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A nova legislação de combate à lepra: as “altas” e o tratamento

Com a inserção das sulfonas no combate à lepra, a alta do leprosário, ou “transferência para dispensário”, como foi definida, tornou-se algo comum no ano de 1946, após a realização da II Conferência Pan-Americana de Lepra, realizada no Rio de Janeiro. Nesta Conferência foi aprovada a nova classificação da lepra, dividida em lepromatosa (contagiante), tuberculóide (não-contagiante) e tipo indeterminado ou incaracterístico (que poderia evoluir para um dos outros dois tipos). Essa nova classificação, juntamente com as melhoras clínicas obtidas pelo uso das sulfas foi responsável pela liberação de vários pacientes do isolamento, assim como, pelo fim de novos isolamentos (para os doentes que possuíam os tipos tuberculóide e indeterminado). O isolamento dos doentes de lepra tenderia a ser seletivo, ou seja, somente os tipos contagiantes, ou os tipos indeterminados de baciloscopia inicial positiva (o que indicava uma possível manifestação do tipo lepromatoso), deveriam seguir para o isolamento. Porém, por questões sociais, econômicas e até mesmo estéticas, o isolamento poderia ser determinado.

Diante de uma nova realidade no combate à doença, médicos e dirigentes do Serviço Nacional de Lepra, elaboraram um anteprojeto estabelecendo os critérios para a concessão de altas aos doentes de lepra. Tais critérios serviram para uniformizar essas concessões e tornaram-se a base para a nova legislação e regulamentação dos serviços de combate à lepra a partir daí.

Na ata de reunião convocada pelo Serviço Nacional de Lepra para a elaboração de Instruções reguladoras da concessão de altas aos doentes de lepra, estavam presentes, além do então diretor do SNL, o Dr. Ernani Agrícola, representantes do Departamento de Profilaxia da Lepra de São Paulo e da Sociedade Paulista de Leprologia – os doutores Nelson de Souza Campos, Lauro de Souza Lima e Abraão Rotberg; representantes da Divisão de Lepra de Minas Gerais e da Sociedade Mineira de Leprologia – os doutores Paulo Cerqueira R. Pereira e

Abraão Salomão; e representantes do SNL – os doutores João Baptista Risi, Joir Gonçalves da Fonte e Luiz Campo Mello.143

De acordo com as Instruções reguladoras da concessão de altas aos doentes de lepra, aprovada no dia 28 de fevereiro de 1947, em seu Art. 1º, considerava-se “alta” a “suspensão, parcial ou total, temporária ou definitiva, das exigências prescritas pelos Regulamentos de Profilaxia da Lepra, em vigor”.144 Desta forma, estava claro que a “alta” concedida ao doente em isolamento ou em tratamento no dispensário, no caso dos tipos tuberculóide ou indeterminado, não representavam a cura definitiva da doença.

De acordo com as Instruções reguladoras, a “alta” poderia ser de três tipos: 1) Transferência para dispensário, concedida aos doentes em isolamento nosocomial ou domiciliar, representava a suspensão da segregação compulsória do doente, ficando o mesmo submetido às restrições impostas pelos regulamentos de profilaxia da lepra, que serão apresentadas mais a frente; 2) Alta provisória, destinada aos doentes em tratamento nos dispensários, sendo atenuadas as restrições impostas pelos regulamentos de profilaxia da lepra; e 3) Alta definitiva, concedida aos doentes de alta provisória, fazendo-se cessar as restrições impostas pelos regulamentos de profilaxia da lepra.

Observe-se que os três tipos de alta deveriam ser observados pelos pacientes que estavam em isolamento. A saída do leprosário não representava o desligamento definitivo do doente dos serviços de combate à lepra. Representava uma nova etapa na vida desse paciente, que sairia da vigilância do leprosário, para a vigilância do dispensário de lepra. A “transferência para dispensário” obedeceria a critérios diferentes dependendo da forma da doença de cada paciente:

Art. 4º - Os casos lepromatosos e os incaracterísticos com baciloscopia inicial positiva só, poderão ser candidatos à transferência para dispensário após 6 exames mensais negativos, consecutivos, de esfregaços de material da mucosa nasal e da pele.

Art. 5º - Para os casos lepromatosos a transferência far-se-á depois de mais 12 exames mensais negativos, consecutivos, de esfregaços de material da mucosa nasal e da pele, com regressão das lesões e conversão da estrutura lepromatosa inicial em estrutura inflamatória crônica inespecífica ou lepromatosa em regressão.

[...]

143

Portaria nº 3 de 28 de fevereiro de 1947. In: Revista Brasileira de Leprologia. Serviço Nacional de Lepra. Vol. 15, nº 1, 1947. pp. 39-44.

144

Art. 7º - Para os casos incaracterísticos, com baciloscopia inicial positiva, a transferência para dispensário far-se-á depois de mais de 6 exames mensais negativos, consecutivos, de esfregaços de material da mucosa nasal, e da pele, si mantida a estrutura inflamatória crônica inespecífica, que individua essa forma.

