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Capítulo 2: Enquadramento teórico-metodológico 2.1 Organização e variabilidade das indústrias líticas

2.4. Análise funcional

2.4.2. Atributos funcionais

Em suma, metodologicamente, a análise funcional centra-se, através de observação macro e microscópica, enquanto métodos complementares, na identificação e interpretação das diferentes marcas de desgaste no utensílio lítico (Anderson-Gefaud 1980, 1981, 1983, Donahue 1988, González & Ibáñez 1993, Ibáñez et al. 1993, Keely & Newcommer 1977, Moss 1983, Odell 1980, Odell & Odell-Vereecken, 1980, Plisson 1985, Unger-Hamilton 1988,). A observação macroscópica visa distinguir numa primeira instância, a dureza da matéria trabalhada, classificada em três níveis: “matéria suave” “matéria meio-suave” e “matéria dura”, ao mesmo tempo que procura identificar e seleccionar as áreas a analisar, a que lhe segue de uma segunda observação microscópica, esta de alto alcance, à área selecionada.

Segundo o método de Semenov, com o recurso a macro e micro observações as marcas de desgaste em materiais líticos são classificadas e registadas em várias categorias: (1) desgaste (esquírolamentos) e arredondamento do bordo de uso, (2) polimento (textura ou topografia da superfície) e (3) estrias (Gonzalez & Ibáñez 2003). A informação obtida desta análise reproduz informação categorizada em três grupos: tipo de movimento (e.g. cortar ou raspar), matéria trabalhada (e.g. madeira, osso, haste), tempo de uso e ângulo de trabalho (Hubercombe 1992).

(1) Assumindo que, o contacto do utensílio com matérias compostas por diferentes graus durezas, resistência e abrasão sofre alterações de diferentes dimensões e padrões de desgaste, diferentes movimentos e força exercida sobre a superfície do instrumento, têm diferentes tipos de desgaste associado, principalmente no que toca ao tipo de fractura, extensão e distribuição dos esquirolamentos (i.e. edge damage) (Hayden 1979, Odell 1981, Odell & Odell-Vereecken 1980, Tringham 1975). Nos movimentos longitudinais (i.e. corte), os esquirolamentos distribuem-se na superfície ventral e dorsal do utensílio, embora nem sempre com as mesmas proporções, produzindo um efeito denticulado. A orientação das fracturas é na sua generalidade distribuída diagonalmente, unidireccional ou bidireccional segundo o tipo de movimento (Odell 1980, Trigham et al. 1974). Em movimentos transversais (i.e. raspar) este tipo de desgaste centram-se apenas em algumas partes da superfície de contacto entre o instrumento e a matéria trabalhada. Neste caso, este tipo de desgaste

produz-se principalmente na face oposta à superfície de contacto, mais ou menos contínua e sem sobreposição, embora o movimento bidireccional possa alcançar ambas as superfícies. A orientação é perpendicular à superfície de uso e apresenta menor variabilidade na forma e dimensão que no movimento de corte (Odell 1980). Os movimentos circulares ou semicirculares, perpendiculares à matéria trabalhada (i.e. perfuração ou incisão), produzem principalmente estigmas nos ângulos formados entre as diversas faces dos pontos de contacto. Por seu lado, o arredondamento do bordo ou “edge-rounding” (Adams 1989, Hayden 1979, Risch 1995) consiste no desgaste abrasivo, causado pela perda de uma certa quantidade de matéria na superfície do instrumento. Este fenómeno conduz à formação de uma homogeneidade no relevo da superfície levando à criação de um perfil arredondado.

A posição dos esquirolamentos permite distinguir movimentos longitudinais e transversais, bem como o tipo de movimento (uni ou bidirecional) tendo em conta a posição dos mesmos (face ventral ou dorsal, ou ainda em ambas, bifacial). A sua distribuição dos esquirolamentos é organizada em três tipos: isolado, alinhado ou sobreposto. A morfologia dos bordos do negativo dos esquirolamentos é classificada segundo os tipos: semicircular, quadrangular, trapezoidal, triangular, meia-lua e irregular. Por sua vez, a terminação do negativo dos esquirolamentos são categorizados em 4 tipos: adelgaçado, reflexão, em degrau e transversal (90º) (Anexo 1).

