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Capítulo 1: Enquadramento cronológico 1.1 A origem do Gravetense

1.5. O Gravetense na Península Ibérica

1.5.1. Norte Peninsular: das Astúrias ao País Basco

Os primeiros estudos sobre o Perigordiense/Gravetense na Península Ibérica tiveram lugar ainda nos finais do séc. XIX e inícios do séc. XX (Breuil 1912, Siret 1891). Com o objectivo de reconhecer e organizar a sequência pré-histórica da Península Ibérica, Siret (1891) e Breuil (1907, 1908, 1912), em consequência dos trabalhos no sítio arqueológico da Cueva del Castillo, adoptaram a sequência crono-estratigráfica e cultural do sudoeste francês (Peyrony 1933, 1936), denominando as indústrias caracterizadas pela tecnologia de dorso no Paleolítico Superior inicial de Perigordense (Almagro 1956).

Contudo, desde muito cedo, se enalteceram as diferenças regionais das indústrias líticas do Paleolítico Superior inicial no sul mediterrânico peninsular. Segundo Obermaier (1925), o particularismo ibérico era o resultado de um fenómeno de aculturação entre o Aurinhacense local e a influência norte africana da cultura Capsense (Heleno 1944). Para lá da diferença das indústrias da Península Ibérica em relação à sequência do Sudoeste Francês, Obermaier foi o primeiro investigador a reconhecer uma diferença regional dentro da própria península, propondo uma divisão marcada pela existência de dois fácies tecnológicos: o Norte, composto pela zona cantábrica, e o sul mediterrânico da Península Ibérica.

A resposta de Obermaier foi corroborada pelos trabalhos levados a cabo por Pericot (1963) e Jordá (1954) no início da segunda metade do séc. XX, revelando que as características identificadas para as indústrias líticas para o Perigordense por Peyrony na primeira metade do séc. XX, não estão presentes na sua totalidade nas indústrias peninsulares. Os novos dados deixavam claro que o Perigordense se tratava de um fácies tecnológico único, de aplicação regional ao sudoeste francês, e deste modo, sendo mais correcto a adopção da terminologia “Gravetense”, já anteriormente avançada por Garrod na primeira metade do século XX (Fortea & Jordá 1976). Na esteira da tipologia descritiva que caracterizava os estudos de indústrias líticas no sudoeste francês, como base na tipologia lítica de Sonneville-Bordes e Perrot, as

últimas décadas do séc. XX, na Península Ibérica, ficaram marcadas pelo estudo e revisão das indústrias líticas de sítios arqueológicos com largas sequências estratigráficas. Destes trabalhos resultou novamente a ideia de uma dicotomia entre o Norte e Sul da Península, apontando para uma distribuição das indústrias Gravetenses em três grandes áreas geográficas distintas: Norte, Sul (corredor mediterrânico), e fachada atlântica (Fullola et al. 2007, Peña 2009).

