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Mas o isolamento dos doentes de lepra também foi defendido por médicos e pacientes, cada um com seus motivos específicos. Essa defesa, não era necessariamente, uma tentativa de retorno ao isolamento de todos os leprosos, independente do tipo de lepra do qual era portador. Mas era uma defesa do isolamento enquanto elemento importante no combate à doença desde o início do século XX, embora alguns médicos ainda defendessem o isolamento indiscriminado, como veremos a seguir.

Uma das defesas feitas ao isolamento dos doentes baseava-se na crítica às sulfonas. Uma vez que esses novos medicamentos não apresentavam a cura imediata da doença, muitos médicos, especialmente os que defendiam a terapêutica com óleos chalmúgricos, passaram a questionar a sua eficácia. Se não havia cura, como liberar esses pacientes do isolamento para realizar tratamento dispensarial? A Revista Brasileira de Leprologia, no ano de 1949, traz em seu editorial, indícios desse questionamento.

Os editores chamam a atenção para o fato de muitos médicos, e especialmente um, o qual eles não citam o nome, “já encanecido na especialidade”, estaria desacreditando publicamente o uso das sulfonas e defendendo a antiga terapêutica com os óleos chalmúgricos, relegado a segundo plano no V Congresso Internacional de Lepra:

Essa medicação foi relegada a plano absolutamente secundário, após os notáveis resultados obtidos com as sulfonas; é natural que médicos aferrados à rotina dos antigos processos de tratamento, não queiram aceitar os fatos e os resultados da nova éra terapêutica. E dentre êsses, um, já encanecido na especialidade, e talvez por isso, tendo a mente fechada aos progressos da moderna leprologia, vem se destacando nas tentativas de desmoralização dos novos medicamentos, desmerecendo pela obsessão e falta de critério, os numerosos títulos que conquistou urbis et orbis.134

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Este trecho do editorial demonstra um conflito entre a classe médica que não estava restrito apenas à terapêutica da doença. Não era uma simples questão de achar que um medicamento seria mais eficaz que o outro, ao se defender os óleos chalmúgricos e criticar as sulfonas. Esse era um discurso de defesa de espaço, defesa de um poder e um saber sobre a lepra que estavam ameaçados diante da possibilidade de cura da doença, ou da redução do número de leprosários do país.Ora, se lembrarmos Laurie Garrett, em relação ao grande otimismo sanitário que previa a extinção das doenças bacterianas até o século XXI, o que seriam dos especialistas se, de fato, isto ocorresse? Ao perceberem as curas e o processo de descentralização do combate à lepra, muitos profissionais viram seus cargos ameaçados. Transformar a lepra em uma doença qualquer resultaria na não necessidade de um especialista.135

Ocorre que, muitos leprólogos ocupavam cargos específicos no Serviço de Profilaxia da Lepra, como era o caso de muitos diretores dos leprosários. O fechamento dessas instituições, a diminuição da importância do SNL e a perspectiva da descentralização dos serviços de lepra vislumbrados após a eficácia das sulfonas e com a possibilidade de cura, transformaram-se em ameaça a esses grupos que viam na manutenção das antigas instituições e na antiga profilaxia da lepra uma forma de manter o seu espaço de poder. Os leprosários também eram um espaço de pesquisa sobre a doença. O fechamento dos mesmos poderia significar o fim de um campo de pesquisas científicas, de produção médica, um poder e um saber que ia além da terapêutica aplicada no cotidiano junto aos pacientes. Esta terapêutica, aliás, era um complemento da pesquisa, pois se configurava como a parte experimental, a aplicação prática de novas descobertas no trato da doença.

Zoica Bakirtzief fala que a manutenção do estigma ajuda a manter uma identidade profissional. Em pesquisa realizada no município de Sorocaba acerca do tratamento contra a hanseníase na década de 1990, Bakirtzief observou que os profissionais de saúde se recusavam a atender os casos de hanseníase, por medo e falta de esclarecimento sobre a doença. Este tipo de prática observou a pesquisadora, servia para manter o profissional especializado:

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A leprologia deixou de ser uma especialidade médica, sendo inserida em uma outra especialidade, a dermatologia.