(2) Ainda nos anos 80 do séc. XX, a organização da conferência “Technical aspect of microwear studies on stone tools” (Owen & Unrath 1986), serviu de propulsor para a investigação dos processos de formação das diferentes tipos de polimento por meio de diversos factores. De facto, diferentes modelos tem sido apresentados e discutidos para explicar o processo de formação do polimento na superfície dos utensílios, fazendo deste debate um dos mais complexos e longos da história teórico- metodológica da disciplina de análise funcional (Anderson-Gerfaud 1980, Grace 1990, Hubercome 1997, Kamminga 1979, Keely 1980, Levi-Sala 1996, Meeks 1982, Vaughan 1985, Yamada 1993). Para diversos investigadores existe uma relação directa entre o tipo de polimento na superfície da peça e a matéria trabalhada (e.g. polimento de madeira, polimento de haste, etc.). Assim, quando uma ferramenta entra em contacto com uma substância, o alcance e a distribuição dos pontos de contacto é fundamentalmente influenciado por três factores: o modo e tempo de uso do instrumento, a microtopografia original da zona afectada e a grau de

dureza/deformação da matéria trabalhada (Bradley & Clayton 1897). Por outro lado, durante o movimento o factor mais influente no desenvolvimento e extensão do polimento é o grau de deformação da matéria trabalhada. Matérias brandas deformam- se facilmente, adaptando-se à topografia da superfície, criando uma área de contacto entre os dois corpos. Por sua vez, matérias duras colocam grande resistência na penetração do objecto, cuja área de contacto entre as duas superfícies será menor e concentrará toda a pressão. Outro factor que fortemente influencia o desenvolvimento dos micro traços é o período de duração do movimento. O polimento causado pela mesma matéria mas com diferentes períodos de movimento pode conter disparidades significativas (Grace et al. 1993).

Contudo estudos experimentais demonstraram que por vezes, principalmente se a peça foi usada durante pouco tempo, o tipo de polimento formado não é distinguível entre matérias trabalhadas (Kelly, 1980, Moss 1983, Vaughan 1985, van Gjin 1990). Roger Grace contribui para este debate propondo que a formação do polimento é um processo contínuo, dependente do tempo de trabalho de matéria trabalhada. Segundo este autor, independentemente da matéria trabalhada, após um elevado período de tempo de trabalho o tipo de polimento é indistinguível, ainda que este argumento tenha sido amplamente discutido entre os investigadores (Grace et al. 1985, Grace 1989, Hubercombe 1988, Moss 1987, Newcomer & Unger-Hamilton 1986, 1988). Este debate tornou claro que é necessário uma análise que conjugue dados das diferentes marcas de desgaste observados através de lupa binocular (macros) e microscópio (micro).

Tendo em conta o debate sobre os processos de formação, a descrição e quantificação do polimento organizam-se em diferentes categorias: aspecto da superfície (trama), micro-topografia (regularidades do polimento), brilho da superfície polida, extensão longitudinal e transversal e posição. A trama da superfície polida está relacionada com o tipo de matéria trabalhada e o tempo de uso (maior ou menor extensão). Os tipos de trama são: compacta (totalidade da área está inteiramente polida), cerrada (c. 50% polida), semicerrada (<50%) e aberta (presença isolada e descontinua de áreas polidas). A regularidade da superfície polida (micro topografia) é classificada em três níveis topográficos: lisa (com presença de pequenas irregularidades), ondulada (elevações e depressões suaves) e irregular (a superfície original encontra-se pouco alterada e a área polida é muito rugosa) (Anexo 1).

(3) As estrias são sulcos lineares que se formam na superfície dos utensílios devido ao contacto destes com partículas abrasivas da matéria trabalhada, ou provocadas pelo contacto de materiais abrasivos que se encontram entre a superfície do instrumento e a própria matéria (Mansur 1982, 1983, Semenov 1964). A distribuição longitudinal e profundidade das estrias pode variar mediante a matéria trabalhada, dependendo do tamanho e dureza das partículas quando o instrumento e a matéria estão em contacto contínuo. Na mesma década é proposto uma diferente classificação das estrias, assente em três tipologias distintas: estrias salientes, estrias “cometa” e estrias de fuso. Uma terceira classificação, proposta por Patrick Vaughan no seu manual “Use-wear

analysis of flaked Stone Tools” (Vaughan 1985), organiza as estrias em três grupos:

“estrias profundas”, “estrias superficiais” e “estrias indicadoras de direcção”. A primeira categoria corresponde a um sulco contínuo e profundo sobre a superfície do instrumento; por sua vez, a estrias superficiais caracterizam uma sucessão de linhas pontuais, concentradas numa pequena mancha de pontos, sem que tenha penetrado realmente a superfície; por estrias “indicadoras de direcção” considera-se todas os sulcos presentes numa superfície linear ampla, reveladores da direcção do movimento. Raramente a interpretação funcional de um artefacto se baseia exclusivamente na análise das estrias. O modelo de formação das estrias não é suficientemente detalhado de forma a compreender inteiramente a diferença entre os diferentes estigmas, conduzindo a uma certa incerteza, sobretudo quando se trata de distinguir estrias causadas pelo uso ou por processos pós-deposicionais.

A presença de estrias é descrita e registada individualmente, tendo em conta os seguintes atributos: comprimento e largura (mícron µ), orientação, distância em relação ao bordo de uso, quantidade e tipo (fundo escuro, fundo brilhante e fundo em sulcos).