Estes trabalhos que resultaram em grande parte em teses de doutoramento, visavam essencialmente a construção da sequência e organização do Paleolítico Superior peninsular (Bernaldo de Quirós 1982, Cacho 1980, 1982, Soler 1986). Com base na tipologia descritiva, os fácies perigordienses foram reconhecidos na sequência Gravetense do norte penínsular, na região ocidental Cantábrica e oriental no País Basco (González Echegaray 1973, 1980). Para o País Basco a primeira proposta para a organização as indústrias líticas é realizada por McCollough (1971) que, a partir das sequências gravetenses de sítios arqueológicos como Kurtzia, Santimamiñe, Atxurra entre outros, reconheceu a existência do fácies Noaillense definido na sequência de Abri Pataud e na zona pirenaica (David 1985). Em resultado desta nova vaga de estudos, Bernaldo de Quirós (1982) procurou sintetizar e organizar os dados para as sequências do Paleolítico Superior no território norte peninsular, incluindo das províncias de Astúrias, Cantábria e País Basco. Este trabalho, ao mesmo tempo que enaltece a importância da ocupação Aurinhacense na região, revela que os padrões tecno-tipológicos associados ao fácies perigordense não se encontrava presentes entre as indústrias líticas da região cantábrica. A existência de continuidade dos padrões tecno-culturais na transição Aurinhacense-Gravetense na região, apontava para um desenvolvimento interno. Assim, o Gravetense nesta região caracterizava-se por um “grupo cultural” com origem nas populações Aurinhacenses locais, ainda que o autor tenha tradicionalmente adoptado o modelo perigordense do sudoeste peninsular que, tal como enaltece Peña (2009, 2011), defende o Gravetense como uma nova vaga que substitui o Aurinhacense local. A investigação no norte peninsular foi novamente retomada com o estudo das sequências do Paleolítico Superior na região Basca, com especial atenção aos sítios arqueológicos de Amalda, Lezetxiki e Bolinkoba (Arrizabalaga 1995). Estes dados, ao contrário do modelo defendido por Bernaldo de Quirós, enalteciam a importância do Gravetense na região, o qual, com base no estudo tipológico descritivo, foi organizado em três fases tecno-culturais: (1) a fase mais antiga de buris de tipo Noailles, datada de c. 27 ka BP, (2) a fase intermédia c.25 ka

BP sem a presença de buris Noailles, e um (3) fácies mais tardio c. 23-22 ka BP associado à presença de pontas de La Font-Robert (Arrizabalaga 1995, Barandiarán et al. 1996, Peña 2009, 2011). Destas três fases a que apresenta maior controvérsia é a fase tardia cuja caracterização exclusivamente tipológica com base na presença de armaduras La Font-Robert, não é até ao momento clara. Por um lado, no caso dos sítios arqueológicos de Cueva Morín e El Castillo, a existência deste fácies é reconhecida pela presença do seu fóssil director em colecções antigas da primeira metade do séc. XX, cuja contextualização estratigráfica está comprometida (Cabrera 1984), por outro, a presença destes projecteis em contextos remexidos, casos de la Viña (nível VII e VIII), Pendo (Nível V) e Castillo (Nível 12), bem como em horizontes estratigráficos mais antigos que o fácies Noaillense, revelam uma distribuição inversamente à organização tradicional da sequência francesa.

Em suma, estes novos trabalhos têm contribuído para uma nova perspectiva sobre a organização e variabilidade das indústrias gravetenses que se desenvolveram entre c. 30-24 ka BP. No País Basco, as ocupações de cronologia mais antiga para o Gravetense nos sítios arqueológicos de Bolinkoba e Amalda caracterizam-se pela abundância de buris de Noailles (Altuna et al. 1990, Arrizabalaga 1994). Na região pirenaica, apesar da fase mais antiga do Gravetense de buris Noailles, presente nos sítios arqueológicos de Gragas, Tarté, La Tuto de Camalhot, Elène e Carene-3 (Foucher & San Juan-Foucher 2008), também se documenta a presença de sítios com ocupação gravetenses em que esta tipologia não está presente, como são os casos de Rascaño, Ilbam de Zatoya e Mirón (Barandiarám & Cava 2008, Rasilla & Strauss 2004). A penecontemporaneidade entre níveis com buris Noailles e sem estes durante a fase inicial do Gravetense, ao mesmo tempo que questiona o modelo de Quirós indica a coexistência de dois fácies tecnológicos e/ou funcionais no norte da Península Ibérica (Arrizabalaga 1994, 2007-2008, Barandiarán et al. 2007). Parece evidente que, segundo os novos dados acima apontados (i.e. novos sítios arqueológicos, novos estudos tecnológicos das indústrias líticas e novas datação), a organização do Gravetense do norte da Península Ibérica não segue a sequência do fácies perigordiense francês (Arrizabalaga 2000, 2007-2008, Barandiarán & Cava 2008, Fortea 1990, Maíllo 2002, 2005, Rasilla& Strauss 2004), ficando patente a necessidade de uma investigação focada na interpretação sobre a variabilidade diacrónica, sequência evolutiva e sincrónica, fácies regionais e carácter funcional destas indústrias (Peña 2009).