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4. A música protestante nos Estados Unidos

4.1 As igrejas do novo paradigma

As igrejas que surgiram a partir do Jesus Movement foram chamadas de “new paradigm churches”, ou igrejas do novo paradigma (INP). A obra literária mais importante a tratar das novas agremiações é o livro Reinventing American Protestantism: Christianity in the New Millennium, do sociólogo Donald Earl Miller (1997), que pautará este tópico.

Analisando que a religião se alterava segundo uma lógica de mercado, Miller mostrou que nas décadas de 1960, 1970 e 1980, as chamadas igrejas mainline (congregacionais, presbiterianas, metodistas, episcopais), que gozavam de maior status e número de membros entre as alternativas protestantes dos EUA, haviam perdido em média 30% da membresia, embora a frequência dos estadunidenses nos cultos não tivesse diminuído. Isso apontava para o surgimento de novas comunidades de fé145, entre as quais três representaram uma revolução para o protestantismo de lá, algo considerado como uma segunda reforma (idem).

Uma das igrejas foi a Calvary Chapel, que surgiu em 1965, por iniciativa do pastor Chuck Smith, que antes pastoreava uma Foursquare Gospel (denominação que no Brasil se propagou como Igreja do Evangelho Quadrangular). Smith rompeu com a Foursquare Gospel porque se cansara da estrutura e estratégia empregadas, e decidiu pregar aos hippies da região da praia de Costa Mesa, aos arredores de onde estava situada sua nova igreja. Conheceu alguns dos convertidos do Jesus Movement, e a partir da necessidade que os novos adeptos apresentaram, criou casas para abrigar hippies e ex-usuários de drogas. Assim, a igreja cresceu e novas unidades foram abertas em cidades vizinhas, porém, com liberdade administrativa e financeira para cada uma.

A Hope Chapel foi fundada em 1971 por Ralph Moore. Assim como a Calvary Chapel, surgiu de relações com a Foursquare Gospel, embora a Hope Chapel não tenha dela se desligado. Sua principal característica é dividir-se em mini-igrejas – pequenos grupos caseiros onde os dons do Espírito Santo são encorajados.

Outra igreja importante nesse cenário foi a Vineyard Christian Fellowship, fundada em 1974 por Kenn Gulliksen (de origem luterana) e igreja ligada à Calvary Chapel. A ênfase dada aos dons do Espírito Santo (línguas, profecia e cura), contudo, levou-a, em 1982, a unir-se com a igreja de John Wimber (ex-músico unir-secular que, após conversão, pastoreou uma Calvary Chapel na cidade de Yorba Linda). Com essa união, a Vineyard se tornou independente, e acabou por receber em seu movimento outras igrejas, inclusive decorrentes da

145 Miller (1997) mostra que vários grupos cresceram, tais como: os conservadores, os Southern Baptists (batistas do sul), os mórmons e os pentecostais. Algumas pessoas com maior nível educacional saíram de suas igrejas ou aderiram a religiões orientais, como zen budismo e o hinduísmo. Os católicos configuravam 1/4 da população.

Judeus eram 2% e sem religião 8%.

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Calvary Chapel. Wimber se tornou o líder mais proeminente da denominação, e Gulliksen acabou se desligando em 1992, por discordar das diretrizes de Wimber.

Essas igrejas – Calvary Chapel, Vineyard Christian Fellowship e Hope Chapel – criaram um novo estilo de adoração congregacional, estruturaram-se institucionalmente e democratizaram o acesso ao sagrado. Foram consideradas relevantes culturalmente devido à música, ao estilo organizacional, à aceitação dos dons do Espírito Santo e à menor formalidade nos cultos. Representaram um tipo de pentecostalismo mais brando em comparação àquele que era associado aos renomados teleevangelistas da época, Jimmy Swaggart e Oral Roberts.

A liturgia das igrejas mainline geralmente tinha a seguinte ordem: música, adoração, música novamente e leitura da Bíblia. A composição musical tradicional era um coral e um organista ou pianista, que tinha o papel de direcionar a congregação a partir do púlpito ou de um instrumento principal. Muitos tinham treinamento em piano ou órgão. Já nas novas igrejas, o período musical passou a ocupar cerca de 40 minutos ininterruptos. A composição do grupo que tocava passou a ser menor, e ele ficou conhecido como time ou equipe de louvor, que era dirigida por um líder que quase sempre era vocalista e guitarrista, treinado em música popular e do qual se esperava exortação à comunidade e orações espontâneas (Ingalls, 2008). Seja por meio da ação de missionários ou pela experiência que líderes brasileiros adquiririam no exterior nos anos subsequentes às organizações das INP, fato é que a nova formação da música congregacional estadunidense exerceu expressiva influência no louvor evangélico do Brasil, como visto no capítulo anterior.

Miller também argumenta que as INP ofereceram a possibilidade do cultivo de maior intimidade entre as pessoas, algo que não estava tão facilmente disponível na sociedade estadunidense de modo geral. Deram aos fiéis senso de destino, esperança, alegria e diversão.