Art. 8º - Para os casos incaracterísticos, com baciloscopia inicial negativa, e os tuberculóides, internados por exigências clínicas, econômicas, sociais ou estéticas, a transferência para dispensário ficará subordinada à cessação das condições que determinaram a internação independentemente de sua apresentação à Comissão de Alta.145

Segundo as Instruções reguladoras, em caso de um dos exames mensais apresentarem baciloscopia positiva, o processo de avaliação seria reiniciado, ou seja, se o paciente possuísse a forma lepromatosa, poderia levar mais que 18 meses (tempo de exames determinado pelos artigos 4º e 5º das Instruções Reguladoras) para ser considerado apto à “transferência para dispensário”. Após a negatividade consecutiva durante os 18 meses de exames e da verificação de melhora clínica nos casos lepromatosos e incaracterístico de baciloscopia inicial positiva, os candidatos à transferência seriam submetidos a novos exames, compreendendo escarificação da mucosa das fossas nasais por médico especialista, além de biópsia de uma ou mais lesões a critério médico. Após esses exames, uma junta médica do leprosário no qual o paciente estava internado deveria realizar uma última revisão do candidato à “transferência para dispensário”.146

O laudo do candidato à transferência, após a realização das etapas acima, deveria ser apresentado à Comissão de Alta constando as seguintes informações:

A – Como elementos obrigatórios:

1) Exame clínico inicial e forma da moléstia na ocasião do isolamento; 2) Síntese das revisões clínicas trimestrais;

3) Estado clínico e forma da moléstia na ocasião da transferência;

4) Resultados dos exames baciloscópicos, inclusive os das escarificações da mucosa nasal;

5) Resultados das biópsias;

6) Condições sociais do candidato, localização da sua residência fora do leprosário e sua capacidade para o trabalho.

B – Como elementos subsidiários: 1) Resultados da lepromino-reação; 2) Os diversos tratamentos feitos.147

145

Instruções reguladoras da concessão de altas aos doentes de lepra. Portaria nº 3 de 28 de fevereiro de 1947. In: Revista Brasileira de Leprologia. Vol. nº 1947. pp. 40-41

146

Idem. Ibidem. p.41

147

Este laudo serviria de guia para a continuidade do tratamento nos dispensários de lepra. É interessante observar o item 6 dos elementos obrigatórios, referente às condições sociais do candidato. De acordo com o referido item, o paciente deveria informar se teria uma residência fixa após a sua transferência, para a garantia de que o mesmo fosse encontrado caso não retornasse ao dispensário nos dias solicitados. O caso de Jair, narrado no início deste capítulo é emblemático: ele passa pela Comissão de Alta, informa ao diretor do Hospital da Mirueira que iria residir com seu irmão, o que garantiria a ela a transferência para dispensário. A recusa de José em receber Jair, determina a permanência deste no Hospital. Apesar de não contagiante, de apresentar melhora clínica, permaneceria em isolamento, agora forçado pelo estigma e pelas sequelas físicas da doença (que certamente o impossibilitariam de conseguir um emprego e garantir seu sustento) e não mais, apenas, pelos regulamentos do serviço de lepra.

No caso da Alta Provisória, concedida aos doentes dos dispensários, seria obtida após “24 meses consecutivos de negatividade baciloscópica e estacionamento ou involução das manifestações cutâneas”, além de revisões clínicas trimestrais e exames laboratoriais de material colhido por técnicos dos serviços oficiais.148

A Alta Definitiva seria concedida aos casos de Alta Provisória após 06 anos de negatividade baciloscópica e inexistência de lesões clínicas, exceto as de caráter residual.149 Com esses resultados satisfatórios, o paciente receberia um atestado de alta, com foto e dados necessários a identificação do mesmo. Porém, a alta definitiva não impedia que o paciente pudesse ser fichado novamente como doente de lepra, em caso de reincidência da doença. O paciente, candidato à alta, levaria, segundo as Instruções Reguladoras, no mínimo, nove anos e seis meses, caso os exames fossem satisfatórios, para receber o atestado de alta definitiva.

Em 02 de janeiro de 1950, foi sancionada a lei federal nº 1.045, que regulamentava a concessão de alta aos doentes de lepra. Tal lei seguia as indicações das instruções reguladoras de 1947, reafirmando os dois tipos de alta: a provisória, concedida aos doentes em tratamento nos dispensários de lepra; e a definitiva, concedida aos de alta provisória. Aos doentes isolados em leprosários,

148

Instruções reguladoras da concessão de altas aos doentes de lepra. Op. Cit. p. 43

149

ficou também mantida a “transferência para dispensário”, onde deveriam continuar sob tratamento e vigilância.150

A lei nº 1.045 regulamentou a formação das Comissões de Alta, responsáveis pela concessão da transferência ou alta para os doentes. Estas deveriam, segundo a lei nº 1.045, ser compostas de três leprólogos, designados pela autoridade sanitária competente. As reuniões das Comissões estavam limitadas a até 03 encontros anuais, devendo os médicos que assistiam os doentes encaminhar para as mesmas a lista de candidatos à transferência ou alta, no prazo de 30 dias antes de cada reunião.

