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2. Reconfiguração dos papéis pedagógicos

2.2 A negociação pedagógica

O objetivo primordial de uma educação de orientação democrática é desenvolver a autonomia dos alunos. O aluno autónomo será aquele que possui a capacidade de controlar os seus conhecimentos e atitudes e de os pôr em ação, avaliando as suas consequências. O aluno autónomo, envolvido na aprendizagem, tem consciência do sentido de pertença e opera no seu contexto coletivo, transformando-o e responsabilizando-se por ele. A autonomia não é um processo em que os alunos agem isoladamente, mas antes em conjunto, comunicando, cooperando, negociando.

Aprendemos melhor quando tomamos a iniciativa e (inter)agimos com os outros. A aprendizagem autónoma tem esta caraterística dinâmica que a potencia e que pode contrariar problemas frequentes da aprendizagem: falta de motivação, dependência face ao professor, um papel passivo na aula, uma incapacidade de aprender a aprender e uma perspetiva normativa do processo de ensino e aprendizagem. Assim, importa ajudar o aluno a gerir a sua aprendizagem, o que implica envolvê-lo em diversas tarefas (Holec, 1979: Jiménez Raya, Lamb & Vieira, 2007: 54):

1. identificar interesses e necessidades de aprendizagem; 2. estabelecer objetivos de aprendizagem;

3; determinar conteúdos da aprendizagem; 4. planear atividades de aprendizagem;

5. escolher/construir materiais de aprendizagem; 6. escolher métodos e estratégias de aprendizagem 7. gerir o tempo e o espaço da aprendizagem; 8. monitorizar e avaliar a aprendizagem; 9. monitorizar e avaliar o ensino;

10. avaliar o processo de ensino e aprendizagem.

Dito de uma outra forma, o aluno deve participar em decisões sobre o processo de aprendizagem, o que confere um lugar de destaque à negociação pedagógica numa pedagogia para a autonomia (v. Menezes, 2009, Silva, 2009; Teixeira, 2011, Brandão, 2013).

Para um melhor entendimento do que é a negociação pedagógica, importa abordar as seguintes questões: O que é negociar? Porquê negociar? Para quê negociar? O que negociar? Como negociar? Quem negoceia?

Breen & Littlejohn apresentam a seguinte descrição da negociação: “The broader concept of ‘negotiation’ is rather like a river, arising from a variety of small streams and gathering its own momentum eventually to pour in quite different directions over a flood plain” (2000: 5). Por aqui se pode deduzir que o conceito de negociação é complexo. Segundo estes autores, existem três tipos de negociação: negociação pessoal, negociação interativa e negociação processual. Estes três tipos de negociação estão interrelacionados e podem ocorrer conjuntamente. Todos visam um objetivo comum – o sentido: “All three involve a struggle for meaning” (op. cit.: 6). Todos implicam uma redução da incerteza psicológica, social e interpessoal, embora com diferentes níveis de consecução no processo de ensino e aprendizagem ou de comunicação.

O primeiro tipo de negociação, ou seja, a negociação pessoal, é um processo psicológico interno, que envolve capacidades mentais como analisar, sintetizar, memorizar, relembrar ou discriminar. Este é um processo mental complexo que não é observável, mas que ocorre na busca de entendimento. A negociação pessoal é uma negociação de sentidos, num processo de interpretação intrapessoal. É uma negociação entre a informação que recebemos e a interpretação que dela fazemos. A negociação interativa, o segundo tipo de negociação, é um processo social de partilha de sentidos, que implica uma relação de

cooperação. Esta é uma negociação de sentidos que visa o mútuo entendimento dos sujeitos. Aqui são requeridos processos de comunicação, como sejam a repetição, a simplificação, a clarificação ou a reelaboração da mensagem original para chegar a um acordo de entendimento. Por último, a negociação processual é um processo psicológico e social virado para a ação, que se foca em tomar decisões acordadas e se preocupa com alcançar consensos nas decisões. Este tipo de negociação precisa dos dois tipos anteriores para concretizar o seu objetivo principal – a tomada acordada e comum de decisões.

É de óbvia relevância este conceito tripartido de negociação numa pedagogia para a autonomia, com destaque para a negociação de decisões, aquela que também está mais ausente da maioria das práticas escolares e que se procurou explorar no presente estudo. O professor e os alunos preocupam-se sistematicamente em compreender e partilhar sentidos, mas muito pouco em chegar a consensos e tomar decisões. Esta é tradicionalmente a tarefa do professor.

As raízes teóricas do conceito de negociação pedagógica na aprendizagem de línguas resumem-se em quatro perspetivas: uma visão de educação na qual a responsabilidade e a cooperação experienciadas pelo aprendente podem ser vistas como promotoras da participação democrática do cidadão; uma visão emancipatória de educação, em contraste com uma educação reprodutora; uma visão de educação segundo a qual a aprendizagem está localizada na ação social e cultural, e na qual se decide colaborativamente o que é aprendido e como é aprendido; e, finalmente, uma visão de educação em que o aprendente é um agente ativo da sua aprendizagem, “rather than as someone positioned as a mere recipiente of selected and transmited knowledge previously determined as appropriate by others” (Breen & Littlejohn, 2000: 19).