Proveram um espaço de segurança, clareza quanto a papéis de gênero (conservadores) e suporte às necessidades das mais diversas. Ele diz:

“Without question these churches are growing because they address deeply felt anxieties about how the sexes should relate to each other, how to raise their children in a violent society, and how to find love in a world that seems to value possessions over relationships. These churches are a counterpoint to secular society (...). But the real staying power of new paradigm churches is that they are mediating deeply felt religious experiences, and doing this much more effectively than many mainline churches.

(…) This is not fundamentalism resurrected. Gone is the authoritarianism associated with that tradition, and absent is fundamentalism’s vehement opposition to modernity (...). New paradigm churches are doing significant “cultural repair” that defies standard religious or political labels”

(Miller, 1997, p.16 e 22) 146.

146 Sem sombra de dúvida essas igrejas estão crescendo porque tratam profundas ansiedades sobre como os gêneros devem se relacionar uns com os outros, como criar os filhos em uma sociedade violenta e como achar amor em um mundo que parece valorizar mais as posses do que os relacionamentos. Essas igrejas são um

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As novas igrejas, que agregaram muitos hippies convertidos, passaram a realizar estudos bíblicos em parques e casas, valorizaram o dom de línguas, e permitiram que membros leigos tivessem ampla participação nos rituais e sacramentos e assumissem posições de liderança. As INP alinharam-se aos ideais do movimento de contracultura, enfatizando o individualismo, a terapêutica e o anti-establisment. Contudo, fizeram isso de maneira peculiar. Rejeitaram o individualismo utilitarista ao enfatizar uma prestação de contas pessoal, não aceitaram o narcisismo das práticas terapêuticas, abraçaram a tolerância e a abertura dos sujeitos uns para com os outros, e apregoaram rigidez moral e emocionalismo. Seu conservadorismo bem-sucedido era fruto da adequação aos valores dos baby boomers, a saber: infidelidade a marcas, peso negativo dado à tradição, gosto por música contemporânea, autonomia para organização da vida, e interesses mais locais e que não passassem por burocracias caras (idem).

As INP tinham canções com estilo moderno (para os padrões da época) e estimulavam as expressões corporais. Embora enfatizassem leitura e estudo bíblico, eram menos atentas às doutrinas porque as consideravam divisoras das igrejas. Eram bem dizer mais tolerantes que os crentes de diversas vertentes protestantes quanto à existência de outras denominações.

Evitavam as prisões do racionalismo e de teologias como a da predestinação, do milenarismo etc., e focavam no relacionamento dos fiéis com Jesus. Negavam o dualismo sagrado-profano, introduzindo Deus nas experiências cotidianas.

Para Miller (1997), este era um fenômeno diferente. As INP respondiam ao pessimismo da cultura pós-moderna, buscando transformá-la ao invés de rejeitá-la. Enquanto as “seitas” normalmente faziam demandas a seus membros e eram exclusivistas em termos de admissão, impelindo os crentes a se separarem do mundo para evitar corrupção moral, as INP não exigiam do fiel essa postura, ao contrário, viam na aproximação com o secular uma boa estratégia para alcançar sujeitos que precisassem de ajuda. Daí Miller denominou essas igrejas de “seitas” pós-modernas (postmodern sects), apontando que elas guardavam o caráter de seita pelo seu sectarismo moral e crença de que haveria apenas uma verdade, mas, por outro lado, abraçavam muitos dos valores da cultura (argumento que parece similar ao de Smith et al. (1998), embora este não trate de denominações).

contraponto à sociedade secular (...). Mas o real poder de resistência das igrejas do novo paradigma é que elas

estão mediando experiências religiosas profundamente sentidas, e fazendo isso de maneira muito mais eficiente do que muitas igrejas mainline. (...) Não se trata de fundamentalismo ressurreto. Não há o autoritarismo associado à tradição, e a veemente oposição do fundamentalismo à modernidade está ausente (...). As igrejas do novo paradigma estão fazendo significativos “reparos culturais” que desafiam rótulos religiosos e políticos padrões.

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As músicas das INP eram fruto de uma hierarquia muito mais focada em serviços do que em poder. A Calvary Chapel, por exemplo, abriu espaço para os hippies que se convertiam na época do Jesus Movement e que começavam a compor canções com teor cristão, mas ao som de guitarras. O pastor Chuck Smith criou a Maranatha! Music para ajudar na distribuição dos trabalhos desses cantores147. Tratava-se de uma música culturalmente mais adequada e que transmitia a mensagem de que aquela religião não era a mesma protestante de antes. Cada igreja produziu um tipo de música. A Calvary Chapel se tornou conhecida pelo estilo mais animado/otimista, enquanto a Vineyard, por seus cânticos mais intimistas (Miller, 1997). O foco das canções não era o de ressaltar os atributos de Deus, mas sim performar como orações cantadas que visavam comunicar com a divindade e expressar amor, louvor e gratidão.

