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4. A música protestante nos Estados Unidos

4.7 Experiência de campo: Jesus Culture Conference

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região da Califórnia, atenção especial é dada à existência de indivíduos hispânicos e asiáticos.

Algumas igrejas, por exemplo, tentam conciliar gostos e padrões musicais culturais distintos, organizando cultos para nativos de língua inglesa e outros para quem fala preferencialmente o espanhol. Em comunidades multiétnicas, em que os cultos são feitos somente em inglês, tenta-se inserir nas músicas trechos em espanhol, como o refrão189.

Em resumo, o papel da tradição, as relações entre as distintas funções eclesiásticas, a inserção das mulheres na liderança e as demandas da comunidade local são importantes vetores na discussão da música de louvor dos Estados Unidos. Ao comparar a NWLC com as conferências de louvor e adoração do Diante do Trono, é perceptível que uma reflexão crítica a respeito da dinâmica da música congregacional se encontra consideravelmente minimizada no caso deste último, que traz predominantemente devocionais direcionadas a quaisquer cristãos.

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2013. Foi ele quem comunicou que o grupo haveria de se mudar para a capital da Califórnia (Sacramento) para começar por lá uma nova iniciativa religiosa – uma igreja cujo objetivo seria o de transformar a sociedade local para que a cidade fosse a primeira dos Estados Unidos com população totalmente protestante. Liebscher também é autor de livros; um que inclusive leva o nome do grupo (Liebscher, 2009) 190.

Além de Liebscher, sua esposa e uma secretária particular, a banda conta com grande equipe de apoio: um diretor de comunicações, que é também responsável pelo Campus Awakening; um “diretor de alcance”, que ensina a utilizar os dons do Espírito Santo, como o de profecia; um diretor de desenvolvimento; um membro do time executivo; um diretor de web; dois outros pastores de jovens; duas pessoas compondo o departamento administrativo (sendo uma delas especificamente responsável pela área de criação); e uma coordenadora de oração. A banda, propriamente, é formada pelos demais seis integrantes: dois vocalistas, um baixista, um guitarrista, um tecladista e um baterista.

Uma das principais concepções propagadas pelo grupo é a da centralidade da pessoa de Jesus e da necessidade de se manter um relacionamento diário com ele, o que é uma herança das igrejas do novo paradigma. É através da “intimidade” com o divino que se aprende a ouvir e a discernir a voz dele. Como claramente se prega que ouvir a voz de Deus é sim fruto da imaginação (porém, “imaginação espiritual”), acredita-se que, com o tempo e por meio de várias tentativas, a pessoa vai conhecendo a voz de Deus melhor e percebendo quando há uma mensagem sobrenatural que precisa ser transmitida a alguém.

Como se verá, a Teologia do Domínio também dá forma à espiritualidade pregada.

Incentiva-se a mobilização dos jovens e a pregação da mensagem religiosa nas diversas posições e áreas que eles possam ocupar na sociedade. No website do Jesus Culture, e também nas preleções do pastor que dirige o grupo e na fala dos outros integrantes, a crença que mais se destaca é a de que: “a new breed of revivalists were emerging throughout the earth to answer the cry of God’s yearning for nations” 191. O levante dessa geração de pessoas entusiasmadas com a fé impactaria não apenas as igrejas, mas campi escolares e universitários, chegando a exercer influência em cidades e nações, no intuito de formatar a cultura de acordo com o que eles interpretam ser o reino de Deus. Embora a música tenha importância central no trabalho realizado pelo Jesus Culture, o grupo intui não apenas

190 Quando a coleta de material primário foi feita nos Estados Unidos no ano de 2013, o grupo ainda estava em processo de mudança para Sacramento. Pelo fato de a banda ter sido analisada justamente no período de uma transformação em sua atuação no cenário estadunidense, as conclusões levantadas se referem à influência que o grupo já era exercia entre os jovens antes da formação da igreja.

191 “Uma nova geração de avivalistas começou a emergir por toda a terra para responder o clamor do desejo de Deus pelas nações”. Fonte: http://www.jesusculture.com/about, acesso em 27 de julho de 2013.

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apresentar canções de louvor, mas fazer com que elas sejam veículos por meio dos quais os sujeitos experimentem um “verdadeiro” encontro com o poder e o amor da divindade, e transformem o mundo a sua volta. O evento do qual participei ilustra isso.

Após não menos que uma hora de intenso trânsito na cidade de Los Angeles, tráfego intensificado pelo período de férias escolares e consequente turismo na região, era possível chegar ao parque temático Universal Studios Hollywood. Pagava-se a taxa de estacionamento normalmente. O destino não era ver shows pirotécnicos, efeitos usados em filmes, ou ir a montanhas-russas. Uma verdadeira multidão avançava rumo ao Gibson Amphitheatre, passando apressadamente pelo City Walk – espaço que antecede o acesso definitivo ao local dos brinquedos e shows. Lojas de balas, roupas e souvenires, além de restaurantes diversos, ficavam em segundo plano à medida que ávidos adolescentes e jovens adultos iam ao encontro de Jesus. Acontecia ali a principal conferência organizada pelo Jesus Culture em 2013 nos Estados Unidos.

