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5. Papéis de gênero, afetividades e sexualidades

5.1 A noção de feminilidade

“Por que eu fui criada como uma mulher? [...] Tenho abraçado o propósito criado por Deus de ser uma auxiliadora para o homem? Estou disposta a sacrificar minhas próprias ambições a fim de cumprir o meu papel principal e chamado, como ajudante para o meu marido? [...] Eu reconheço e aceito que Deus criou a mulher para completar, complementar e ajudar o homem? [...] Será que eu aceito meu chamado criado por Deus para ser uma portadora e nutridora da vida? [...] Este é um dom de Deus dado a você mulher. Não negue o dom que o Senhor te deu. Ele te fez mulher e vai te capacitar para ser mãe” (Ana Paula Valadão, 1º Congresso Mulheres Diante do Trono, agosto de 2011).

Nos encontros realizados por Valadão para as batistas e também para mulheres de outras denominações ou confissões religiosas, as diferenças entre homens e mulheres são muito marcadas e enfatizadas. Considera-se que os homens nascem com o instinto de força e liderança, enquanto as mulheres, tendo sido projetadas e criadas da costela masculina, são

197 A convite de Valadão, eventualmente também se viu, a fim de coordenar o período de louvor, cantoras famosas no meio evangélico, como Eyshila, Ludmila Ferber, Soraya Moraes e Fernanda Brum.

198 Titus já tem inclusive um website em português: http://reinoglobal.com/devi-titus/, acesso em 09 de novembro de 2014.

199 Para não interferir na fluidez textual, optei por mencionar as datas dos escritos do caderno de campo apenas em citações diretas.

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complementos, “são a glória do homem” (caderno de campo, 04 de agosto de 2011). As mulheres são forjadas a partir da existência masculina, e argumenta-se que ser acessória e complementar não é uma posição rebaixada ou de subserviência. A mulher é comparada ao Espírito Santo, também caracterizado como auxiliador. Daí o entendimento de que ser auxiliar não é ser menor ou ter alguma deformidade, mas é prestar socorro e servir de coluna para sustentar alguém. De acordo com o que é defendido, o fato de a mulher ser secundarizada, de modo algum a torna menos importante.

Boa parte do que se prega também advém do imaginário de que a primeira mulher a existir (Eva) teve um papel central, para não dizer que foi de fato a responsável pelo pecado original. Advogam as líderes que a dor do parto e o desejo de projeção das mulheres são consequências de uma disposição feminina para a dominação e a autonomia, herdada em função do primeiro pecado. Tal protagonismo, por sua vez, desequilibrou a ordem natural e imutável estabelecida por Deus, a saber, a da superioridade hierárquica do homem. Por isso, a negação de poder ao gênero feminino, ao contrário de reduzir o valor da mulher, seria a salvaguarda da mesma.

O que se espera então do ser mulher? Defende-se que a mulher deve ser gentil, delicada, graciosa, generosa, hospedeira, sábia, “suave”, discreta, sem agitação, grata, cheia de fé, conhecedora da Bíblia, contida e com “espírito ensinável”. Não deve falar palavrão, nem se orgulhar, se iriar, guardar rancor ou se alegrar com injustiças. Deve ser mansa, prudente, moderada, controlada em relação a paixões e desejos, obediente, bondosa, perdoadora e pacificadora.

Sua identidade deve estar em Deus. É nele que a mulher deve encontrar a satisfação.

Ensina-se que a fonte de gozo, amor e auto realização feminina não está no consumo, nos estudos, na carreira, nem mesmo na obtenção de marido e filhos. Está sim em Deus, que é criador de todas as coisas, amigo, conselheiro, pai acolhedor, e que mima suas filhas até mesmo com supérfluos. Segundo Márcia Resende: “o que o meu marido não tem, meu Jesus tem” (caderno de campo, 30 de maio de 2012). A divindade é tida como resgatadora da autoestima, pois cura as feridas emocionais causadas pelos desafetos, e pode se vingar e até matar o marido que é ruim para a esposa. Portanto, ensina-se taxativamente que as mulheres devem suprir suas necessidades emocionais e seus desejos por relações românticas em Deus, e apenas nele, em vez de transferir a expectativa para outras pessoas.

Durante um dos cultos de mulheres, realizado em 2012, Valadão chegou a cantar, em tom irreverente, um excerto de uma famosa música sertaneja: “encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora”, dando voz ao suposto pedido divino para que as mulheres pudessem em

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Deus se consolar. Por vezes, as líderes fazem menção, quer seja de modo direto ou não, ao seguinte versículo bíblico: “porque o teu criador é o teu marido; o Senhor dos Exércitos é o seu nome” (Isaías 54:5). Mais de uma vez pude assistir a um “ato profético” em que uma moça se adornava como uma noiva à espera de seu noivo. A representação aludia à preparação da igreja, e mais especificamente das mulheres, para o encontro com Cristo, o noivo, como é chamado eventualmente nos textos bíblicos.

Um das canções do Diante do Trono ilustra esse tipo de relação afetiva, romântica, quase sensual. Quando ela é cantada, é possível notar o êxtase da plateia. As mulheres entoam a letra de modo efusivo, levantam as mãos para o alto constantemente, se contraem, gemem como se sentissem alguma dor física, e choram sem reservas.