A maioria das músicas decorrentes do Jesus Movement (Jesus Music) era influenciada pelo discurso da autenticidade das raízes rurais. Ainda que o escopo das canções fosse do folk ao rock pesado, elas eram simples teológica e musicalmente. Havia um vazio de aparato tecnológico, poucos instrumentos eram empregados e os trechos se repetiam, tornando as canções de fácil memorização. Eram formas de expressão, características da identidade compartilhada na época, e funcionavam como veículos de evangelização. Propagavam-se por grupos de jovens, organizações universitárias interdenominacionais, concertos e festivais.

A inserção de ritmos mais populares, contudo, não foi aceita sem questionamentos.

Havia quem argumentasse que a música era inerentemente neutra e que sua importância estava em serem os sons os instrumentos proselitistas. Outros alegavam que as canções tinham um baixo valor estético, soavam como demoníacas, e carregavam associações políticas e morais insalubres. Como será visto ao longo deste capítulo, esse tipo de debate, ainda que com diferentes matizes, não deixou de permear a música religiosa durante os anos subsequentes. Levou ainda ao cultivo de uma estética chamada de “meio do caminho”, mais conservadora, um pop e um rock brando, e que acabou contribuindo para uma maior diversidade de sons na música cristã dos dias de hoje (Ingalls, Nekola et al., 2013).

Monique Ingalls (2008), ao escrever uma das mais recentes e importantes teses sobre a musicalidade das igrejas protestantes estadunidenses – Awesome in this Place: Sound, Space, and Identity in Contemporary North America Evangelical Worship – fornece uma classificação bastante útil para compreender os diferentes tipos de música que se

147 Durante os anos 60 e 70, vários álbuns foram distribuídos por redes descentralizadas compostas por igrejas, livrarias, grupos de jovens e artistas, que se apresentavam em cafeterias e outros espaços (Ingalls, Nekola et al., 2013).

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desenvolveram a partir das mudanças da década de 1970. Um dos marcos dessas transformações se deu em 1977, quando a Maranatha! Music, não renovando o contrato de certos artistas, passou a focar com exclusividade nas músicas que eram tocadas em âmbito congregacional ou em reuniões de grupos caseiros, e produziu álbuns que fizeram grande sucesso. Os artistas que ficaram de fora da Maranatha! focavam no que a autora chama de message songs/message music, isto é, canções dedicadas a expressar a alegria dos crentes ou a converter os não cristãos e que eram apresentadas em palcos. Eram canções complexas em termos musicais, visto que eram performadas e compostas por especialistas. Gravadoras como a Word Music e a Sparrow Records assinaram contrato com tais músicos, e, a partir daí, dominaram o cenário comercial por volta dos anos 80, concentrando a base industrial na cidade de Nashville – coração da indústria fonográfica estadunidense e que, portanto, permitia fácil acesso a editoras e denominações religiosas. Assim surgiu o que foi chamado contemporary Christian music148 (CCM) – música cristã contemporânea – objeto do próximo tópico.

Por outro lado, as músicas congregacionais, praise songs ou praise chorus, eram frequentemente compostas por pessoas não treinadas. Viraram o foco das gravadoras e editoras de igrejas do sul da Califórnia, e é a elas que se referem os que empregam o termo contemporary worship music (CWM) – música de adoração contemporânea – que será tratada no terceiro tópico. Tratava-se do repertório cantado nas cruzadas, encontros e reuniões interdenominacionais de juventude, que tinham foco nos estudos bíblicos e na adoração, e que eram promovidos por organizações paraeclesiásticas. A comercialização de tais canções permanecia circunscrita a esses circuitos, pois, não raro, a estruturação de uma indústria religiosa propriamente dita e o sucesso decorrente eram mal vistos pelos músicos das igrejas, que produziam álbuns somente por gravadoras de cunho religioso (como a Maranatha!, a Integrity e a Vineyard), que, de certa forma, permaneciam fora da tensão com o mercado mais abrangente. Atualmente, apesar da distinção entre CCM e música de louvor ser percebida em menor intensidade, há quem advogue que ela ainda permanece válida e ajuda a compreender parte das tensões que permeiam o campo protestante estadunidense (Nekola, 2009) 149.

148 O termo propriamente dito surgiu em 1978, com a criação da revista CCM, organizada por John Styll, e que produzia artigos sobre os músicos cristãos e fazia gráficos baseados nas vendas alcançadas pelas livrarias e no sucesso da transmissão radiofônica. Mas foi ao longo dos anos 80 que a música de entretenimento se consolidou em escala industrial. Hoje, CCM é marca registada da CCM Comunicações, empresa de propriedade da revista (Nekola, 2009).

149 A maior parte das canções CCM usadas nas igrejas apareciam como músicas de fundo ou eram performadas em solos. Destinavam-se a momentos específicos, como o das ofertas. Contudo, alguns artistas como Keith Green, Amy Grant, Michael W. Smith e Twila Paris, muitas vezes classificados como CCM, produziram canções que se tornaram populares também no âmbito congregacional (Ingalls, 2008). Além desse intercâmbio, cabe

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