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A Nova Arqueologia e o método de Organização tecnológica

Capítulo 2: Enquadramento teórico-metodológico 2.1 Organização e variabilidade das indústrias líticas

2.3. A Nova Arqueologia e o método de Organização tecnológica

O início da segunda metade do séc. XX fica associado a um conjunto de críticas ao carácter teórico e metodológico da arqueologia. O debate nasce no seio da arqueologia americana, incidindo principalmente sobre os objectivos finais da investigação. Segundo investigadores como Walter Taylor (1948), a arqueologia até então, recaia unicamente sobre a inventariação e classificação de artefactos, descurando uma visão mais ampla e antropológica do conhecimento sobre comportamento humano. A contribuição dos estudos antropológicos e etnográficos da escola americana foram fundamentais para uma nova concepção para os objectivos da arqueologia. Segundo esta nova perspectiva a complexidade do comportamento humano é explicado pelas diferentes conceptualizações da cultura e a arqueologia deve procurar investigar e explicar o comportamento humano ao longo da história. Taylor introduz pela primeira vez o debate sobre o conceito de “cultura”, apontando três perspectivas que caracterizam o fenómeno cultural: (1) descritiva, caracterizada por um conjunto de construções mentais adquiridas durante o crescimento do indivíduo, (2) explicativa, resultado do conjunto de estímulos do comportamento humano a factores externos e (3) partitiva, características culturais e intrínsecas que definem um grupo de indivíduos (i.e. etnicidade) (Longacre 2010). Assim, tomando

consciência da complexidade do comportamento humano, para lá de uma arqueologia focada na construção e organização das sequências crono-culturais, esta nova perspectiva, designada de “método conjuntivo” (Taylor 1948), introduziu um modelo teórico debruçado sobre a identificação e organização da diversidade dos processos culturais nas comunidades humanas do passado (Binford 1981, Schiffer 1985, Spaulding 1985). Um dos aspectos centrais desta crítica passou pelos métodos de recolha e documentação do registo arqueológico durante os trabalhos de campo, no qual se deveria implementar uma metodologia cuidada e controlada dos dados estratigráficos, que não comprometesse o contexto cultural e ambiental presente no registo, e por isso impossibilitasse relacionar diferentes entidades culturais ao longo da estratigrafia e entre diferentes sítios. Do mesmo modo, esta nova perspectiva defendia a análise de todo e qualquer tipo de materiais recuperados no registo arqueológico, usando para isso diferentes disciplinas e metodologias de análise que conjugadas permitiram uma reconstrução mais completa e fiel do passado.

Esta nova perspectiva culminou no aparecimento de uma nova corrente de pensamento científico na arqueologia. Durante os nos 50 e 60 do séc. XX, impulsionada pela escola antropológica americana, a Nova Arqueologia caracterizava-se por uma corrente de pensamento focado nas dinâmicas dos processos culturais do comportamento humano (Binford 1962, 1964, 1965, 1967, 1968, Schiffer 1976, Trigger 1989). Depois de introduzido por Taylor o debate sobre o conceito de “cultura”, o mesmo foi retomado por Binford, definindo o processo cultural como um “conjunto de articulações, constantes ou repetidas ciclicamente, entre os meios extra-

somáticos de tipo social, tecnológico e ideológico, disponíveis a uma população humana” (Binford 1964: 36, in Bicho 2006). Segundo esta perspectiva, a única

maneira de reconstruir os modos de vida e os processos culturais do comportamento humano no passado, é estudar os diferentes aspectos da cultura material. A análise dos artefactos em contextos arqueológicos é fundamental, uma vez que a cultura material traduz os diferentes aspectos culturais (e.g. sociais, tecnológicos, simbólicos e étnicos) que caracterizam o comportamento humano no passado. Uma investigação arqueológica debruçada sobre os processos culturais, reflectidos na complexidade do comportamento humano, deveria centrar-se quer nos processo de formação e documentação do registo arqueológico, quer na variabilidade da cultura material recuperada em contextos arqueológicos. Esta perspectiva da Nova Arqueologia teve como principais novidades, entre outras, um foco na abordagem científica e

interdisciplinar da arqueologia e o recurso a novas e variadas metodologias, técnicas e disciplinas auxiliares na investigação arqueológica procurando analisar os diferentes materiais e objectivos de estudo (Bicho 2006).