Com base nestas perspetivas da educação e do aprendente, Breen & Littlejohn (op. cit.: 19-20) enunciam seis implicações ou ganhos da negociação pedagógica:

o É um meio de responsabilizar os membros de uma comunidade pedagógica: professor e alunos, ao negociarem e ao fazerem escolhas e tomarem decisões, estão a responsabilizar-se pelo seu cumprimento.

o Pode construir e refletir a aprendizagem como um processo emancipatório: a negociação promove a liberdade de pensamento e ação.

o Pode ativar recursos sociais e culturais do grupo pedagógico: a negociação permite a troca de conhecimentos e vivências.

o Capacita os aprendentes a exercitar a sua ação efetiva na aprendizagem: a negociação leva à real participação dos alunos no processo de aprendizagem, tornando-se uma experiência de cidadania.

o Pode enriquecer o discurso pedagógico, como recurso para a aprendizagem da língua: a negociação incentiva a interação entre os elementos do grupo pedagógico, promovendo a comunicação.

o Pode informar e alargar as estratégias pedagógicas do professor: a negociação estimula a mudança e expansão de atividades na sala de aula.

Com base nos mesmos autores, a figura 3 procura representar alguns princípios orientadores para uma efetiva negociação pedagógica e a inter-relação entre eles. Nesta perspetiva, a negociação pedagógica situa-se no centro da pedagogia da língua estrangeira, com uma função aglutinadora e potenciadora da autonomia.

Potencialmente, a negociação pedagógica pode ocorrer em todos os níveis de ensino, em todas as áreas curriculares e em todas as atividades. A sua concretização pode ser a nível de uma atividade, um conjunto sequencial de atividades, o programa da área curricular ou a articulação com outras áreas do currículo. Por outro lado, e em cada um destes níveis de decisão, a negociação pode incidir sobre objetivos, conteúdos, formas de trabalho e avaliação. Contudo, a negociação não necessita de se efetuar a todos os níveis, até porque uma decisão pode afetar outras decisões e ações. Assim, a negociação deve ser seletiva e estar dependente das circunstâncias, das motivações e das prioridades do grupo de trabalho.

Breen & Littlejohn (2000:31) exemplificam o campo de aplicação da negociação processual conforme o quadro 7, apresentando as decisões que podem ser tomadas pelo grupo-turma na aula de língua estrangeira. Atente-se na forma interrogativa de apresentar os aspetos de cada vertente de negociação, que, sendo assim registados, indiciam a componente reflexiva e indagatória da negociação.

THE RANGE OF DECISIONS OPEN TO NEGOTIATION Purposes: Why are we learning the language?

What immediate and long terms learning need(s) should be focused upon? What should we aim to know and to be able to do? What very specific aims might we have?

Content: What should be the focus of our work?

What aspects of the language? What topics, themes, or specific uses of the language? What skills, strategies or competencies when using or learning the language? What puzzle(s), problem(s) or focus for investigation should be addressed?

Ways of working: How should the learning work be carried out?

With what resources? What types of texts or materials would be most appropriate? How long should it take? How will the time available be organised? What working procedure or set of instructions should be followed? Who will work with whom? (the teacher with the class, a group or an individual?; the students in groups, in pairs or alone?) What can best be done in class and what best outside class? What support or guidance may be needed, what forms it should take, and who should provide it?

Evaluation: How well has the learning proceeded?

What should be the outcomes from the work? Have the purposes been achieved? Of the intended outcomes, what has not been learned and what has been learned in addition to these? How should outcomes be assessed and against which criteria? What will happen with the assessment?

Quadro 7 - Tipo de decisões abertas à negociação (Breen & Littlejohn, 2000)

Ainda segundo estes autores, “Lessons form a kind of narrative, and negotiation seen as part of the cycle is the means for teacher and students to initiate such a narrative together and for revealing their interpretations of it as it unfolds as the basis for future decisions” (op. cit.: 31). O ciclo a que se referem é constituído por três passos. No primeiro,

professor e alunos negoceiam e tomam decisões sobre as questões mais urgentes e problemáticas, de acordo com os seus pontos de vista, que podem não ser necessariamente os mesmos. Este momento do ciclo é a tomada de decisões negociadas. No segundo passo, procede-se à concretização com base nas decisões tomadas: é o momento de ação do ciclo negocial. Finalmente, o terceiro passo é fase da reflexão sobre o produto da ação praticada: é o momento da avaliação. Esta é uma fase crítica, pois fornece informação importante para o recomeçar do ciclo: “It is a process during which the individual and the group together map out the routes for learning and the alternative ways in which the journey can be undertaken” (op. cit.: 25).