Um dos principais aspectos condicionadores na análise funcional é o estado de preservação dos materiais. Para lá dos processos de formação do sítio, os processos de registo, recolha e análise por parte dos investigadores podem provocar alterações nas superfícies da peça. Traços similares podem ocorrer durante o desenho da peça, quando a superfície desta entra em contacto com a grafite. Do mesmo modo, o contacto entre artefactos, entre a mesma ou diferentes matérias-primas, quando embalados no mesmo invólucro, podem causar alterações nas margens, e até pequenos esquirolamentos, fracturas, polimento e formação de estrias. Deste modo, é

necessário um cuidado no manuseamento, catalogação e acondicionamento dos materiais, de forma a ser possível recolher toda a informação que neles consta. Melhores condições de preservação dos materiais conduzem as melhores análises. Neste campo, face à inoperância perante aos processos tafonómicos/formação do sítio arqueológico, o tratamento do material durante a escavação, registo e processamento do material em laboratório deve ser cuidado.

Desde cedo, Sir John Evans reconhece que os agentes naturais eram capazes de produzir fracturas em tudo comparáveis com as produzidas pelo uso humano. Muitas vezes a sua observação é muito complicada, traduzindo-se em pequenas modificações facilmente geradas por outros factores: tecnologia, alterações mecânicas e antrópicas, etc. Quando, em qualquer processo de manufactura, os artefactos em sílex, entram em contacto com material trabalhado desenvolvem-se modificações de vários tipos visíveis ao nível macro e microscópio. Os artefactos arqueológicos permanecem em contacto com o solo durante muito tempo sendo objecto de acção química ou fenómenos de transporte e erosão, desenvolvendo várias alterações nos mesmos (Burroni et al. 2002, Evans & Donahue 2005, Levi Sala 1993). Estudos experimentais demonstraram que quando sujeitos a tais agentes, as alterações na superfície dos artefactos ocorrem de maneira completamente casual, deixando marcas isoladas e dispersas, com destacamentos lineares e contínuos na mesma face e às vezes em ambas as faces, produzindo resultados facilmente confundíveis com os macro-traços causados pelo processamento de matérias duras como o osso e haste (Vaughan 1985). O arredondamento da margem também pode ser causado por agentes naturais, especialmente em ambientes sedimentares com forte presença de água - fenómenos hidráulicos. Contudo, neste caso a distribuição e a descontinuidade do arredondamento permite distinguir traços naturais de traços de uso antrópico (Vaughan 1985). Todas as alterações químicas que podem afectar a superfície, são denominadas de patina, termo que geralmente inclui uma ampla série de modificações químicas de vária natureza que impedem uma leitura funcional do instrumento.

A “colored patina” é principalmente proveniente do depósito de vários minerais presentes no solo ou água, ou na combinação de moléculas de ferro com outras substâncias presentes nas rochas, resultando na oxidação da superfície. A “gloss

patina” (Anderson-Gefaurd etal. 1998) que não ocorre apenas pelo uso intencional,

pode formar-se em contexto deposicional, é causada pela deposição de líquidos e de plantas na superfície do instrumento. Outro tipo de alteração é denominado de brilho

ou “miscellaneous sheen” (Gijn 1990). Este padrão não retrata uma patina real, mas um efeito luminoso e cintilante ao longo de toda a superfície. É reconhecível em qualquer direcção ou topografia e cobre toda a superfície do instrumento, não apenas as suas margens. Este feito pode ser causado por vários agentes naturais e mecânicos. Segundo diversos investigadores, este fenómeno pode ser causado pela dissolução de uma parte da rocha e da consequente produção de sílica que deposita nas depressões da superfície (Longo et al. 2001).

A superfície dos utensílios também pode ser afectada por modificações provenientes durante a fase de escavação, estudo e catalogação dos materiais. O contacto entre a superfície da rocha e elementos metálicos, como paquímetros ou outros instrumentos, pode provocar padrões particulares de microtraços, denominados “metal polish” – polimento metálico (Gijn 1990), os quais, mesmo após o uso de ácidos, geralmente perturbam a leitura do polimento presente. Felizmente, esses traços estão geralmente localizados e limitados ao ponto de contacto entre os dois corpos, sendo assim facilmente distinguidos.

O processo de limpeza do material experimental ou arqueológico é um passo imprescindível para uma clara observação das alterações físicas presentes na peça. Após a observação macroscópica à lupa binócular, a primeira etapa desta fase consiste na limpeza da peça, experimental ou arqueológica, com sabão e água. Se necessário a próxima etapa passa pela limpeza, quando presente, das áreas concrecionadas na superfície da peça, mediante a emersão da mesma numa solução de água com 5 a 10%, num período nunca superior a 1 ou 2 minutos, de ácido clorídrico. Esta prática, no caso dos exemplares arqueológicos, é problemática uma vez que podem eliminar da superfície os micro-vestígios da matéria trabalhada. Por fim, o recurso a um cotonete embebido em petróleo, já quando a peça se encontra no microscópico, elimina as gorduras provenientes das mãos do observador.