A manutenção do estigma da hanseníase, entre os profissionais da saúde, parece representar tanto uma oportunidade para a construção da identidade profissional, como um resultado desta mesma construção. Parece haver uma complementaridade entre a identidade do especialista em hanseníase e a do paciente, que se alimentam do ideário do senso comum, em que se representa o paciente como ‘um caso difícil’ e o profissional de saúde, que o atende, como ‘especial’, dotado de ‘compaixão e outros dons espirituais’.136

Voltando ao editorial da Revista Brasileira de Leprologia, alguns esclarecimentos são feitos em relação às sulfonas, especificamente no que diz respeito às transferências para os dispensários. Segundo os editores, essa transferência não significava a cura e a alta definitiva da doença, mas sim uma nova fase na vida do paciente, dando a ele uma melhor qualidade de vida, além de reduzir a superlotação de alguns leprosários:

Não há uma publicação científica, partida de S. Paulo, que fale em cura. Referem-se sim, à branqueamento de lesões, de negatividade baciloscópica ou à profundas modificações morfológicas e tintoriais do germe, à “transferência para ambulatório”; esta regalia que o doente hospitalizado adquire, vem aliviar sobremodo a superlotação dos hospitais de lepra do nosso País, obtendo alta em negatividade baciloscópica, em ótimas condições clínicas, consciente do valor dos novos medicamentos, disciplinado quanto à necessidade do tratamento, ao contágio e à necessidade do controle clínico posterior, dando lugar a um lepromatoso, doente altamente contagiante, que a premência da superlotação impedia que se isolasse.137

Percebe-se que, além do esclarecimento quanto aos resultados, na época das sulfonas, que não resultaria em cura definitiva, os editores deixam claro que a transferência dos pacientes melhorados para os dispensários não poria fim, de imediato, aos leprosários. Estes, deveriam apenas abrigar os casos lepromatosos, contagiosos. O isolamento indiscriminado, como se pode entrever na citação acima, superlotava os leprosários e impedia que casos contagiosos fossem colocados em isolamento.

Outro artigo, defensor do isolamento dos doentes, ou da sua contribuição ao combate à lepra, também fora publicado em um editorial da Revista Brasileira de Leprologia, 10 anos após o acima discutido. Tal artigo de autoria de R. Quagliato apresenta o leprosário como responsável pela “manutenção da endemia de lepra em

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BAKIRTZIED, Zoica. Aderência ao tratamento de hanseníase. In: BARATA, Rita Barradas e BRICENO-LEÓN, Roberto (Orgs.). Doenças Endêmicas: abordagens sociais, culturais e comportamentais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. pp. 106-107.

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índices normais”, ao menos no estado de São Paulo. Os argumentos utilizados pelo autor para defesa dos sanatórios de lepra perpassam pelo mérito mais da caridade e assistência que pela sua eficácia profilática em si:

Constitui o Departamento de Lepra do Estado de São Paulo, um dos orgulhos da Saúde Pública, sendo êste o seu conceito mesmo entre o povo que não se esquece da legião de doentes abandonados à própria sorte pelas nossas estradas e ruas das cidades, num dos atestados mais dramáticos e eloqüentes de nossa pobreza e incúria. Pois à custa dos nossos Sanatórios, essa multidão de infelizes, pôde ser recolhida, abrigada e assistida, numa das obras mais admiráveis e grandiosas que assombrou àqueles que puderam avaliar as duas épocas.138

Ainda segundo Quagliato, 2/3 dos doentes internados nos leprosários paulistas naquele ano, 1959, ali estavam por questões sociais ou para tratamento de intercorrências. O discurso caritativo e social seria utilizado novamente para justificar a manutenção das instituições de isolamento, ou, em última instância, dar a elas uma nova função, a de abrigar os doentes indigentes ou que não tinham mais como regressar a suas antigas casas, ao afirmar que “não fôsse o hospital, por certo a triagem de indigentes pelo Serviço Social do Estado, daria resultados muito diferentes”.139

Porém, Quagliato chama a atenção para o isolamento seletivo recomendado pelo Congresso Internacional de Tóquio. De acordo com a recomendação do referido Congresso, os casos contagiosos deveriam ser isolados, uma vez que ainda existiam dúvidas e desconhecimentos do ponto de vista epidemiológico e terapêutico da doença. Porém, Quagliato insinua que muitos doentes portadores do tipo lepromatoso, ou contagiante, não estariam sendo devidamente avaliados e encaminhados ao isolamento:

Do ponto de vista da deficiência dos nossos conhecimentos epidemiológicos e terapêuticos, bem como do baixo nível econômico e educacional do nosso povo, absolutamente não se poderia falar no tratamento dispensarial de todos os doentes. Diante dessa dolorosa realidade, o próprio Seminário de Belo Horizonte e o Congresso de Tóquio não obstante a grande liberalidade, houveram por bem recomendar internação dos casos de

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QUAGLIATO, R. A importância do sanatório na campanha anti-leprótica. In: Revista Brasileira de Leprologia. Vol. 27. nº 4, 1959. pp. 164-165.

