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“O inimigo está cedendo”, foi o título utilizado pelo Dr. Medeiros Dantas em artigo publicado no jornal A Voz da Mirueira, de 13 de maio de 1951. Em tal artigo, Dantas disserta sobre a incansável busca da medicina em derrotar a lepra, feito este alcançado com a descoberta das sulfonas. Iniciava-se, assim, uma nova era no combate à lepra, onde não mais seria preciso recorrer a “medidas desumanas”, como o isolamento compulsório dos doentes. Tais medidas eram, segundo o referido médico, baseadas no medo, pois, a doença “não respeita sexo, idade, raça, condição social”.250

Com o novo tratamento, com as curas alcançadas, não haveria mais motivos para temer a lepra nem os leprosos. A cura representava a última etapa do trabalho médico de combate à doença. A sensação de dever cumprido. Em breve, imaginava- se, a lepra seria erradicada e o isolamento dos doentes, apenas a lembrança de uma época difícil: “meditando sôbre esta realidade, creio que num futuro não muito distante o problema da lepra, se não estiver resolvido, estará pelo menos humanizado e os leprocômios serão apenas marcos de uma época que passou.”251

Nesta mesma edição, de maio de 1951, é publicado um artigo de autoria de R. Dantas, interno do Hospital da Mirueira, acerca desta nova fase do combate à lepra, a fase da “Esperança”:

Nós que vivemos distantes do Mundo, e já não alimentávamos esperanças de um dia voltar à Sociedade, ao seio de nossas famílias, enfim, ao Mundo, sentimos renascer dentro de nós, em nosso “EU” a chama viva da Esperança, isto porque iremos muito em breve, se DEUS quizer, assistir maravilhados a DEZENAS de altas, de irmãos nosso que irão de novo, desfrutar do boliço da cidade Maurícia, suas pontes e suas belezas.252

O grande otimismo verificado nos dois artigos era justificado, pois, dentro de um ano o Hospital da Mirueira abriria seus portões para dar passagem aos primeiros doentes de lepra com o atestado de “transferência para dispensário”, a carta que os

250

DANTAS, Medeiros. O Inimigo está cedendo. In: A Voz da Mirueira. Nº 2, 13/05/1951. p. 01

251

Idem. Ibidem.

252

liberava do isolamento, que os permitia retornar ao convívio social mais amplo, o reencontro com a família, uma época de esperanças renovadas.253

Os jornais de grande circulação já noticiavam a abertura de outros Hospitais Colônia pelo país e a saída de vários pacientes:

PORTO ALEGRE, 8 (Asapress) – 49 doentes acabam de deixar, curados, o Leprosário de Itapoan, que vem obtendo o mesmo êxito conseguido na maioria dos congêneres do país na luta contra o mal de Hansen. Registrando o fato a imprensa acentúa que o Brasil pode ser considerado o país líder na campanha a que se entregam os homens de ciência, visando o extermínio completo do terrível mal da face da terra.254

Os jornais não só noticiavam a saída dos doentes, como alardeavam que os mesmo saíam “curados” e que a lepra seria exterminada devido aos avanços da ciência. Este otimismo que tomou conta de médicos e doentes também era compartilhado por outros grupos de doentes, como os tuberculosos, por exemplo. O periódico Folha da Manhã, edição matutina, traz as seguintes notícias no ano de 1952: “Cura completa da tuberculose com um mês de tratamento dos doentes”255, “A ciência vence o bacilo tuberculoso”256. “A hidrazida e a estreptomicina fizeram cair sensivelmente a mortalidade de tuberculosos”257.

“A Nova Renascença”, artigo de Petronius Perine, interno da Mirueira e membro do Grêmio Cultural Silvino Lopes, publicado em 29 de abril de 1952, está recheado deste mesmo sentimento de esperança:

Incontestavelmente, uma nova “Renascença” se processa no Brasil, para os portadores do “M.H.”. Uma nova aurora de luz desperta uma coletividade, acorrentada, até bem pouco tempo, por preconceitos e complexos de desespero e angústias recalcadas no sub-consciente dêsses infelizes estigmatizados por uma enfermidade, que se tornou lendária, dada a ignorância e horror que desperta naqueles que desconhecem a evolução da doença. [...] Hoje, graças a DEUS, já se afirma, de cátedra, que o “M.H.” é “inofensivo” diante do bacilo de Koch e outros “espécimes” da fauna bacteriana.258

253 As primeiras transferências para dispensário concedidas pelo Hospital da Mirueira datam de 20 de agosto de

1952.

