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Capítulo 2: Enquadramento teórico-metodológico 2.1 Organização e variabilidade das indústrias líticas

2.4. Análise funcional

2.4.1. Enquadramento teórico e metodológico

Embora seja razoável assumir a utilização de instrumentos produzidos em materiais perecíveis (e.g. Bar-Yosef et al. 2012, Thieme 1997), os instrumentos líticos e ósseos preservados no registo arqueológico ocupam um lugar de destaque no conhecimento sobre o comportamento humano ao longo do tempo. Despertando, desde sempre, questões sobre a sua tecnologia e funcionalidade, as primeiras investigações sistemáticas sobre a tecnologia e funcionalidade durante a pré-história foram introduzidas, ainda nos finais do séc. XIX inícios do XX, pelos trabalhos de Sir John Evans (1897) e John Spurrell. Os seus trabalhos debruçaram-se essencialmente sobre a construção de uma metodologia criteriosa de forma a compreender os processos de formação de vestígios e fracturas de uso nos instrumentos líticos. Estes trabalhos pioneiros têm repercussão, duas décadas depois, na investigação de Cecil Curvew (1930) que, através da sua obra Prehistoric flint sickles, introduz o uso do estéreomicroscópio (i.e. lupa binócular) como método essencial para a identificação e registo das marcas de uso nas peças líticas em contextos arqueológicos. A partir os anos 30, seguindo o trabalho de Curvew, Sergei Semenov, estabelece uma ampla metodologia de análise e registo para marcas de desgaste presentes nos utensílios líticos e ósseos de idade pré-histórica, procurando aferir sobre a sua funcionalidade e processos tecnológicos. A investigação de Semenov nasce no seio da arqueologia soviética de então que, de fundamentação teórica e metodológica marxista (Childe 1936, 1942, Phillips 1988, Trigger 2006), defendia o conhecimento dos processos tecnológicos como uma etapa fundamental para uma aproximação à organização económica e social das comunidades do passado (Clemente et al. 2002, Ibáñez et al. 2002, Longo et al. 2005, Grace 1996, Stafford & Stafford 1983). Emergente de uma conjuntura marxista, onde parece não existir distinção entre a história de produção de instrumentos (força productivas) e a história da produção per si (relações de produção), o objectivo primordial dos investigadores soviéticos sempre foi a reconstrução do contexto material, do qual se desenvolvem e criaram as relações entre o indivíduo e as classes de indivíduos na sociedade (Phillips 1988, Trigger 2006).

Deste modo, a investigação de Semenov centra-se na natureza e uso dos primeiros instrumentos, traçando uma história da tecnologia humana desde o seu início. O reconhecimento das tarefas realizadas pelos utensílios em sílex ou osso permitiria apurar algumas das actividades quotidianas dos grupos humanos, peça fundamental na reconstrução do campus sócio-económico destas populações.

Durante a sua tese de Doutoramento “Pervobitnoya Tekhnika” (Semenov 1957) (i.e.Tecnologia Pré-histórica), Semenov reúne uma investigação de cerca de duas décadas focada no aprofundamento metodológico de uma nova disciplina centrada na análise e registo das marcas de desgaste visíveis através da análise macro e microscópica de utensílios líticos e ósseos.

Para Semenov a análise funcional não deve apenas concentrar as suas atenções na simples questão sobre a utilização ou não de um determinado instrumento no passado. Esta metodologia deve também procurar perceber a tecnologia usada para realizar determinada tarefa, tendo como premissa fundamental que para diferentes tarefas são usados diferentes processo tecnológicos. Para tal, a investigação deve ter também como uma das suas principais base metodológica a prática experimental. A replicação experimental é imprescindível para a construção de um método de correspondência directa entre a diversidade de marcas de desgaste e matéria trabalhada (i.e. colecção de referência), pois esta deve auxiliar a análise macro e microscópica de forma a permitir não só aferir sobre a utilização ou não do utensílio, mas também a matéria trabalhada, movimento, etc. Na perspectiva marxista do trabalho de Semenov, era importante o conhecimento não só da matéria trabalhada, mas também do movimento vinculado ao processo de transformação dessa mesma matéria.

Paralelamente à escola soviética, na esteira deste espírito interdisciplinar da Nova Arqueologia, com a tradução para inglês da obra de Semenov (1960), os trabalhos de análise funcional surgem como uma nova e promissora disciplina. Este novo campo de investigação, no qual o arqueólogo desempenha o papel de “cientista social”, a maior preocupação incide sobre o comportamento humano e organização social, através da análise dos artefactos utilizados nas actividades quotidianas das comunidades humanas do passado (Redman 1973). Neste sentido, atribui-se maior ênfase ao uso, enquanto resultado mínimo de um comportamento directo na realização de uma tarefa (Schiffer 1975), tratando-se de uma resposta a um estimulo ambiental e cultural (Grace 1996, Hayden&Kamminga 1979). A reunião científica “Lithic Use- Wear analysis” em 1977 (Columbia, EUA), espelha o início de uma nova disciplina

marcada pelo debate de questões teóricas e principalmente metodológicas, tais como: métodos de microscopia, terminologia, protocolos experimentais, marcas de uso, etc. (Hayden 1979). Durante década de 80 e inícios dos 90, diversos encontros científicos sobre análise funcional espelhavam a fase de amadurecimento da disciplina, marcados não apenas por debates metodológicos e teóricos, mas também pela integração dos estudos funcionais em projectos de investigação mais amplos, visando, através da aplicação desta nova disciplina, responder a questões concretas sobre o comportamento humano (Anderson-Gefaurd et al. 1993, Beyries 1988, Cauvin 1983, Graslund et al. 1990, Stordeur 1987).

