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CAPÍTULO 4. CARACTERIZAÇÃO INTEGRADA DO CONTEXTO

4.6. Geodiversidade e cultura

Culturalmente, a ambiência na Serra da Canastra é predominantemente rural, fazendo- se presentes atividades econômicas e modos de vida ligados ao campo. Há quem diga existir no território em foco um estilo de vida típico, chamado “canastreiro”, próprio das pessoas que vivem nas cercanias da serra. Práticas culturais referentes a um passado remoto constituem esse estilo de vida. No Vale da Gurita, nomeadamente em Delfinópolis, mantém-se viva a tradição secular da Folia das Almas. Uma cerimônia carregada de simbolismos religiosos, que tem lugar na quarta, quinta e sexta-feira da Semana Santa, na qual são entoados cantos e rezas “para que as almas alcancem a paz eterna” (Afonso 2014:55). O ritual remonta à Idade Média, em Portugal, e chegou ao Brasil pelos jesuítas no século XVI. Hoje, conserva-se presente graças a comunidades canastreiras, como a do Itajuí, próxima a Delfinópolis. Em estudo feito pelo Conselho do Patrimônio Cultural desse município, afirma-se que a Folia das Almas de Itajuí constitui “manifestação folclórico-religiosa de grande importância, tanto para a história da Igreja Católica, quanto para o fortalecimento da identidade sociocultural das comunidades” (Afonso 2014:59).

Tenha-se presente, porquanto relevante para a abordagem integradora que se procura conduzir nesta tese, que o ritual se desenvolve tendo como cenário interativo a paisagem da Serra da Canastra. Como relata Afonso (2014:59/60):

Na Sexta-feira Santa, os integrantes do grupo se preparam para o ritual. Todos vestem uma túnica branca que chega até os pés. No peito, uma cruz vermelha ao estilo das usadas nos navios portugueses — um símbolo relembrar aos fiéis que a tradição chegou ao Brasil pelas mãos dos jesuítas.

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As cerimônias começam ainda pela manhã, quando os foliões se dirigem para a Capela de Nossa Senhora das Graças, em Itajuí. Esse momento é novo. “Tradicionalmente, a Folia das Almas é um ritual noturno. Mas há três anos o pessoal resolveu fazer um passeio ecológico até o Cemitério do Tatu. O passeio sai às três da tarde, hora em que Jesus morreu na cruz e desceu à mansão dos mortos para salvar as almas e levá-las para o céu”, contextualiza Edson. Na capela, todos pedem as graças em favor das almas e tocam o sino para invocar proteção aos devotos. Segundo os foliões, esse é o momento da convocação das almas santas e bem-aventuradas.

O grupo então toma fôlego para realizar a caminhada de cerca de quatro quilômetros em meio ao verde das montanhas da Serra da Canastra. Pessoas de todas as idades caminham juntas, unidas pela fé. O cortejo segue até o Cemitério do Tatu. Ali eles entoam cantos e preces tradicionais pelas almas, em uma espécie de celebração. Quando terminam o ritual, voltam para a Capela do Itajuí após outra caminhada sem pressa pelos caminhos verdejantes do cerrado mineiro.

Os foliões ficam na igreja até o anoitecer, quando começam as visitas às casas de famílias tradicionais da comunidade. Durante esse período, as rezas continuam. Também acontecem pequenas ações simbólicas, como o momento em que os foliões acendem as velas. “É na sexta-feira que Jesus morre e a luz das velas é um sinal de que já não caminhamos mais na escuridão; Jesus está iluminado, pois atingiu a vida eterna”.

Foto 4.12 – Registro da Folia das Almas, em cena na região do Chapadão da Babilônia. Foto: André Dipp. Fonte: Afonso (2014).

A região do Chapadão da Babilônia é palco de uma tradição de pelo menos duzentos anos, considerando-se as anotações que Saint-Hilaire fez sobre a área em princípios do século XIX. É a Invernada da Babilônia, que tem início em agosto, quando pastagens de capim Brachiaria começam a sofrer os efeitos da estiagem. A tradição, que comporta questionamentos, inclusive em termos de validade jurídica, devido ao uso do fogo controlado, é assim descrita por Podestá (2012:24/29):

Para o preparo dos locais da invernada, os fazendeiros promovem uma pequena queimada nos pastos nativos da serra, e assim que o capim começa a brotar, o gado é conduzido até estas vastas pastagens onde ficará nos três meses subsequentes. Nestes locais são construídos pequenos ranchos improvisados, que servem de abrigo aos vaqueiros que passam por ali para cuidar do rebanho, refúgios criados para garantir o cuidado.

