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4. A música protestante nos Estados Unidos

4.2 Contemporary Christian music

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parte das vezes se faz referência à produção e à comercialização feita em larga escala, e que, ainda que influencie o âmbito congregacional, não incorpora as particularidades que permeiam o ritual de louvor dentro das igrejas, nem as atividades a ele correlatas.

Portanto, minha opção é empregar o conceito CCM, assim como Monique Ingalls (2008), para remeter à indústria fonográfica religiosa que mimetizou os sons seculares, cujo epicentro foi a cidade de Nashville/TN, e que alcançou o auge nos anos 80. Embora isso não implique dizer que CCM é um tipo específico de som, visa chamar a atenção para a produção musical que se organizou a partir de parcerias com empresas seculares e que estabeleceu discursos para lidar com as tensões trazidas pela estreita relação com o mercado – contexto cultural indissociável.

Vários artistas, tendo sido bem sucedidos ou não na tentativa, cruzaram as fronteiras e foram em parte responsáveis pela porosidade da linha divisória entre as músicas produzidas com propósito comercial e de entretenimento pessoal e coletivo, e as canções empregadas em âmbito congregacional. Mesmo assim, os limites se mantiveram por um bom tempo. Algumas canções CCM, ainda que ouvidas dentro dos templos, permaneciam distinguidas, sendo usadas por solistas ou cantadas por corais, mas não pela congregação. As tensões entre o que era direcionado para o prazer cotidiano e o que seria mais adequado à adoração/devoção rituais foram periodicamente reimaginadas pela audiência, pelos músicos, e, mais recentemente, pelos executivos (Ingalls, Nekola et al., 2013). Mas vamos primeiro à trajetória do que foi chamado CCM.

Jay R. Howard e John M. Streck, fizeram uma contribuição analítica a respeito da CCM, que, embora não seja propriamente pioneira, pode ser considerada um dos primeiros grandes esforços de síntese. Publicado como o livro Apostles of Rock: the Splintered World of Contemporary Christian Music, a obra, que é pautada em análise de revistas sobre a música cristã, outras publicações do ramo e entrevistas, tem cunho sociológico, foi publicada em 1999, e embasará boa parte da narrativa deste tópico. Aludindo à reflexão teórica de Howard Becker, os autores compreenderam a CCM como uma arte/mundo composta por uma rede de pessoas, isto é, uma comunidade de artistas, produtores, financiadores, distribuidores, plateia, críticos, apreciadores estéticos e filósofos, cuja atividade cooperada contribuiria para a criação de um produto artístico específico. Todavia, a CCM seria uma arte/mundo fragmentada e caracterizada por produzir distintas lógicas, por vezes competitivas, que marcariam um processo constante de negociação das fronteiras da música cristã.

Tendo como base as contribuições do teólogo H. Richard Neibuhr, Howard e Streck (1999) evidenciaram que a música protestante que cruzou as fronteiras das congregações

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criou identidade estabelecendo relações com o mercado secular. Segundo eles, as tensões no campo musical são expressões da velha tentativa dos protestantes de resolver o impasse de viver neste mundo sem fazer parte dele. Assim, os autores identificam diferentes posicionamentos/respostas a esse dilema, que categorizam em três grupos: separatistas, integralistas e transformadores152, cuja descrição será feita nas próximas páginas. Cabe antecipar que minha leitura da obra desses articulistas sugere que tais grupos são generalizações de grande validade, mas que devem ser utilizadas como recurso exclusivamente pedagógico, pois as divisões identificadas não são claramente encontradas na realidade do campo protestante. Embora o grupo dos que enfatizam o discurso de estar apartado da cultura mainstream (os separatistas) tenha um peso maior no livro, seja o primeiro a ser retratado pelos autores e tenha sido bem dizer o primeiro a surgir, a análise feita é quase sincrônica, pois privilegia os discursos e as lógicas que justificam as transformações na música religiosa em detrimento do período em que as mudanças ocorreram. Ainda sim, levanta questões fundamentais que devem ser mencionadas.