No que refere ao estudo de indústrias líticas, a abordagem multidisciplinar fez-se sentir com o aparecimento e consolidação de diferentes perspectivas teóricas, disciplinas e métodos de análise. Entre as mais importantes contribuições destacam-se o recurso à replicação das técnicas de talhe, emergente dos estudos etnoarqueológicos e experimentais, o método das remontagens, bem como a introdução de novos paradigmas, explícitos na elaboração de uma tipologia descritiva, o conceito de cadeia operatória e organização tecnológica, desenvolvimento dos estudos funcionais e o recurso a métodos de análise quantitativa (i.e. estatística) (Almeida 2000, Almeida et al. 2003, Bicho 2006, Holdaway & Douglass 2011, Longacre 2010, McCall 2012, Odell 2001). Dentro desta corrente de pensamento, nasce o conceito de arqueologia do comportamento (Reid et al. 1975, Schiffer 1975, 1976). Esta perspectiva defende a variabilidade artefactual deve-se à importância dos factores tecnológicos e utilitários, enquanto resposta às necessidades ecológicas. Segundo a arqueologia do comportamento, a investigação arqueológica deve passar pelo estudo da relação entre o comportamento humano e a matéria-cultural no tempo e espaço, de forma a reconstruir os contextos sociais (Schiffer 1992, Skibo et al. 1995). Assim, segundo esta perspectiva a análise deve debruçar-se sobre a sequência de escolhas tecnológicas, quer no processo de produção, quer de uso dos artefactos. O ênfase atribuído ao conhecimento da variabilidade cultural conduziu à necessidade de identificar padrões entre a extensas bases de dados resultantes das diferentes análises metodológicas então adoptadas. Decorrente do “estudos actualistas” (entre outras, observações etnológicas), esta nova abordagem teórica e metodológica define como prioridade, através da leitura do registo arqueológico presente, a reconstrução dos processos culturais dinâmicos do passado. Assim, a variabilidade de dados provenientes da análise à cultura material deveria ser explicada segundo duas perspectivas: (1) identificação de padrões dentro e entre conjuntos e/ou sítios arqueológicos, e (2) teste das hipóteses que expliquem essa mesma variabilidade. Entre outras metodologias, a arqueologia introduziu no seu campo de trabalho o recurso a métodos de análise quantitativa e estatística. À semelhança do estudo de outros materiais arqueológicos, os dados provenientes da análise tecno-tipológica das indústrias líticas organizam-se em dois grupos: quantitativos, frequências de

distribuição das diferentes variáveis, e qualitativos, variância dos diferentes atributos tecno-tipológicos. Estes permitem, através de uma linguagem comum, transformar a base de dados num conjunto de padrões que permitam avaliar diferenças e similitudes dentro e entre base de dados, importantes para a construção de modelos para explicar o comportamento humano (Orton 1980, Shennan 2006,VanPool & Leonard 2010). A perspectiva comportamental (i.e. behavioral approach), defende que as escolhas tecnológicas são a resposta às necessidades ecológicas de uma determinada comunidade, dando origem a elementos estilísticos que caracterizam o comportamento humano desta mesma comunidade. De facto, segundo a nova corrente de pensamento na investigação arqueológica, a organização e variabilidade das indústrias líticas presente no registo arqueológico é entendida como diferentes estratégias tecnológicas em resposta às necessidades ecológicas da sociedade (Binford 1973, 1980). Desde modo, partindo do campo teórico e etnoarqueológico de Binford, os estudos das indústrias líticas procuram inferir sobre a relação entre a organização e variabilidade tecnológica e o comportamento ecológico humano, focando aspectos como as estratégias de subsistência, exploração dos recursos, gestão de matérias- primas e configuração tecno-tipológicas das indústrias líticas (e.g. Bamforth 1986, Dibble 2005, Straus 1980). Esta perspectiva é evidenciada pela construção de vários modelos que procuram explicar a organização e variabilidade das indústrias líticas (Holdaway & Douglass 2011, McCall 2012, Odell 2001), dos quais se destacam três modelos:

