectiva conceitual assumida nesta tese (Fuertes-Gutiérrez & Fernández-Martínez 2010) (cf. item 3.4) — pontos, seções ou segmentos, mirantes, áreas, complexos —, correspondem aos sítios de valor histórico, paisagístico (estético), artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico (em sentido lato) e científico (geossítios em sentido estrito) referidos pela CRFB (art. 216, V), ao passo que a experiência da paisagem propiciada por esses espaços concerne aos modos de viver historicamente elaborados numa correlação inextricável com tais espaços. Sob o signo dessa correlação, pode-se afirmar o direito às paisagens da geodiversidade.

A afirmação concreta da dignidade humana pressupõe uma configuração espacial que propicie o bem-estar físico e psíquico (Marchesan 2006). Sarlet & Fensterseifer (2014:48/49) lembram que a sadia qualidade de vida que a CRFB (Brasil 1988) visa realizar, pela proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput), só é possível “num ambiente natural onde haja qualidade ambiental da água que se bebe, dos alimentos que se consomem, do solo onde se planta, do som que se escuta”. Certamente, uma dimensão da dignidade humana assenta na possibilidade de experienciar paisagens dignificantes: que gerem conhecimento, prazer estético, descanso, meditação. Se a paisagem “indica a existência de relações e processos de significação cultural dos elementos constitutivos do espaço, com o consequente surgimento de estruturas de suporte à formação da identidade social do homem” (Nardy 2003:168); se ela não se reduz a “uma realidade independente — da percepção do sujeito — que exista per se, mas é antes o resultado de um acto criador do espírito humano”, de maneira que seu valor “é sempre conferido (e acrescentado) pela arte e cultura humanas” (Serrão 2013:152), o direito a vivências dignificadas das paisagens da geodiversidade emerge, assim, como resultante da integração de duas dimensões:

(1) Os espaços do geopatrimônio em sentido lato — pontos, seções ou segmentos, mirantes, áreas, complexos — objetivamente considerados;

(2) Os modos de criar, fazer e viver que atores e grupos sociais elaboram historicamente em interação com tais espaços.

Dessa perspectiva, para além da proteção in situ e do serviço à educação e à ciência, a geoconservação pode contribuir para que vivências dignificadas com suporte nos espaços da geodiversidade (Fuertes-Gutiérrez & Fernández-Martínez 2010) sejam acessíveis às atuais e

às futuras gerações. Se a geodiversidade é o “palco” da biodiversidade (cf. cap. 2, 2.2, 2.2.1), ela o é, igualmente, da diversidade de culturas, do patrimônio cultural. Essa visão aplica-se a ambientes rupícolas e hidrográficos, em suas várias formas de ocorrência ambiental: existem vivências dignificadas da paisagem intimamente ligadas a serras, vales, montanhas, cavidades, nascentes, corpos d’água, pelo que importa guardá-los a salvo; conservá-los.

O patrimônio imaterial de um lugar ou território participa da construção da paisagem (Custódio 2014), pelo que deve ser salvaguardado. Cada comunidade tem sua própria cultura, que resulta numa relação específica com o território. Se, ante a globalização, a cultura local não for protegida, a paisagem tende a perder sua função como estruturante de identidades individuais e coletivas.

A concessão de tratamento especial a certos espaços é assente na percepção que eles possuem um modo de ser peculiar; uma maneira única de serem apreendidos pelos sentidos (spiritu loci). Não raramente, essa unicidade provém da presença de elementos, lugares ou territórios da geodiversidade, os quais catalisam ou abrigam vivências dignificadas, sejam elas fugazes ou duradouras, da paisagem.

Traços geológicos e ecológicos, que se descortinam em serras, vales, rios, matas, etc., influenciam a elaboração concreta e histórica de formas humanas de pensar, sentir, criar e viver (Alvarenga 2019). Exemplo disso é o modo de fazer o queijo Canastra, associado à geomorfologia e à diversidade de solos da serra homônima, contexto geológico-ambiental da presente tese.

Iniciativas de geoconservação podem contribuir para afirmar concretamente vivências dignificadas integradoras da paisagem. Há modos de criar, fazer e viver tecidos em correlação com a geodiversidade. Por isso, a valorização e a proteção dos espaços do geopatrimônio exigem, para além da consideração às características geológicas, biológicas e hidrológicas desses espaços, a percepção de “formas particulares de interação entre o homem e o seu meio e o respeito às paisagens culturais por seu intermédio construídas” (Nardy 2003:172).

99