Mas antes de explorar as tipologias de Howard e Streck, é preciso fazer algumas ponderações. Segundo Mark Allan Powell (2004) – teólogo que em poucas páginas escritas sobre CCM apresentou uma síntese relevante do ponto de vista diacrônico –, observa-se que, enquanto 1970 foi a época de os Jesus Freak expressarem sua paixão pela devoção religiosa usando o rock (cujo pai do estilo foi o conhecido artista Larry Norman) 153, em 1980 esse movimento musical se tornou uma indústria. A partir de então, a retórica do triunfalismo teve peso considerável; referências sobre guerra espiritual, batalha, inimigos e vitória em Cristo abundaram. A banda de rock Petra foi o retrato de tal abordagem. A artista Amy Grant, embora não adepta desse tipo de discurso, foi o grande destaque no mercado secular (Schill, 2007). Com o álbum Age to Age, de 1982, Grant foi a primeira religiosa a alcançar disco de platina. Em 1990, a indústria da música se transformou em um império que contemplava lojas, revistas, canais de vídeo, websites da Internet, shows e premiações154 voltadas para a música protestante155. O que predominou no período foi a evidência da vulnerabilidade dos artistas, isto é, de humildade e perseverança na fé face ao que era visto por muitos crentes como uma era pós-cristã. Jars of Clay e DC Talk foram grupos que traduziram tal tendência.

152 Os autores chamam os três tipos de CCM de: “separational CCM”, “integrational CCM” e “transformational CCM”.

153 Powell (2004) acrescenta que essas músicas eram dedicadas a exprimir o amor a Jesus, poucas vezes endereçavam problemas sociais, não eram claramente evangelísticas e refletiam certo sentimentalismo que predominava nos EUA da época.

154 A Dove Awards, por exemplo, é uma premiação equivalente à secular Grammy Awards.

155 Segundo Stiles (2005), um quarto do faturamento da indústria fonográfica protestante, que, entre 2001 e 2004, por exemplo, gerou mais de quatro bilhões de dólares anuais, advém do que é produzido pela CCM.

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Todos os tipos de CCM trazem tentativas – segundo Balmer (2000), obcecadas – de definir o que é a música religiosa. Afinal, esse tipo de produção fonográfica se desenvolveu no limiar entre o repertório cantado dentro das igrejas e a indústria secular de discos e álbuns.

Como não era um gênero que se distinguia por um código sonoro particular, o conflito dentro do campo girou em torno de tentativas de demarcação de sua especificidade. Seria a fé do artista, a letra das canções, ou a identidade da organização que produz o álbum (Howard e Streck, 1999)? Todas as alternativas se mostraram problemáticas. Facilmente se viu artistas que se afirmavam cristãos, mas não produziam músicas com letras cujos temas giravam em torno da fé. Outros se declararam protestantes, mas se envolveram em escândalos que mancharam a reputação de suas canções (Stiles, 2005) 156. Houve ainda outro fator-chave que deu novos contornos às fronteiras entre o sagrado e o secular, a saber, as fusões entre empresas não confessionais e gravadoras e/ou artistas religiosos.

Quanto a este último ponto, o que ocorreu foi que em 1974, a Word Inc., uma das maiores gravadoras confessionais, foi comprada pela ABC Entertainment Corporation157, e passou a produzir álbuns que coexistiam tanto no universo religioso quanto no secular, cooperando para um padrão que vigorou em 1980 – o de haver, em vários conglomerados empresariais, um grupo para lidar especificamente com o mercado religioso (Howard e Streck, 1999). Um nome importante na Word Inc. deixou-a para fundar sua própria gravadora, a Sparrow Records (uma das três mais relevantes, juntamente com a Word e a Benson158), e que foi comprada pela secular EMI em 1992; esta, que ainda arrematou a religiosa Star Songs Communications (Linton, 2000). Ainda outro exemplo é o da Light Records, que negociou um acordo de distribuição de álbuns com a secular Elektra/Asylum, em 1982. Em 1993, a BMG comprou a metade da Reunion Records.