Tem ciúmes de mim

O seu amor é como um furacão

E eu me rendo ao vento de sua misericórdia Então, de repente, não vejo mais minhas aflições Eu só vejo a glória

E percebo quão maravilhoso ele é E o tanto que ele me quer Ô, ele me amou

Ô, ele me ama Ele me amou Me ama

Ele me ama, ele me ama, ele me ama Somos sua herança e ele é o nosso galardão Seu olhar de graça nos atrai à redenção Se a graça é um oceano estamos afogando O céu se une à terra como um beijo apaixonado Meu coração dispara em meu peito acelerado Não tenho tempo pra perder com ressentimentos Quando penso que ele

Me ama

Ele me ama, ele me ama, ele me ama

(Música: Me Ama, versão da canção estrangeira How he loves. Álbum: Sol da Justiça)

Um ponto importante endereçado nos eventos diz respeito à autoestima feminina.

Todo o terceiro congresso de mulheres (2013) foi direcionado a tratar do tema. Se valendo de espelhos deformadores, a cantora enfatizou que nem todo aparato que reflete a imagem da mulher transmite a verdade. E disse: “aquilo que contemplamos como referencial tem o poder de nos transformar. (...) Somos transformadas pela realidade que vemos, que contemplamos”

(caderno de campo, 29 de agosto de 2013). Jesus seria o espelho digno de confiança. Ele é quem refletiria a melhor imagem que as mulheres deveriam conservar a respeito de si mesmas. Já Satanás estaria por trás dos espelhos deformadores, encontrados na sociedade, no passado e nas expectativas frustradas.

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A elevada auto exigência seria indício de uma autoimagem distorcida. As mulheres deveriam combater as imagens negativas que recebem e internalizam ao longo da vida ou que vão elas mesmas construindo em função de alguma doença que as acomete, pela relação com o envelhecimento, ou ainda, por eventual deficiência que possuam. Em outra ocasião, Valadão narrou que já se autodepreciou. Mordia internamente suas bochechas e ruía as unhas para se maltratar. Fez isso durante anos, aceitando e reproduzindo as críticas que sofria. Mas conta que passou por um processo de cura espiritual, e que umas das exteriorizações deste foi passar a se cuidar, aprender a se maquiar e arrumar o próprio cabelo. Isso a livrou de estabelecer relacionamentos doentios e interesseiros, e que estariam pautados na insegurança e na necessidade de autoafirmação.

Nos cultos e congressos de mulheres, também se fala periodicamente sobre depressão e ansiedade. E a causa desses males nem sempre é interpretada como influência de forças espirituais. Indica-se a busca por orações, mas também por uma alimentação saudável e equilibrada, além de haver recomendação explícita para que, em casos extremos, as mulheres procurem ajuda de um especialista, ou seja, um psicólogo cristão. Incentiva-se que elas nutram seu amor próprio, cuja falta pode levá-las a escolher homens passionais e problemáticos.

Abaixo reproduzo a letra de uma canção, que se tornou emblemática nos eventos de mulheres. Originalmente composta por Valadão para um dos CDs infantis, com vistas a falar a meninas que enfrentavam um relacionamento familiar difícil, passou a ser uma útil ferramenta para afirmar o valor das mulheres perante a divindade:

Aos olhos do pai Você é uma obra-prima Que ele planejou

Com suas próprias mãos pintou A cor de sua pele

Os seus cabelos desenhou Cada detalhe

Num toque de amor Você é linda demais Perfeita aos olhos do pai

Alguém igual a você não vi jamais Princesa linda demais

Perfeita aos olhos do pai

Alguém igual a você não vi jamais Nunca deixe alguém dizer

Que não é querida Antes de você nascer Deus sonhou com você!

Você é linda demais Perfeita aos olhos do pai

Alguém igual a você não vi jamais Princesa

199 (Música: Aos olhos do pai. Álbum: Crianças Diante do Trono)

Outra canção é utilizada para trabalhar a autoestima das mulheres. De composição mais recente, é um ótimo ilustrador do discurso que vem sendo pregado, que é semelhante ao de autoajuda, mas que tem como base a eficácia espiritual da ação divina em vez de o crescimento e a autonomia do sujeito por si só:

Um dia eu vi

Uma mulher chorando pelo jardim Perdeu a inocência

Seus erros e seus fracassos Era um fardo pesado Não podia mais sorrir Eu vi

Uma mulher ferida numa prisão Os medos lhe atormentavam As mágoas do seu passado Paralisaram seus sonhos Deformaram a visão Um dia eu vi

Quando a luz brilhou na escuridão As cadeias caíram

Os inimigos fugiram E agora eu vejo Olho pra ela e vejo Uma filha

Amada do pai A menina

Dos olhos de Deus Obra-prima Das suas mãos Escolhida Nesta geração

Eu vejo uma alma curada Guerreira, ousada Mulher virtuosa Vitoriosa

(Música: Agora eu vejo, faixa inédita)

Fica notório o esforço de valorização da autoestima feminina e, pode-se fazer coro à grande parte da literatura que é citada neste capítulo, a respeito de a religião evangélica vir de fato respondendo a certos interesses e aflições femininas.

Para a restauração da autoestima da mulher, Valadão e as demais líderes argumentam ainda sobre a importância da reconciliação, em especial com os progenitores e com as referências masculinas. A cantora defende que, para que haja atuação do Espírito Santo e cura, é preciso perdoar a rejeição materna, o bullying feito por colegas de escola, irmãos e familiares, pais que atuaram como abusadores sexuais e maridos que trocaram as esposas por outras mulheres. Deus, nesse sentido, funcionaria como ator central, pois traria em si a