254

CURA DA LEPRA. In: Folha da Manhã. Vespertino. 08/01/1951. p. 01

255

Folha da Manhã. Matutino. 11/06/1952. p. 01

256

Folha da Manhã. Matutino. 12/06/1952. p. 03

257

Folha da Manhã. Matutino. 13/11/1952. p. 03

258

A fala de Petronius Perine, além de exacerbar um profundo otimismo, em relação à cura e erradicação da lepra, carrega um sentimento de que as sulfonas seriam as redentoras dos leprosos não apenas no sentido clínico – através da cura – mas também no sentido social, pois, se o bacilo de Hansen era, de fato, “inofensivo diante do bacilo de Koch”, causador da tuberculose, então, não haveria motivos para temer a lepra, nem os por ela acometidos. As sulfonas, de uma só vez, exterminariam o bacilo e os temores sociais.

Este sentimento de cura que se estendeu ao caráter social da doença deve- se, em grande parte, à euforia médica verificada durante os anos de 1950 a 1960, com a descoberta da cura de várias doenças, principalmente as de caráter bacteriano. Como já fora tratado no capítulo 3, vivia-se um período de grande otimismo sanitário, onde se acreditava que tudo era possível, que todos os problemas podiam ser vencidos.259

E é sob esta euforia que são anunciadas as primeiras liberações – transferências para dispensários, do Hospital da Mirueira. Em 18 de outubro de 1951, o jornal Folha da Manhã publicou a seguinte manchete de capa: “Cura em massa de Leprosos”, anunciando que pelo menos 40 pacientes do Hospital da Mirueira já se encontravam aptos a receberem a tão sonhada alta hospitalar.260 A referida reportagem dá conta da cura de 40 pacientes, fato este “comprovado” pelo responsável pela matéria, que fora ao Hospital da Mirueira verificar os resultados dos exames e conhecer os futuros candidatos à alta. Porém, ao final da reportagem, o articulista chama a atenção dos leitores para um problema eminente: a carência de recursos financeiros de alguns pacientes, o que comprometeria a sua sobrevivência fora do Hospital:

Entrevistando os 40 ex-leprosos, notamos que a maior parte deles se encontra sem meios econômicos para continuar a vida cá fora. Não há dúvida, esse também é um grande problema para os novos candidatos à sociedade dos sadios. Sendo assim, pediram-nos para lançar, em nossas colunas, um apêlo aos homens de boa vontade, no sentido de que enviem auxílios a êsses que, em breve, vão começar uma nova existência.261

259

GARRETT, Laurie. A Próxima Peste: novas doenças num mundo em desequilíbrio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1944. p. 40.

260

Folha da Manhã. Vespertino. 18/10/1951. p. 01 e 11

261

A falta de recursos econômicos era um empecilho para a obtenção da “transferência para o dispensário”, de acordo com a regulamentação de altas, lei nº 1.045, de 02 de janeiro de 1950. Este foi um dos motivos para a não liberação de todos os 40 “ex-leprosos” entrevistados. Somente uma parte, 12 pacientes, recebera o atestado médico em agosto de 1952.

Um fato chama a atenção entre esta reportagem datada de 18 de outubro de 1951 e o dia em que ocorreu a solenidade de “altas”, em 20 de agosto de 1952, exatos 10 meses depois. Se em 1951 já existiam 40 pacientes aptos a receberem a alta do Hospital (apesar da impossibilidade de muitos devido à falta de recursos financeiros), por que então a demora em concedê-la?

De acordo com reportagem publicada pelo periódico A Voz da Mirueira, acerca da solenidade de altas realizada em agosto de 1952, foram realizados 18 exames consecutivos, seis a mais do que previa a legislação que regulamentava as altas, de acordo com a lei nº 1.045 de 1950.262 Estariam os médicos pernambucanos receosos em liberarem estes pacientes a ponto de terem realizado mais que 12 exames, como previa a lei? Ainda de acordo com a reportagem de A Voz da

Mirueira, apenas 27 pacientes foram selecionados pela Comissão de Altas, sendo

apenas 25 aprovados pela mesma. Porém, por conta de impedimentos financeiros, somente 12 receberam a “transferência para dispensário”. Teriam os médicos colocado em dúvida os exames realizados pelos 40 pacientes e, por isso, resolveram estender por mais seis meses os testes? A legislação anterior que regulamentava as altas dos doentes de lepra previa 18 exames consecutivos de baciloscopia negativa. Seria o caso dos médicos pernambucanos não acreditarem em apenas 12 exames consecutivos?