Algumas empresas não confessionais, a Sony sendo uma delas, também criaram selos direcionados ao mercado religioso. As majors perceberam que poderiam usufruir de outra fatia de consumidores e tentaram transformar a CCM em um produto com apelo no mercado de massa, uma vez que os seculares country e rock não estavam vendendo tanto quanto era

156 Na época do apogeu da CCM, surgiram vários escândalos, sobretudo ligados a relacionamentos extramaritais das celebridades, como Michael English, Marabeth Jordan e Sandi Patty. O divórcio da cantora Amy Grant também gerou polêmica. Como o modelo de família tradicional é um valor preservado entre os protestantes, muitos profissionais de relações públicas, cristãos, tentaram proteger certas informações que julgavam próprias à esfera privada. No processo de “restauração” da integridade daqueles que passassem por um desvio moral, a confissão, o arrependimento e a disciplina deveriam ser realizados no nível da igreja local. Tentando retirar a negatividade que pairava sobre alguns artistas, ajudava-se a proteger as gravadoras de modo que as vendas não fossem significativamente afetadas (Stiles, 2005).

157 Em 1984, a Word passou a fazer parte da Capital Cities Communications/ABC. Posteriormente, ela foi vendida para a editora cristã Thomas Nelson Publishers.

158 A Benson, juntamente com Bretwood Music, foi adquirida pela Zomba (Linton, 2000), parte do grupo Sony.

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esperado (idem). No momento de crise da indústria fonográfica secular, a CCM gerou mais de um bilhão de dólares em vendas (Powell, 2004; Brown, 2012). Entre 2004 e 2005, por exemplo, o rock cristão cresceu mais de 125% (Chang e Lim, 2009). As gravadoras confessionais, em contrapartida, pensaram que as majors poderiam oferecer uma maior plataforma sobre a qual a mensagem religiosa se espalharia (Kelman, 2013); mesmo argumento visto nas justificativas dadas pelo Diante do Trono quando passou a distribuir os álbuns pela Som Livre.

Essas parcerias foram caras ao meio protestante. Ari Kelman (2013), um dos únicos sociólogos a tratar do tema, ressalta que as empresas seculares tinham um víeis anticristão, isto é, não se davam conta da importância da mensagem de fé que os crentes queriam carregar – uma crítica que se aplica perfeitamente ao caso da Globo, que parece, a cada dia que passa, estar ainda mais cega quanto às particularidades do meio evangélico brasileiro.

Alguns crentes rejeitaram a CCM pelo formato exageradamente comercial e considerado inapropriado para o uso religioso; também, por apresentar uma versão de canção religiosa tida como distorcida, quando não completamente deturpada, do evangelho. A CCM também enfrentou críticas como as dos teleenvagelistas David Noebel e Bob Larson, que associaram as canções ao comunismo e a transes hipnóticos que podiam levar à possessão demoníaca. A música foi relacionada ainda ao voo doo e à atração de demônios. Conta-se que o filho de um pastor estadunidense escutou CCM na África e teve contato com um nativo que associou a canção aos ditos rituais (Howard e Streck, 1999) 159. Houve até quem considerasse a CCM esteticamente medíocre, uma imitação mal feita do rock secular.

Para lidar com esses conflitos, diferentes justificativas foram cunhadas com o intuito de aumentar a legitimidade religiosa e estética do som que, a cada dia, vinha ganhando mais espaço no meio protestante. Os grupos apresentados por Howard e Streck ilustram isso. Como resultado de tais discursos, muitas das censuras perderam sua força e repercussão.