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QUAGLIATO, R. A importância do sanatório na campanha anti-leprótica. Op. Cit. p. 165. Os resultados apresentados por Quagliato referentes ao Serviço Social do Estado de São Paulo mostravam que não fora encontrado nenhum doente de lepra dentre os indigentes do referido estado.

interêsse médico-social, que, se avaliados (e não simplesmente

ignorados), continuarão lotando nossos leprocômios.140

Pode-se supor, então, que muitos lepromatosos estariam sendo tratados fora do isolamento recomendado. Estes pacientes não estariam sendo diagnosticados como lepromatosos, contagiantes, ou simplesmente não estariam sendo encaminhados aos leprosários por questões outras, como a defesa, por parte de alguns médicos em extinguir o isolamento por completo, transformando a lepra numa doença como outra qualquer? Quagliato dá indicativos de que este motivo parece ser bem plausível quando diz que um dos motivos em não transformar o tratamento contra a lepra estritamente ambulatorial seria o “baixo nível econômico e educacional do nosso povo”.

Outro ponto, que será discutido no próximo capítulo, diz respeito à carência de médicos treinados para diagnosticar a lepra. Como será visto, ao transferir a base da profilaxia da lepra para os dispensários de saúde, ficou evidente o não conhecimento dos médicos da saúde pública de questões relacionadas à lepra.141 Tais conhecimentos, antes restritos aos leprólogos, dermatologistas especializados em lepra, não eram comuns ao ensino médico de forma geral, consequentemente, os médicos desses dispensários teriam dificuldades em estabelecer diagnósticos mais precisos sobre a lepra, resultando, no que insinua Quagliato, numa avaliação precária desses doentes, deixando-se de diagnosticar os casos lepromatosos.

A defesa do leprosário de lepra, no que diz respeito a sua manutenção, também será feita por parte dos próprios doentes de lepra. Muitos pacientes, por terem passado muitos anos em isolamento, perderam o contato com familiares, ou não conseguiram se adaptar a vida fora dos muros dos leprosários, após o recebimento da “transferência para o dispensário”. Estes egressos, retornavam ao sanatório, onde estariam livres dos estigmas e preconceitos destinados aos portadores de lepra. O leprosário passaria a representar a sua morada, a sua certeza de segurança, apesar dos problemas de superlotação e das questões financeiras que impediam o seu bom funcionamento. Muitos pacientes deixavam de se candidatar às perícias que determinavam as transferências para os dispensários

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Idem. Ibidem. p. 165. Grifos meus.

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CAMPOS, Nelson de Souza. Divulgação do ensino da leprologia. In: Revista Brasileira de Leprologia. Vol. 27, nº 2, pp. 69-70

em virtude dessa insegurança vivida fora dos sanatórios e das experiências de outros companheiros que se viram forçados a retornar ao hospital. Esta questão do egresso e a defesa da manutenção dos leprosários serão discutidas nos próximos capítulos.

CAPÍTULO 2

A nova terapêutica da lepra: das “altas” ao fim do isolamento

compulsório

“Saiu meio tonto, como se tivesse levado uma pancada na cabeça. Apesar de está calçado, os pés ardiam como se estivessem pisando em brasa. Que invenção diabólica era esta de Jair em querer abandonar o leprosário, ir residir com êle, seu único familiar? E essas concessões que ultimamente os médicos arranjaram, permitindo que leprosos, de certo modo estragados pela doença, possam viver no meio de outras gentes, como se não oferecessem nenhum perigo? Não concebia a pretensão de Jair e teria que armar-se de uma argumentação lógica, com a qual pudesse forçar a desistência do irmão. Ocorreu-lhe entender-se, nesse sentido, com o diretor do sanatório.

- Quero falar com o diretor.

- Está falando com êle. Que deseja? Indagou um robusto velho, de voz calma e gestos brandos.