Esta demora em liberar os pacientes pode ser percebida através de outra reportagem publicada pelo jornal Folha da Manhã. Em 22 de abril de 1952 o referido periódico anunciava a saída de vários pacientes (dentre 40 que foram submetidos aos exames para obtenção da “alta”), que aguardavam apenas o dia da solenidade de entrega dos atestados médicos, com a seguinte manchete: “Numerosas curas na Mirueira: O Serviço Nacional de Lepra autoriza alta de pacientes completamente sãos!”263:

262

Festejadas as primeiras altas concedidas na Colônia da Mirueira. In: A Voz da Mirueira. Nº 18, 24/081952. p. 04

263

A Colônia de Leprosos da Mirueira está em festas. Sua administração, seus médicos, seus internados exultam com um acontecimento para eles e para toda a sociedade da mais alta importância. É que vão ter alta, inteiramente curados, vários pacientes que ali receberam tratamento baseado na sulfona. Para os que, de fora, não podem sentir em toda a extensão o drama dos leprosos, o acontecimento poderia passar como rotineiro na vida de um nosocômio. Mas, os que sabem o que significam o isolamento dos leprosos, a terrível ação daquele horroroso mal e, sobretudo, que estes são dos primeiros que conseguem a graça da cura em todo o mundo e, realmente, os primeiros da Mirueira, hão de entender o quanto de alegria reina na Colônia. Os pacientes curados serão reentregues ao convívio social numa solenidade que marcará época, pois reacenderá muitas esperanças perdidas, estimulará mais ainda a ação dos dedicados médicos da Colônia, disciplinará os doentes no curso do demorado e difícil tratamento, animará, enfim, toda aquela coletividade de doentes recolhidos à Mirueira.264

É interessante observar que a imprensa, nestes dois casos, divulgou uma notícia equivocada em relação aos pacientes que recebiam a “alta”. Esses doentes não saiam “completamente sãos”, como afirma o jornal. Apenas recebiam a autorização para continuarem o tratamento fora do Hospital da Mirueira e livres do isolamento, porém, continuariam sob a vigilância de um dispensário de lepra. Não representariam perigo de contágio aos sadios enquanto estivessem sobre tratamento. Além do que, boa parte das primeiras “transferências” concedidas pelos diversos Hospitais Colônia do país, diziam respeito aos leprosos da forma indeterminada ou tuberculóide. Os casos contagiosos necessitavam de mais tempo de tratamento e observação.

Ao mesmo tempo, ao falar que as curas ajudarão a disciplinar os pacientes “no curso do demorado e difícil tratamento”, o artigo nos dá indícios de que, apesar dos resultados promissores das sulfonas, alguns doentes ainda não acreditavam na cura da doença. Talvez devido ao longo tempo em que esperaram resultados positivos das várias terapêuticas que já haviam testado, ou por conta dos efeitos adversos causados pelo uso das sulfas, que possuíam potencial tóxico. Em artigo publicado em A Voz da Mirueira, Petronius Perine, o mesmo que falara da “Nova Renascença”, praticamente um ano antes, chama a atenção para o caráter desconfiado de muitos doentes de lepra, em relação à terapêutica médica:

[...] desde as primeiras horas que aqui chegamos (e já lá vão 3 anos), conseguimos compreender que a absoluta maioria dos acometidos do mal de “M.H.”, com o tempo e com a rebeldia da própria enfermidade, tornam-se

264

apáticos, indolentes, pessimistas e zombadores dos mais belos e sinceros desejos no combate ao flagelo. Com o decorrer do tempo perdem completamente a confiança na Medicina e não levam a sério todo e qualquer medicamento que surja para a extinção do mal.265