O primeiro grupo é o dos músicos chamados separatistas, que, por não se misturarem com o secular, fizeram com que suas canções ficassem restritas ao meio protestante, uma vez que eram criadas quase que exclusivamente por e para os crentes. Ainda hoje, as retóricas cunhadas por tal grupo são as de maior aceitação e propagação (Katz, 2000). Os separatistas apregoavam uma visão de mundo dicotomizada entre bem e mal, certo e errado, isto é, “Cristo contra a cultura”. Faziam um dualismo entre luz e escuridão, pensando na espécie humana

159 Embora isso tenha significado a demonização e a paganização da cultura africana, bem como fomentado um posicionamento racista, alguns africanos foram reconhecidos na época como autoridades em relação à maldade da música rock (idem).

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como alienada, no mundo como inerentemente mal, e em Cristo como única fonte de luz e conhecimento (Schill, 2007). As letras das canções dos músicos mencionavam Jesus recorrentemente, e eram o máximo possível carregadas de referências religiosas. O trabalho musical era conceituado como um ministério. Três distintas lógicas emergiam dos agentes classificados como separatistas: a de que as músicas eram mecanismos de evangelização; a de que eram facilitadoras de adoração/louvor; e a de que eram veículos de exortação e encorajamento.

Mesmo tentando se afastar do mundo, no fervor de evangelizar, os separatistas acabaram adotando prontamente novas tendências culturais, como trajes, estilos de cabelo e nomes de grupo semelhantes aos das bandas seculares. Foram também os primeiros a se apropriar de gêneros musicais antes rejeitados pelos protestantes, como o rap, o punk e o heavy metal (Linton, 2000). Não consideravam que isso era problemático, pois viam a música como algo inerentemente neutro. Mesmo assim, a maioria do público que atraiam era de crentes, pois, desde meados da década de 1970, com a desintegração do Jesus Movement, muitos fiéis permaneceram isolados e sectários. Os álbuns, consequentemente, eram vendidos em livrarias protestantes e muitas das performances dos artistas ocorriam dentro de igrejas, universidades ou em festivais musicais de verão, tais como: Evangelism Explosion (Explo’72), Campus Crusade, Cornerstone, Creation, Fishnet, Icthus, Greenbelt e Flevo; que foram organizados e se popularizaram durante os anos 70 e 80.

Parte dos CCM separatistas incorporou o discurso de que as músicas tinham função de adoração, o que influenciou os louvores de inúmeras igrejas. Porém é bom deixar claro que muitos dos separatistas acabaram voltando seu discurso para a finalidade evangelística, que nunca deixou de ser uma retórica do grupo (idem, p.63). Outros, todavia, em resposta à posição subcultural dos protestantes, passaram a se dedicar à música com finalidade de exortação. Petra foi uma das bandas que mudou sua postura, que no início era evangelizadora, e depois passou a ser a de fazer encorajamentos. Randy Stonehill era outro famoso que, ao exortar o povo crente, acionava imagens de guerra espiritual (luta contra o mundo, a carne e o mal). Artistas como Keith Green e Steve Camp coloriram a perspectiva da guerra ainda mais, e passaram a ver suas missões como proféticas. Para muitos dos cantores e ouvintes, Green era visto como um Ezequiel (profeta bíblico) dos dias modernos, cujas profecias se encontravam nas letras das canções, consideradas mensagens de Deus.

As letras das músicas dos separatistas eram vistas como um entrave para a venda dos álbuns no mercado secular; comercialização esta que por vezes era interpretada como inconsistente com os valores religiosos. Desse modo, ainda que dependessem da venda de

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CDs, era comum que esses músicos considerassem que as gravadoras existiam apenas com o objetivo de fazer dinheiro, independentemente de serem religiosas ou não. Alguns músicos chegavam a doar seus álbuns aos fiéis. Outros tentavam distinguir a indústria da música enquanto sistema, das pessoas no sentido individual, de modo a atenuar a relação conflituosa que se estabelecia com o lucro.