- Desejo saber a situação do meu irmão Jair Dias, internado neste Leprosário. Êle pode mesmo sair daqui?

- Ah! Jair Dias... O senhor é que é o irmão dêle?... Pode sim, como não? Suas condições clínicas são favoráveis e, segundo êle me declarou, o senhor estaria disposto a ampará-lo, não existindo, assim, nada mais que impeça a sua retirada.

O homem suspirou fundo; desabotoou o paletó. Olhou de soslaio para as mãos do rapaz que se encontrava sentado ao lado:

- E não há nenhum perigo, doutor, para aquêles que irão conviver com êle? - Nenhum perigo; notadamente porque o seu irmão, fora daqui, continuará sendo controlado pelo serviço especializado, bem assim os que com êle conviverem. Além do que, a forma da doença do seu irmão não provoca nenhum perigo.

Desta vez o homem coçou a cocoruta. Relanceou a vista, novamente, pelas mãos do rapaz da poltrona, provocando neste um gesto de brusca reação, que o fêz esconder as mãos, cruzando os braços. A tontice recrudesceu, agora agravada com zumbidos nos ouvidos. Despediu-se às tontas, não deixando o diretor concluir suas explicações e aliviando o rapaz da poltrona. À saída do gabinete, escorregou no capacho que jazia ao pé da porta, esparramando-se no assoalho. Os circunstantes acorreram, na tarefa de socorrê-lo. O homem, apoiado aos ombros dos demais, sentia dificuldade em se firmar. Gemia surdamente. Descobriu-se, depois, que êle havia sofrido uma distensão na virilha e teve que ser conduzido à casa por uma das viaturas do hospital.”142

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Jair estava decidido: iria sair do Hospital da Mirueira, em Pernambuco, e retomar ao seio familiar. Estava apto a receber a transferência para o dispensário, obtivera melhora clínica, com o tratamento com as sulfonas, e não era portador do tipo contagiante da doença. Podia, perfeitamente, conviver entre os sadios, não representava um perigo à saúde pública.

Mas não era bem assim que o seu irmão José pensava. Mesmo com a afirmação do diretor do Hospital de que Jair já poderia ser liberado, e que o mesmo possuía um lar para abrigá-lo, José não estava convencido de que seria uma boa ideia ter um leproso em sua casa. Até mesmo porque, de acordo com o diretor, toda a sua família passaria a ser monitorada pelo serviço especializado. Não, José não estava pronto para enfrentar essas mudanças em sua vida. E a vizinhança, o que iria pensar? Florinda, sua esposa, não aceitaria receber Jair em casa.

José não voltou para buscar o irmão no Hospital. O tempo passou e Jair decidiu saber da sua promessa. Enviou-lhe uma carta, para saber o que o ele havia decidido, se já falara com sua esposa. Desconfiava que José, na verdade, não iria acolhê-lo em sua casa. Segundo Sastre, Jair não recebera a resposta que desejava e, apesar do atestado de alta, não saiu do Hospital da Mirueira, tendo entrado em um estado de depressão que o teria levado a morte.

Estas e outras histórias eram comuns entre os pacientes que deixavam para trás anos de isolamento com a esperança de retomarem a vida fora dos muros do leprosário. Porém, o atestado de alta, que afirmava que aquele paciente, apesar de não estar curado, não oferecia perigo de contágio aos sadios, de nada valia diante de um preconceito milenar que rondava a lepra e os leprosos. O isolamento dos leprosos era bíblico, foi ratificado no início do século XX e, até o final da década de 1940, era a melhor atitude a ser tomada no combate à doença. Como aceitar esses doentes de volta, ainda mais, sem estarem totalmente curados? Quais as garantias que os médicos ofereciam a sociedade de que esses pacientes não representavam um risco à saúde pública?

Neste capítulo, analisarei a nova legislação de combate à lepra, durante os anos de 1947 a 1976, período que compreende desde a primeira regulamentação das altas dos doentes de lepra, até o desmontar da política do isolamento compulsório; além de discutir os rumos da nova profilaxia da lepra, baseada, inicialmente, na atividade dispensarial e isolamento seletivo, e, após 1962, na

preservação da unidade familiar, no tratamento descentralizado e na prevenção de incapacidades.

2.1 A nova legislação de combate à lepra: as “altas” e o tratamento