Guimarães e Silva, Criscoulo & Carlos (2018:47) explicam que tal prática tem o nome de transumância. Na região, ela é justificada como sendo um cuidado dos produtores rurais ante as adversidades climáticas, causadas pela mudança de estações. Cuida-se de “conduzir os rebanhos, nos períodos da seca, das partes mais baixas para as pastagens mais verdes no alto dos chapadões e lá permanecerem até a recuperação das pastagens secas nas partes baixas da Canastra”. A prática é milenar, ainda persistente em países da Europa. Para Guimarães e Silva, Criscoulo & Carlos (2018:47), ela “indica um caminho a ser retomado a fortalecido para manter vivos a memória e os saberes dessa relação de cumplicidade entre os homens, os animais e seu ambiente”.

A serra abriga um patrimônio vivencial (Meneses 2015), perceptível nos típicos modos de criar, fazer e viver do canastreiro. Trata-se de autênticas vivências dignificadas, tecidas historicamente e dinamizadas na inter-relação com características da geologia e ecologia locais. É de se notar que o queijo Canastra, cujo modo de feitura foi reconhecido como integrante do patrimônio cultural imaterial brasileiro pelo Iphan (2008), materializa modos de fazer peculiares, indissociáveis de fatores naturais, nomeadamente pedológicos e ecológicos, que “propiciam pastagens naturais típicas e o desenvolvimento de bactérias específicas que se multiplicam em cada um desses microclimas e dão a cada queijo aparência e sabor específicos” (Meneses 2015:177).

Decerto, a inter-relação inextricável entre geodiversidade, biodiversidade e cultura na configuração e na experiência da paisagem da Serra da Canastra faz-se perceber na

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compreensão do modo tradicional de fazer o queijo homônimo. A respeito dessa inter-relação, consta do dossiê “Modo Artesanal de Fazer o Queijo de Minas” (Iphan 2008:34) a seguinte anotação:

O pingo, fermento que dá as características específicas aos queijos artesanais, é composto por um grupo de bactérias lactofermentativas típicas de cada região. Ele é obtido com o soro que escorre dos queijos manufaturados durante a tarde e a noite do primeiro dia de maturação. É um acervo bacteriano próprio do leite, condicionado pelo clima, tipo de solo e pastagens de cada região, responsável pelo padrão de consistência, cor e sabor específico dos queijos.

O queijo artesanal de leite cru é um alimento vivo, em constante aperfeiçoamento pela reprodução desse acervo lático, dessa microflora bacteriana saudável: transforma-se constantemente no processo de maturação, aprimorando massa, sabor, coloração, consistência e componentes nutritivos, o que o converte em alimento de riqueza ímpar. Esse é um dos seus valores essenciais. Como o vinho, o azeite e o pão, tríade alimentar de valor simbólico milenar, o queijo artesanal tem valor nutritivo e simbólico que nomeia culturas e distingue grupos sociais. [...]

De fato, o pingo é o “DNA” do Queijo Artesanal de Minas. Nele está condensado o ecossistema de cada região: as peculiaridades do substrato geológico, do relevo, da água, do clima, das pastagens naturais. É ele que faz um queijo do Serro se diferenciar de um queijo da Canastra, ou de Serra do Salitre/Alto Paranaíba, ou ainda de Araxá. Nesse fermento natural se aglutina todo um conjunto de bactérias lácticas, específicas de cada região, que constitui o elo entre o passado e o futuro.

O modo de fazer o queijo artesanal na Serra da Canastra resulta da combinação entre elementos naturais, o acervo de bactérias lactofermentativas, condicionado pelos fatores clima, pedodiversidade e pastagens específicas (Iphan 2008), e a inventividade do mineiro canastreiro, o pingo — “fermento natural desenvolvido ao longo dos tempos, a partir do soro drenado do próprio queijo, e que lhe confere características microbiológicas específicas, condicionadas pelo tipo de solo, clima e vegetação de cada lugar” (Iphan 2008:13).

De fato, há uma discreta e sutil relação entre os modos humanos de fazer — o queijo Canastra, por exemplo — e a Terra, que a poetiza Sophia de Mello Breyner Andresen (2018:277) bem traduziu no poema “Esteira e Cesto”:

No entrançar de cestos ou de esteira Há um saber que vive e não desterra Como se o tecedor a si próprio se tecesse E não entrançasse unicamente esteira e cesto Mas seu humano casamento com a Terra.

Conjugados, os atributos da geodiversidade, biodiversidade e cultura da Serra da Canastra tornam pertinente o debate sobre o modelo jurídico adequado para a conservação integrada do patrimônio natural (biodiversidade; geodiversidade) e cultural que ela abriga.