Ainda que os crentes sejam uma subcultura representativa nos Estados Unidos, muitos deles, mesmo declarando a fé, não têm hábitos subculturais, como o de comprar em livrarias do segmento. Determinados artistas então tentaram direcionar um trabalho musical a esse público, e também a uma audiência mais ampla, defendendo a não distinção entre o sagrado e o secular. Por trás dessa perspectiva estava a compreensão do “Cristo da cultura”, isto é, a de que Cristo atestaria o que havia de melhor na cultura, e guiaria a civilização na direção correta. A cultura em si era vista da seguinte forma: “while imperfect and frequently misguided, is essentially good and in harmony with Christ, who will fulfill culture’s hopes and aspirations” 160 (Howard e Streck, 1999, p.82). Essa visão diminuía as tensões entre mundo e igreja, e as canções produzidas a partir daí ficaram conhecidas como positive pop (pop positivo). Seus compositores, instrumentistas e cantores foram chamados crossovers, ou seja, aqueles que atravessavam a fronteira.

Tal grupo foi denominado integralista. Esses sujeitos criaram lógicas que permitiram que os músicos e as perspectivas cristãs fossem incorporados à cultura mainstream. Mas, para que houvesse sucesso na expansão do que, de alguma forma, ainda guardava caráter religioso, as canções precisavam ser comercialmente viáveis e, assim, acabaram por vestir a roupagem do entretenimento. Foram veiculadas em rádios e gravadoras seculares, e também na MTV161. O sucesso comercial decorrente foi apresentado como atestação de conquista espiritual.

Muitas das iniciativas de cruzar as fronteiras da fé não foram bem sucedidas. Amy Grant foi bem dizer a única cantora que fez grande sucesso fora do mercado religioso. A adequação das canções como entretenimento não convenceu muitos dos cantores, produtores e fãs. Daí aparecerem justificativas para embasar a postura integralista. De um lado, a CCM era apresentada como saudável face ao hedonismo supostamente inerente às canções populares. Era a alternativa religiosa oferecida como substituto de um famoso nome secular.

Por exemplo: Amy Grant em vez de Madonna, Michael W. Smith em vez de George Michael, Jars of Clay no lugar de Toad the Wet Sprocker, e assim por diante (Howard e Streck, 1999).

160 Ainda que imperfeita e frequentemente desorientada, é essencialmente boa e em harmonia com Cristo, que completará as esperanças e aspirações culturais.

161 Music Television – canal de televisão cuja programação, por muito tempo, girou exclusivamente em função da transmissão de vídeos musicais.

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Outra razão acionada era a que os artistas seriam testemunhas para aqueles que trabalhassem na indústria da música secular. Seria a oportunidade para que as pessoas se identificassem com “animadores” que traziam valores mais tradicionais. Diferentemente do evangelismo dos separatistas, que ocorreria diretamente por meio das canções, o testemunho dos integralistas seria pessoal, desempenhado pelo estilo de vida do artista. Uma das consequências disso era que a música passava a ser interpretada novamente apenas como música, ou seja, sem conotação de essencialmente espiritual ou mundana. Uma última lógica era a de que a CCM seria articuladora de um ponto de vista cristão. A música passava a ser definida não apenas por não promover sexo, drogas e imoralidade, mas visando, indiretamente, articular uma mensagem religiosa que significaria que os crentes eram “sal e luz” no mundo, influenciando-o sem necessariamente precisar cantar Jesus em todas as letras.