(1) Dicotomia entre estratégias de gestão e expeditas (i.e. curation e expediency). Segundo a perspectiva ecológica acima mencionado, o modelo de indústrias de gestão e expeditas, introduzidos por Binford (1983) para a organização tecnológica das indústrias líticas, está directamente relacionado com os dois modelos de subsistência e mobilidade identificados em comunidades de caçadores-recolectores: forrageamento, caracterizado por métodos de subsistência expedita sem métodos de armazenamento e por isso os seus utensílios são simples e multifacetados; e recolecção, caracterizado por menor mobilidade cuja subsistência esta associada a sistemas de armazenamento de produtos diversificados e por isso os seus utensílios são mais complexos e especializados (i.e. foraging e collecting) (Binford 1980, Bleed 1986).

As indústrias de gestão (i.e. stone tool curation) caracterizam-se por uma tecnologia complexa, boa qualidade de matéria-prima, na sua maioria não local, abandono e ausência de re-utilização de utensílios. As indústrias expeditas (i.e. expedient

technology) são marcadas por uma tecnologia simples com recurso a matéria-prima local, a produção e abandono de utensílios está presente no local, raro recurso ao retoque (Binford 1979, 1980).

Ainda que sobre uma perspectiva teórica a partir de observações etnográficas em comunidades de caçadores-recolectores actuais, uma das críticas mais debatidas sobre estes modelos é a sua aplicação ao registo arqueológico e à reconstrução do comportamento das comunidades humanas no passado. De facto, estes dois modelos são partilhados pelo mesmo grupo humano que, fazendo parte do mesmo sistema cultural, estão dependentes de diversos factores como a sazonalidade, disponibilidade de recursos, tipo de ocupação e organização social (Keely 1995, Marks & Freidel 1977, Sellet 1993).

(2) Dicotomia entre estratégias de flexibilidade e versatilidade (Nelson 1991). Nelson propõe dois tipos de estratégias para a organização e variabilidade das indústrias líticas: flexibilidade e versatilidade. Indústrias identificadas com uma estratégia flexível são caracterizadas por instrumentos modificados por retoque para responder a diferentes e variadas necessidades, enquanto indústrias flexíveis são caracterizadas por utensílios que, sem retoque, foram usados numa variedade de actividades.

(3) Dicotomia entre estratégia de confiança e manutenção (Bleed 1986). Estes dois modelos estão directamente relacionados com o sistema de subsistência do grupo. As indústrias de confiança designam utensílios líticos versáteis utilizados em qualquer actividade, característicos de grupos cujos recursos, actividades e padrões de ocupação são premeditados. As estratégias de manutenção são caracterizadas por suportes generalizados, de fácil configuração e por isso associadas a sistemas de elevada mobilidade sem um controlo sobre as actividades e recursos disponíveis. Do ponto de vista tecnológico são mais simples, diversificadas e flexíveis que as de confiança.

Em suma, enquanto a perspectiva tecnológica e comportamental da Nova Arqueologia entende as escolhas tecnológicas durante a sequência de produção como indicadores de um modelo evolucionário (i.e. transmissão cultural) (Schiffer 1996), a escola francesa da chaîne opératoire considera essas mesmas escolhas tecnológicas como uma entidade estável no tempo e no espaço (Pelegrin 1990). Ambas as perspectivas reconhecem que os estudos de indústrias líticas se deve focar na caracterização das escolhas tecnológicas durante o processo de produção, de forma a reconhecer padrões

de organização e variabilidade dentro e entre diferentes contextos arqueológicos (Bleed 2001, Shott 2003, Tostevin 2011, 2012).