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CAPÍTULO 2. ENQUADRAMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO:

2.3. A geodiversidade como repositório de valores

2.3.2. Um contraponto a partir de Dooyeweerd

A enumeração dos valores da geodiversidade feita por Gray (2004) e a afirmação de um valor “intrínseco” nela não podem ser vistas como algo definitivo ou inquestionável. Para fins de reflexão, tome-se como referencial crítico a Filosofia Cosmonômica e a Teoria dos Aspectos Modais, nos termos propostos por Dooyewwerd (1958). Desde o enquadramento dessa teoria, uma estrutura individual — uma rocha, uma orquídea, um automóvel — é perceptível, sempre, a partir da estrutura de existência humana. Não há significado ou valor na realidade sem uma necessária remissão ao ser humano, que a interpreta e experiencia. Todas as estruturas de individualidade relacionam-se umas com as outras — o que, epistemologicamente, conduz à relevância de abordagens interdisciplinares (Martins Jr. 2000) —, e o acesso ao conhecimento acerca dos diferentes aspectos de uma estrutura individual é inexoravelmente mediado pela experiência humana (Dooyeweerd 1958; Kalsbeek 2015).

O pensamento de Dooyeweerd abre espaço, adicionalmente, para uma reflexão sobre outros significados e valores da geodiversidade, mais além dos referidos em Gray (2004). Importa aqui considerar que Dooyeweerd (1958) identificou, de modo expressamente não taxativo, quinze aspectos ou modos de ser da realidade, cada qual regido por leis típicas e repositório de significações próprias, em escala ascente de complexidade. São eles: (1) numérico ou aritmético; (2) espacial; (3) cinemático ou do movimento extensivo; (4) energético; (5) biótico ou orgânico; (6) psicossensível; (7) lógico-analítico; (8) histórico ou formativo; (9) linguístico; (10) social; (11) econômico; (12) estético; (13) jurídico; (14) moral; (15) pístico, relativo à fé. Coisas, entidades e sistemas assumem significações e funcionalidades distintas nesses aspectos ou modalidades (Martins Jr. 2000; Alvarenga 2013). Tome-se como exemplo, para fins de exercício prático, um afloramento de quartzito, encontrável em vários pontos no platô, parte alta, da Serra da Canastra.

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Figura 2.9 – Afloramentos de quartzito no platô da Serra da Canastra.

À partida, o afloramento é uma estrutura de individualidade; apresenta-se como algo identificável, numerável — (1) aspecto modal numérico ou aritmético. Ele possui uma espacialidade; ocupa determinadas porções do espaço — (2) aspecto modal espacial. Embora imperceptível, há movimentos nele, sejam os decorrentes de sua inserção no planeta Terra, que se move em rotação e translação, sejam os que envolvem sua estrutura em função de processos geológicos — (3) aspecto modal cinemático ou do movimento. O afloramento está sujeito a descargas energéticas e é contentor de energia densificada — (4) aspecto modal energético. Conquanto não seja considerado algo vivo em sentido biológico, ele é abrigo, habitat de diversas espécies vegetais e animais, o que remete ao valor funcional da geodiversidade e aos serviços ecológicos que ela desempenha (cf. itens 2.2 e 2.4) — (5) aspecto modal biótico. O afloramento não é sensciente, não possui psicossensibilidade, mas pode ser indutor de sensibilidade noutros entes, como num animal que venha eventualmente a se ferir nos fragmentos de rocha, ou num ser humano, que se emocione ao conhecer as origens remotas da formação — (6) aspecto modal psicossensível. O afloramento quartzítico pode ser estudado, decifrado cientificamente, sobremodo pelas Geociências — (7) aspecto modal lógico-analítico. Há uma historicidade no afloramento, seja pelo ângulo da Geologia, cujo olhar se projeta para “a história antes da história”, seja sob o prisma das tramas humanas que se desenrolaram e ainda se desenrolam em suas cercanias — (8) aspecto modal histórico-