Em 8 de março do mesmo ano, foi baixada a Portaria nº 11, do Serviço Nacional de Lepra, regulamentando a lei nº 1.045. Um diferencial desta regulamentação em relação às Instruções Reguladoras de 1947, diz respeito ao tempo de espera para obtenção da alta definitiva. Antes, em 1947, o paciente com alta provisória, deveria esperar por 06 anos para receber a alta definitiva e não mais precisar ficar sob os serviços de vigilância. A partir da portaria nº 11, de 1950, esse tempo foi reduzido para 03 anos de observação regular, de ausência de lesões clínicas e permanente negatividade bacterioscópica. No caso de positividade bacterioscópica de algum dos exames, este deveria ser repetido. Confirmada a positividade, o paciente não receberia a alta definitiva e o tempo de 03 anos seria reiniciado após o retorno à negatividade.151

Outro ponto que merece destaque é o Artigo 4º da Portaria, que determina quais os doentes internados em leprosários que não deveriam se candidatar à transferência para dispensário:

Art. 4º - Não deverão ser incluídos na relação de candidatos a “transferência para dispensários” os doentes internados em leprosários que apresentarem as seguintes condições:

a) Impossibilidade de obter recursos necessários à própria subsistência e de ser submetido à vigilância regular pelo órgão competente.

b) Alienação mental.

c) Privação da liberdade por detenção ou cumprimento de sentença judiciária.

d) Presença de estigmas impressionantes de lepra.152

150

Lei nº 1.045, de 02 de janeiro de 1950. In: Revista Brasileira de Leprologia. Vol. 18, nº 1, 1950. pp. 52-56.

151

Portaria nº 11, de 8 de março de 1950. In: Revista Brasileira de Leprologia. Vol. 18, nº 1, 1950. pp. 53-56.

152

Excetuando-se os casos das alíneas b e c do 4º artigo, as demais impediam que o paciente em condições clínicas suficientes recebesse a transferência para o dispensário, ou seja, mesmo que todos os exames apresentassem baciloscopia negativa – que indicava a não transmissão da doença – estava fadado ao isolamento, a viver dentro do leprosário. A “presença de estigmas impressionantes” seria um empecilho a um convívio social mais amplo. O doente sofreria com outra forma de exclusão, a derivada das sequelas da doença, que superaria, em muitos casos, a própria doença. Quanto à alínea a, que impedia a transferência aos doentes que não tivessem condições econômicas de se manterem ou que não pudessem ser mantidos sob vigilância regular, representava também outro impedimento aos doentes internados ou já matriculados em dispensários, pois, em Pernambuco, como já foi discutido no capítulo anterior, existiam apenas cinco dispensários de lepra, quatro localizados em Recife e um em Olinda. Não havia dispensários específicos para a lepra nos demais municípios do estado nem no interior. Dessa forma, o paciente seria obrigado a permanecer próximo a um dispensário, pois a distância poderia ser considerado um impedimento à vigilância pelo Serviço de Lepra.

Jair, apesar de possuir pequenas sequelas, ser portador da forma não contagiante da doença e ter obtido a “transferência para dispensário”, não conseguiu sair do Hospital da Mirueira, pois seu irmão não aceitou acomodá-lo em sua casa. Enquadrou-se na alínea a. Assim como outros, teve que seguir com o tratamento para obtenção da “alta provisória” e depois da “alta definitiva” dentro dos muros do leprosário. Jair não chegou a sair do Hospital da Mirueira, abandonou o tratamento, resolvera não seguir as orientações médicas quanto a sua dieta alimentar, o que o levou a morte. Mas, quantos outros seguiram com o tratamento, obtiveram a alta definitiva e não saíram do leprosário? Até que ponto os “estigmas impressionantes” manteriam esses pacientes, até curados, fora de um convívio social mais amplo? E quais seriam esses “estigmas impressionantes”? O regulamento não os explicita, deixando a cargo do médico responsável pelo tratamento e vigilância dos doentes decidir quem teria ou não condições estéticas de se candidatar à transferência.

O que fazer com esses pacientes? Trancafiá-los no leprosário até a sua morte e só liberar os que não chocavam a sociedade sadia? Se antes a justificativa para o isolamento era o fato do doente ser um foco transmissor da doença, agora, o isolamento se justificava por questões puramente estéticas. Não bastava curar os

doentes, liberá-los do isolamento quando a sociedade sadia os repelia, quando ainda existiam muitas dúvidas em relação à lepra, muitos mitos, afinal de contas, a liberação do paciente para tratamento em dispensário era muito recente, em 1950, apenas 04 anos após a apresentação das sulfonas como nova medida profilática. Os médicos ainda não tinham percebido que a cura clínica da doença não representava o fim da lepra. A aposta na extinção do estigma com a cura e o fim do isolamento será dada como perdida somente na em meados da década de 1960.

Se por um lado, as “transferências para dispensários” representavam um avanço na profilaxia da lepra e a tentativa de diminuição da lotação dos leprosários, por outro, elas colocaram em evidência os problemas dos dispensários de lepra e exigiu novos esforços no controle da endemia.