Um exemplo deste último ponto é o heavy metal religioso, que, embora não tenha tido artistas alcançando o mesmo sucesso de Amy Grant e Michael W. Smith, proporcionou o contato da juventude com os valores cristãos defendidos, e pareou ainda mais as canções religiosas aos estilos musicais contemporâneos (Luhr, 2005). As bandas de heavy metal seculares se valiam de imagens e referências religiosas (predominantemente cristãs) como inferno e diabo, e com isso eram associadas ao satanismo e ao ocultismo. Os grupos religiosos, em contrapartida, procuravam responder a tais analogias afirmando o poder de Deus e a importância da fé, e acreditando que podiam contribuir para a juventude com modelos como o de submissão a autoridades. Muitas das músicas abordavam temas como álcool, aborto, drogas e divórcio a partir de perspectivas de defesa da vida, preservação da família e libertação de vícios. As bandas se enxergavam como uma ferramenta, e os cantores, como missionários de Deus na promoção de uma arena para a contestação cultural (idem) 162.

Um grupo menor, mas ainda assim digno de nota é o que Howard e Streck chamam de músicos transformadores, que desenvolveram tentativas de definição e uso do termo

“artístico” no âmbito da fé. Esse grupo, que permaneceu à margem dos outros dois, era composto por indivíduos que não visavam entrar ou sair da cultura secular, mas habilitar sua transformação. Com preocupações estéticas e sem intuito comercial, esses músicos concebiam a cultura como caída e corrompida, embora não intrinsecamente má163. Segundo eles, a

162 Luhr ressalta que várias bandas iam a casas de shows, boates e bares, vestindo roupas como armaduras (símbolo de proteção espiritual) a fim de lutar contra o mal e libertar os indivíduos que supostamente estariam aprisionados esperando por um resgate. Às vezes, as bandas não eram bem recebidas, o que reforçava ainda mais o discurso de que se tratava de uma batalha e de perseguição (Luhr, 2005).

163 Pautados novamente nas referências de Niebuhr, Howard e Streck (1999) empregam três maneiras de relacionar Cristo para compreender a preocupação daqueles protestantes com a produção de arte. São elas: Cristo acima da cultura (humanos não separados do mundo e lutando pela distinção diariamente), Cristo e cultura como

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humanidade e a sociedade precisariam ser restauradas, e a música seria um dos veículos de crítica. A figura referência era Mark Heard, considerado o religioso Van Gogh, em comparação com o “profeta” Keith Green. Heard também era tido como uma espécie de profeta, mas, no caso, por sua autenticidade em cantar/falar dos sentimentos humanos. Os CCM transformadores foram acusados de simplificar a teologia, e dar lugar a letras que enfocavam as experiências da vida. Mas para eles, a arte por si só já era comunicação do evangelho e expressão da verdade religiosa.

Outro nome importante para as discussão desse grupo foi Hans Rookmaaker, que pensava que toda arte cristã era por si só boa e não esconderia a perspectiva religiosa do artista. Ela possuiria qualidade estética (beleza como fonte de gozo) e transmitiria uma mensagem verdadeira. Para os integralistas, ainda que a arte pudesse ser usada como uma forma de profetizar, evangelizar e exortar, pautar seu valor nessas tarefas seria um utilitarismo pervertido e reducionista, pois a arte não precisaria de justificativa; uma vez criada, ela refletiria a imagem de Deus. A música, por conseguinte, era valorizada em si mesma, independentemente de sua utilidade ou propósito, pois era uma forma de revelar a verdade, e trazer uma visão de um mundo transformado e redimido. Buscava-se, portanto, confrontar os crentes e definir o que era autêntico, contrapondo arte (autenticidade, honestidade) à commodity (prostituição da arte, comércio, obscurantismo). Assim, questionavam a “real”

motivação dos envolvidos na indústria religiosa.

Os transformadores tinham gravadoras e circuitos próprios de circulação dos álbuns, mas a rentabilidade financeira que geravam era ínfima. Tentavam contornar a tensão com o lucro, justificando que ele era aceito caso não fosse colocado como prioridade. Por criticar o próprio meio musical protestante, também sofriam represálias por parte de outros artistas CCM que os consideravam como irrelevantemente “políticos” (Katz, 2000), por destinarem uma espécie de pensamento crítico a uma audiência desinteressada.