Os termos anglo-saxónicos “functiona analysis” ou “use-wear studies”, embora tradicionalmente utilizados para designar estudos funcionais, ocupam um lugar recente na bibliografia. O termo traceologia, ainda hoje comummente utilizada entre a comunidade especialista, surge da escola marxista de Semenov que, atribuindo um grande ênfase aos “traços de uso”, apelava ao cariz mecânico responsável pela formação das alterações nos utensílios, enquanto principal indicador da função produzida na utilização do instrumento (Semenov 1964). Proveniente da corrente de pensamento antropológica da Nova Arqueologia, o termo “use-wear” (desgaste de uso) é introduzido durante o encontro “Conference on lithic use-wear analysis” (Vancouver 1977) que, no seio da “behaviour archaeology” (Schiffer 1976), define como objectivo principal o conhecimento da relação entre o comportamento humano e a cultura material. Actualmente a análise funcional engloba no seu método de análise objectos de estudo mais amplos e diversificados (e.g. análise de resíduos), resultando numa disciplina mais abrangente (Fullagar & Matherson 2013). Esta perspectiva foi recentemente alvo de debate no encontro científico Use-Wear 2012 (Faro, Portugal) no qual, através da constituição de investigadores em análise funcional, se instituiu o termo Use-Wear and residue analysis” (dando origem à constituição de uma nova associação a AWRANA (Association of Archaeological Wear and Residue Analysts) como mais adequado à actual investigação funcional que se estende a aspectos como: marcas de uso, modificações e fracturas em materiais líticos e ósseos (e.g. dentes, haste, osso), metais e outros materiais arqueológicos. Esta abordagem é seguida e intensificada durante os anos 90 e início do século XXI, patente na realização de diversos encontros científicos, como por exemplo a edição dedicada a Semenov em 2000 “The recente archaeological approaches to the Use-

Análise funcional de Espanha e Portugal (Clemente et al. 2002), o encontro comemorativos dos 40 anos da obra de Semenov “Prehistoric technology. 40 years

later: Function analysis and the Russian Legacy” (Verona, Itália) (Longo et al. 2005)

e mai srecentemente, o encontro“International Conference on Use-Wear analysis” (Faro, Portugal) (Marreiros et al. in press b).

Respondendo a questões fundamentais sobre a funcionalidade dos instrumentos líticos, a disciplina de análise funcional rapidamente se afirmou dentro da investigação arqueológica (Keely 1974, Odell 1975, Tringham et al. 1974). Contudo, os dados provenientes dos primeiros trabalhos revelaram uma fase inicial marcada pela enorme dificuldade em relacionar as diferentes marcas de uso com a actividade responsável pela sua formação (Odell & Odell-Vereecken 1980). Na sua maioria, apenas era possível distinguir o grau de desenvolvimento e distribuição do desgaste no bordo activo dos instrumentos líticos, possibilitando meramente uma aproximação à dureza da matéria trabalhada (Keely & Newcomer 1977). Com base nos resultados desta fase inicial da disciplina, o trabalho de Semenov foi considerado inválido, uma vez que se traduzia num método impossível de reproduzir e que não permitia com clareza identificar a matéria trabalhada. Contudo uma análise mais detalhada da metodologia empregue nos primeiros trabalhos de análise funcional deixam claro que o grande obstáculo enfrentado por estes investigadores se deveu a dois principais motivos: (1) ausência de um programa experimental que dotasse os investigadores de uma colecção de referência e (2) recurso apenas a lupa binocular, que apenas permitia uma análise macroscópica.

De facto, a metodologia de análise funcional deve passar pela observação e interpretação de macro e micro evidências de uso através do recurso a dois tipos de focagem: lupa binocular (macro) e microscópio (micro). Esta dicotomia metodológica designada de high and low approach (Grace 1996) defendia o imprescindível recurso, complementar e não alternativo, a estes dois métodos (Keely 1987, Odell 2001). A análise microscópica permite um estudo mais detalhado da área anteriormente selecionada, bem como a identificação e documentação de marcas de uso não evidentes macroscopicamente. Esta dicotomia ficou também marcada pela análise das diferentes marcas de uso microscópicas. Entre os diferentes estigmas, diversos investigadores dedicaram o seu trabalho ao desenvolvimento de um novo método de classificação e descrição do polimento através do registo quantitativo das diferentes marcas de uso formadas durante o trabalho de diferentes matérias (Akoshima 1987,

Bietti 1996, Bradley & Clayton 1987, Dries 1994, Grace 1996, Yamada 1986, Yamada & Sawada 1993).