Em frente ao anfiteatro, a fila do credenciamento tinha cerca de 200 pessoas, o que era pouco, tendo em vista que o espaço de seis mil assentos já estava praticamente lotado antes do horário previsto para o início da conferência. Logo na entrada, também ficavam estandes vendendo livros, CDs, camisas, bonés e outros itens ligados aos palestrantes e cantores192.

Pontualmente, o pastor Banning Liebscher abriu o evento, e a multidão gritou em polvorosa quando a banda entrou no palco pela primeira vez. Imediatamente o teatro se transformou em um show adornado por canhões de luz e efeitos dos mais diversos, e Kim Walker-Smith e Chris Quilala começaram a entoar canções que ressaltavam que Jesus estava vivo, que ele reinava, e que o intuito era fazer com que seu nome fosse levantado e conhecido.

Todas as músicas continham teor religioso explícito, e em muitas delas se falava com a divindade em tom mais íntimo – característica predominante do repertório congregacional dos Estados Unidos e que também se observa no Brasil. A plateia entrava em êxtase enquanto cantava e dançava ao som de trechos como: “I am alive on God’s great dance floor”193.

Os muitos jovens que se aglomeravam no espaço entre o palco e a primeira fileira de cadeiras rumaram a seus assentos marcados por casacos e bolsas após um rapaz assumir o microfone e interromper o show para dar sequência à programação. Com a iluminação singelamente mais acentuada, viam-se muitas pessoas entre 30 e 40 anos, além de outras mais jovens também. A maioria do público era de brancos, mas havia um número considerável de

192 Além do Jesus Culture, outros cantores se apresentaram no período de louvor da manhã e à tarde, mas sem os mesmos efeitos de luz que acompanhavam a banda.

193 Estou vivo na grande pista de dança de Deus.

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indivíduos com ascendência latino-hispânica. Negros estavam quase ausentes.

Aproximadamente a metade das pessoas havia frequentado a conferência no ano anterior.

Alguns mostravam ter viajado até mesmo de outro país para acompanhar o evento.

Desde o primeiro dia foram enfatizadas a importância da cidade de Los Angeles, coração do entretenimento estadunidense, e a relevância do estado da Califórnia para o protestantismo. Durante toda a conferência falou-se que o grupo era parte de um grande avivamento que Deus estaria fazendo nos dias atuais. Destaque foi dado ao ato de crer e se relacionar com Jesus e com a família da fé. Ao final da primeira noite de performance, um apelo foi feito àqueles que precisavam restaurar seu compromisso com o divino ou se converter. Ao menos 10% dos presentes atenderam ao chamado. Em seguida, Liebscher convidou ao palco o famoso líder Lou Engle, fundador do movimento The Call194. Engle narrou que há anos havia profetizado sobre um novo Jesus Movement nos EUA e que estádios se encheriam para a glória de Deus. Para dar suporte a isso, fez pedido de oferta, que fora recolhida por obreiros, não só neste, mas nos demais dias da conferência. Após vídeos que propagandeavam os parceiros/patrocinadores do evento, como o do Valor Christian College, os presentes assistiram a outro vídeo, mostrando milhares de conversões na Nigéria. O público gritou incansavelmente quando apareceu a imagem de uma cadeira de rodas sendo erguida em sinal da cura de um fiel. O vídeo relatava que 55 milhões de nigerianos haviam se convertido entre os anos 2000 e 2009, como resultado do trabalho do evangelista Reinhard Bonnke, preletor da noite.

Nos demais dias, o evento contou com programação de 09:30 às 22:00 horas, com intervalos de duas horas para almoço e jantar. Eram três cultos diários, cada um com a seguinte programação: louvor, anúncios e bate-papo/palestra e/ou pregação. Uma diferença crucial em relação a outros eventos eclesiásticos é que o uso de celular era amplamente incentivado. As pessoas podiam tirar fotos (preferencialmente sem flash), postar imagens e comentários no Facebook e Instagram, e participar de enquetes cujo resultado era divulgado na hora, nos dois grandes telões que ladeavam o palco. Além de louvor com banda, pregação tradicional, oferta e apelo, os jovens (e também adultos em número considerável) eram instruídos, pela manhã, a ouvir a voz de Deus e orar pelas pessoas para ver manifestações de cura. À tarde, ouviam alguns leigos, social e economicamente bem sucedidos, endereçarem

194 Iniciativa religiosa que convoca indivíduos de todas as idades para se reunir em favor do país. As reuniões do The Call são chamadas “assembleias solenes” (referência a termo bíblico), e têm o intuito de realizar 12 horas de jejum e oração pela nação. Uma característica marcante é que não são divulgados os nomes de bandas ou personalidades que participarão do evento. O The Call acontece em várias regiões dos Estados Unidos, mas também em países como Austrália, Holanda, Israel, Brasil, Canadá, entre outros. Ver mais em:

http://www.thecall.com, acesso em 10 de outubro de 2013.