Em resumo, a meu ver, o que perpassa a análise dos grupos separatista, integralista e transformador é o modo como se busca a produção de canções que possam ser consideradas autênticas tanto em face das mudanças de ritmo/estilo que modernizaram a música religiosa, quanto mediante as relações estabelecidas com o mercado. De um lado, a apropriação de novos sons encontrou raízes no gosto pelo rock, e por outros estilos/gêneros musicais populares, por parte daqueles que se converteram durante o Jesus Movement. Por outro lado, as canções receberam influência de alterações feitas, em maior ou menor grau, para que

um paradoxo (vida precária, de olho no porvir; toda cultura é caída e precisa ser restaurada), e Cristo como

transformador da cultura (homens e cultura são caídos e carecem de redenção).

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fossem comercializadas a uma audiência mais ampla que a protestante. Os artistas precisaram lidar com a lógica do mercado secular frente à qual buscavam se tornar respeitáveis. Careciam ainda de dar sentido ao lucro alcançado, qualquer que fosse o tipo de CCM que produziam.

As tensões daí decorrentes espelhavam o medo generalizado de que a distinção cristã fosse perdida. Para Charles Brown (2012), existia uma “fine line between being culturally relevant and losing their evangelical distinctiveness” 164 (idem, p.119). Segundo ele, os membros da indústria cristã, de um modo geral, precisavam mirar os não cristãos para preservar a fachada do foco evangelístico, que trazia status. Contudo, na prática, era necessário alcançar os próprios cristãos, pois eram estes que formavam a grande base do mercado, ainda que o deixassem guetizado. Como estratégia ativa para diminuir os conflitos, Brown narra que em muitas canções houve diminuição dos jargões religiosos. Vários músicos também se concentraram na abordagem de temas mais universais, e pulverizaram suas ações em diferentes tipos de projetos com vistas a atingir tanto o público religioso quanto o não religioso. Como estratégia passiva, apareciam as justificativas de que a inspiração para o trabalho musical decorria de criatividade pessoal, tentando assim não endereçar diretamente a tensão. Outros diziam acreditar estar fazendo a coisa certa. Havia ainda os que se apartavam das responsabilidades, declarando que eram guiados por Deus. Por último, alguns alegavam que as pressões do ambiente secular constrangiam a tomada de decisão, de modo que assim se desvencilhavam da preferência por um dos lados165.

O que interessa a respeito das razões/lógicas por detrás dessas tentativas de legitimação da CCM é a enorme preocupação com o cruzamento (ou melhor, redefinição) das fronteiras do religioso. As tipologias empregadas por Howard e Streck ilustram como esses limites são negociados a partir da música. É possível dizer que o que de fato faz as canções serem consideradas legítimas é o sucesso das interpretações que determinado grupo dá à relação entre cristianismo e cultura secular, ora colocando esses dois universos em oposição, ora os conciliando. A neutralidade conferida aos sons e o teor mais ou menos religioso das letras são corolários dessa relação.

Um autor que faz um contraponto ao debate é Michael Linton (2000), que afirma que a análise de Howard e Streck (1999) parece desconhecer a importância (inclusive internacional) de músicos cristãos que nada tem a ver com a CCM, ou com o C-pop, para usar os termos de

164 Linha fina entre ser culturalmente relevante e perder a distinção.

165 Embora Brown (2012) registre um retrato detalhado das tensões dentro da indústria da música religiosa, ele não se apropria da literatura, como a de Howard e Streck, que, por meio da menção do grupo de transformadores e integralistas já haviam feito um exercício analítico similar. Por pouco colocar as estratégias passivas e ativas que elenca no texto em maior diálogo com outros textos, não mostra quais intercâmbios havia entre elas, nem mesmo o impacto efetivo que tais razões tiveram na produção musical.