formativo. Todo o conhecimento acumulado acerca do afloramento, um palimpsesto in situ, é comunicável, transmissível por diversas formas de linguagem (livros, guias, aulas) — (9) aspecto modal linguístico. Para além de sua inserção no planeta, o afloramento apresenta determinada contextualização social, desde os relacionamentos locais até os globais — (10) aspecto modal social. De modo patente, ele tem significado e valor econômico; pode ser aproveitado para atividades humanas diversas, que incluem desde o turismo contemplativo até, radicalmente, a extração — (11) aspecto modal econômico. Como propõem a geoconservação e o geoturismo (cf. itens 2.7 e 2.9), o afloramento, como componente de um ambiente e de uma ambiência, conduz a experiências estéticas; de contemplação e fruição da paisagem — (12) aspecto modal estético. Fatalmente, há interesses de propriedade e de usos a incidirem sobre o afloramento, interesses esses cujo exercício é regulado pelo direito. O diálogo entre Geoconservação e Direito Ambiental (cf. cap. 6) pode ser fecundo a se perspectivar, como nesta tese, formas normativas de cuidado com o geopatrimônio — (13) aspecto modal jurídico.

A incidência de interesses diversos e, não raramente, antagônicos sobre o afloramento suscita um debate em torno dos limites, princípios e parâmetros éticos concernentes aos usos humanos da geodiversidade. O segmento do pensamento em Ética voltado para os relacionamentos e ações humanos com implicações sobre a geodiversidade denomina-se Geoética (cf. item 2.10) — (14) aspecto modal moral. Por fim, o afloramento não desenvolve em si o sentimento de fé; não é sujeito de uma experiência religiosa, mas pode ser repositório de leituras simbólicas, em diversas culturas (cf. item 2.5), que o carregam de sentido transcendente, em projeção para o metafísico, o Céu — (15) modalidade pística, relativa à fé, sem que isso implique uma forma de litolatria.

Tabela 2.3 – Significações e atividades associadas a um afloramento quartzítico à luz da Teoria dos Aspectos Modais (Dooyeweerd 1958).

AFLORAMENTO QUARTZÍTICO

ASPECTO MODAL SIGNIFICAÇÕES E ATIVIDADES TÍPICAS /AFLORAMENTO COMO... 1 Numérico Estrutura individualizável, numerável

2 Espacial Formação que ocupa determinado espaço, com dimensões precisáveis 3 Cinemático Massa em movimento, por força dos movimentos de rotação e translação da

Terra e dos processos geológicos

4 Energético Contentor de energia densificada e recebedor de descargas energéticas 5 Biótico Habitat de diversas espécies da fauna e da flora

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7 Lógico-analítico Objeto de estudo das ciências, como a Geologia e a Geografia

8 Histórico ou formativo Resultante e tesmunha discreta de processos geológicos e antropogênicos 9 Linguístico Estrutura-texto; palimpsesto decifrável, comunicável

10 Social Formação imersa numa complexa cadeia de relações sociais, que se estendem do local ao global

11 Econômico Recurso suscetível a diversos tipos de aproveitamento ao homem

12 Estético Componente de um ambiente e uma ambiência; indutor de experiências de fruição da paisagem

13 Jurídico Bem sobre o qual incidem diversos interesses cujo exercício é regulado pelo direito

14 Moral Conducente a reflexões sobre princípios, limites e parâmetros éticos acerca do uso da geodiversidade

15 Pístico ou relativo à fé Repositório semântico de significações que remetem ao transcendente; à religação entre a Terra e o Céu

Dooyeweerd (1958) contribui, portanto, para colocar em discussão — uma discussão científica, bem entendida — a atribuição de um valor intrínseco à geodiversidade, presente na obra de Gray (2004). Nas regras da ciência, todo valor procede de um ente que o atribui. Como refere de modo lapidar Dooyeweerd (1958): a realidade é significado. No limite e em sua implicação jurídica, a afirmação que os valores da geodiversidade são necessariamente remissíveis à cultura favorece e fortalece a compreensão segundo a qual o geopatrimônio pode ser gerido e salvaguardado a partir de dispositivos atinentes ao direito ao patrimônio cultural. Todos os valores atribuíveis à geodiversidade têm origem cultural.