A cura, aliás, é questionada por Petronius Perine, que não acreditava de todo no “poder” das sulfas, mas aceitava o fato de que as mesmas poderiam proporcionar uma melhor qualidade de vida ao doente de lepra. Para Petronius, a cura só poderia ser obtida através de uma relação entre medicina e fé, exceto para os casos crônicos, lepromatosos da doença:

A fé raciocinada é força, é vibração, é pensamento elevado para o bem; tudo assimilado por nós conseguirá transpor tôdas as montanhas do derrotismo, do pessimismo e dos vícios, tornando possível e realisavel a cura, não digamos de todos porque há casos crônicos, mas, é possível libertar uma grande parte de “mortos vivos” da prisão em que se encontram.266

É interessante observar que, ao mesmo tempo em que a fé e a ciência juntas poderiam “transpor tôdas as montanhas”, a cura para os casos lepromatosos era algo impossível, estava além de simplesmente “transpor montanhas”. Ora, estas são palavras de um doente em isolamento. O que esperar, então, da sociedade dita sadia quanto à cura da lepra? Deixemos esse questionamento de lado, por enquanto, e voltemos às altas e a euforia com as sulfonas, até mesmo porque, ao que parece, Petronius fora “convencido” da eficácia das sulfonas, quando publicou o artigo “Nova Renascença” já citado aqui.

As primeiras “altas” – transferências para dispensários – concedidas aos pacientes do Hospital da Mirueira ocorreram em agosto de 1952, tendo sido bastante comemoradas pelos que saiam e pelos que ficavam, na esperança de serem os próximos a deixarem o isolamento. De acordo com artigo publicado no jornal O Momento, os festejos duraram quatro (04) dias, com missas, palestras de esclarecimento ao público concedidas à Rádio Clube de Pernambuco, eventos dentro do próprio Hospital e, no último dia, 20, uma solenidade para a entrega dos atestados de “alta”, com a presença do secretário de saúde e assistência – o Dr. Orlando Parahym; o diretor do Departamento de Saúde – Aldo Vilas Boas; o diretor da Divisão Técnica do D.S.P. – o Dr. Bertoldo Kruse; o representante do S.N.L. em

265

PERINE, Petronius. O Mal de Hansen é Curável? In: A Voz da Mirueira. Nº 2. 13/05/1951. p. 03

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Pernambuco e presidente da Comissão de Altas – o Dr. Medeiros Dantas; o Delegado da 5ª Região de Saúde – o Dr. Gilberto da Costa Carvalho; o diretor da Colônia da Mirueira – o Dr. Jorge de Barros; dentre outros médicos hansenologistas, representantes da Sociedade de Assistência aos Lázaros, jornalistas e outros convidados, além dos próprios internos.

Após a entrega dos atestados, para apenas doze (12) daqueles quarenta (40) anteriormente citados, as respectivas autoridades sanitárias encerravam a solenidade com um aperto de mãos em todos os “ex-leprosos” que acabavam de receber a “alta”. Ora, o aperto de mãos era uma forma simbólica de demonstrar que aqueles pacientes, apesar de continuarem em tratamento médico e sob a vigilância de um dispensário de saúde, não representavam mais perigo de contágio para os sãos.

Porém, apesar de tantas comemorações e dos apertos de mãos, a vida fora do Hospital não seria fácil. Os avanços médicos-científicos em relação à doença não correram lado a lado com a redução do estigma da lepra. A sociedade dita sadia não fora preparada para receber, de volta, doentes de lepra, mesmo que estes não oferecessem mais perigo de contágio. O estigma da doença, as barreiras culturais acerca da lepra sobreviveram à cura biológica da mesma, contradizendo a lógica médica de que tudo se resumiria ao medo do contágio, quando existia um saber sociocultural acerca da lepra bastante sólido, não limitado apenas ao agente transmissor da doença ou sua forma de transmissão.

De acordo com Ítalo Tronca, uma “contraface cultural” da doença coabitaria com seus sintomas físicos e seria responsável pela construção e reconstrução das imagens da doença.267 Ao mesmo tempo em que existe um saber científico que define, delimita, sistematiza a doença, há um saber cultural que também produz significados acerca das enfermidades. Neste sentido, a cura biológica, simplesmente, não seria suficiente para erradicar a doença, como veremos. Esta “contraface cultural” da lepra vai definir, de certa forma, os rumos das políticas de combate à doença.

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