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questões sobre sucesso profissional, gênero, cultura e comunhão religiosa. Durante todos os dias, a tônica estava na importância da atuação dos jovens nas diversas áreas do social:

esportes, entretenimento, negócios, ciência, educação, governo. Não se negava o mundo; o intuito era fomentar um reavivamento de fé cujo reflexo seria uma ação em massa para

“dominar” as diversas dimensões da sociedade.

No congresso, Scott Thompson (“diretor de alcance” do grupo) liderou uma sessão matinal chamada Power Evangelism, na qual aconselhou aos ouvintes, quer fossem líderes de jovens ou apenas adolescentes ou jovens adultos, a ouvir as palavras de cura que eram ditas por Deus. Ele encorajava a plateia a descrever em voz alta as palavras que Deus estava enviando. Pequenas frases, geralmente referindo-se a problemas físicos e emocionais, eram mencionadas, tais como: dor de garganta, dor nas costas, dor no estômago, dor de cabeça, depressão. O ouvir a Deus acontecia de diversas formas. Uns diziam que a palavra simplesmente lhes vinha à mente. Outros narravam sentir formigamento ou dor em alguma parte do corpo que não lhes doía anteriormente, e em seguida sentir alívio. Em todas as sessões falava-se da possibilidade da cura ser de 10, 20, 30, 50 ou 70%, por exemplo.

Ensinava-se que nem sempre a pessoa objeto da oração atestaria completa mudança. Ainda assim, defendia-se que o importante era a atitude de amor contida na disposição de ouvir a Deus e orar pelos que estão à volta.

Durante a conferência, Thompson e outros líderes incentivaram os jovens a valorizar o fracasso de suas iniciativas de oração, cura e evangelismo. A plateia era ensinada a aproveitar os períodos de intervalo de almoço e jantar que constavam na programação para abordar o público que circulava no City Walk e oferecer orações, falar de Jesus, e, dessa forma, testar o que era aprendido na conferência. Um dos ensinos era receber várias recusas por parte das pessoas abordadas. Isso era compreendido como parte do processo de servir a Deus, e era visto de forma positiva, pois testava se a disposição do coração da pessoa que orava era dependente do resultado do milagre.

O modo como a cura era apresentada em porcentagens de melhora e como o fracasso era valorizado sendo parte da ação miraculosa de Deus (que opera amor no coração do indivíduo que se dispõe a agir em direção ao próximo) mostrou tentativas de solver um problema latente de um dos dons Espírito Santo, a saber, o de que algumas pessoas não são curadas. Não se atribuía o insucesso à falta de fé, nem do indivíduo que sofre, nem do fiel que ora. Entendia-se que é um processo de aprendizado, em que crentes obedecem a vontade de Deus (que é cuidar do próximo), aprendem a ouvir a voz de seu mestre mediante oportunidades diversas que aparecem no cotidiano, e cumprem a missão de pregar, orar e

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fazer com que a sociedade seja alcançada. Tributários do ensino de uma igreja vinculada à rede de Peter Wagner, a meu ver, a incorporação da falha como parte aceitável da dinâmica espiritual desses crentes permite que o fiel continue exercendo sua fé e esperando pela ação de Deus em longo prazo.

Nos ensinos do Jesus Culture, há forte ênfase no sobrenatural e crê-se na manifestação terrena do poder de Deus. Fica evidente a guerra espiritual e a eficácia da oração para combater doenças físicas e psíquicas, além de hostes malignas (que podem ou não ser as causas das enfermidades), como visto no caso do DT. Ressalta-se ainda o fato de o grupo estar ligado a pais e mães espirituais, com os quais se “alinha”, usufruindo assim da proteção advinda da submissão a outros líderes – típico da Teologia do Domínio, tratada no capítulo dois. Ao direcionar seus discursos e canções a adolescentes e jovens adultos, o Jesus Culture não pretende impactar e renovar apenas o âmbito religioso. Visa desempenhar um papel pedagógico, estimulando os jovens a atuar e “dominar” as chamadas sete montanhas da sociedade: religião, família, negócios, governo, educação, mídia, e artes e entretenimento (caderno de campo, 23 de julho de 2013). Assim como o Diante do Trono, o Jesus Culture é outro bom exemplo do modo como a Teologia do Domínio tem sido pregada e ensinada pela articulação de atores musicais.

No próximo e último capítulo desta tese, retomarei o estudo do DT, chamando a atenção para uma dimensão geralmente ausente nas abordagens sobre a musicalidade religiosa, a saber, a das questões envolvendo gêneros e sexualidades.

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