O professor que quer experimentar a negociação na sua sala de aula tem de estar preparado para ultrapassar alguns obstáculos. Os constrangimentos mais comuns à sua implementação são os seguintes: a obrigatoriedade do currículo, o tempo disponível, o elevado número de alunos por turma, conceções de educação e experiências anteriores, o contexto e a cultura de escola.

O currículo pode limitar a negociação pedagógica, uma vez que tem de ser cumprido e, em muitos níveis de ensino, há a considerar a existência de uma avaliação externa ou um exame nacional que, de alguma maneira, condicionam as decisões a tomar, pelo menos relativamente à avaliação e aos conteúdos da disciplina. No entanto, é sempre possível negociar outros aspetos do processo de ensino e aprendizagem, como as atividades e as formas de trabalho. Além disso, como nos dizem Breen & Littlejohn não é necessariamente desejável nem viável negociar tudo e a obrigatoriedade do currículo pode mesmo apoiar o processo de negociação, colocando algumas fronteiras no que é negociável.

O tempo é outro fator que pode condicionar as oportunidades de negociação. A negociação proporciona momentos de discussão e reflexão aos alunos e, consequentemente, uma maior participação e intervenção destes, originando um maior dispêndio de tempo. Contudo, esse “tempo perdido” acaba por se tornar valioso e útil, pois vai promover um maior envolvimento dos alunos na aprendizagem. O conhecimento que se adquire na negociação de decisões vai permitir uma economia de tempo e uma maior garantia de sucesso escolar.

Um elevado número de alunos por turma dificulta a negociação, uma vez que diminui a frequência e a quantidade de oportunidades de discussão dos alunos. Em turmas numerosas é mais difícil chegar a consensos e é também menor o tempo discursivo

disponível para cada aluno, sendo que as vozes mais tímidas e retraídas serão as menos ouvidas. Apesar disso, podemos afirmar que quanto maior for o número de alunos do grupo- turma, maior a sua diversidade e portanto maior a necessidade de negociação para se fazer ouvir a maior parte das vozes dos alunos. A diversidade de competências, proporcionada por uma turma com muitos elementos, também se torna num fator potenciador de negociação entre pares, sem necessidade da presença do professor, o que permite que este faça face ao problema de excesso de alunos e estimule mais a sua autonomia.

As conceções e as experiências dos agentes educativos, professor e aluno, são talvez os dois fatores mais constrangedores da negociação de decisões, pois ambos os atores necessitam de aprender a negociar. Não é fácil ser negociador. É preciso lutar contra hábitos enraizados e tradições instaladas. Com a negociação, a distribuição do poder torna-se mais equitativa e a sala de aula torna-se mais democrática. Por conseguinte, os papéis pedagógicos reconfiguram-se, tomando agora proporções mais importantes, mas também mais exigentes. Ao professor são colocados mais e novos desafios quotidianos sobre questões que são difíceis e polémicas, às quais precisa de dar resposta. O equilíbrio dos limites da negociação também não é tarefa fácil e exige vontade, paciência e persistência, pois “a key aspect of negotiation is a desire to identify what is possible” (Breen & Littlejohn, 2000: 282). Para o aluno este processo é mais ativo, mas também mais livre, o que pode trazer ansiedade e a sensação de estar perdido, baralhado, confuso. Esta é, no entanto, uma característica típica da negociação, através da qual se opera a progressiva perda do controle do professor e o seu ganho gradual pelo aluno; o professor começa a assumir-se como orientador e mediador da aprendizagem e o aluno como gestor e responsável por ela, o que implica gerir incertezas e ambiguidades, mas também desenvolver progressivamente um sentido de autodireção.

O processo de ensino e aprendizagem das línguas não vive num mundo ideal de harmonia consensual. Ele manifesta diferenças, desacordos e tentativas dos participantes de chegar a consensos, tal como em outros aspetos da vida humana. Os professores não são os únicos responsáveis pelo que se passa na sala de aula; outros participantes, como os legisladores, superiores hierárquicos e encarregados de educação, entre outros, têm uma influência significativa e decisiva nas atividades da sala de aula: “(…) teachers cannot assume that they are able to call all the shots” (Tudor, 2001: 206). Quanto maior for a diversidade,

maior é a necessidade de negociação. Esta está cada vez mais na ordem do dia, uma vez que “(…) diversity is the norm, rather than the exception” (op. cit., 2001: 206).

A negociação é uma arma pedagógica muito importante na sala de aula democrática, pois cria oportunidades de vivência de experiências de cidadania. Ela permite a transferência de poder do professor para o aluno, reconfigurando os seus papéis pedagógicos e promovendo a sua autonomia. Na experiência desenvolvida, a negociação esteve presente, sabendo os riscos que acarretava, mas também os benefícios que traria, e tornou-se um grande desafio para mim e para os meus alunos.