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Com as sucessivas “transferências para dispensários” concedidas aos leprosos internados em leprosários, os dispensários de lepra viram sua importância no combate à doença aumentada. O antigo tripé de combate à lepra, em questionamento, dava lugar a uma profilaxia que pretendia ter como base o diagnóstico precoce da doença e o tratamento ambulatorial com o uso das sulfonas.

Mas, quais eram especificamente as funções de um dispensário? Qual o seu papel nesta nova fase do combate à doença? Segundo os Drs. Abraão Rotberg e L. M. Bechelli, em artigo publicado em 1951, na Revista Brasileira de Leprologia, o dispensário anti-leprótico seria:

[...] o elemento da organização profilática destinado ao exame e tratamento dos casos não contagiantes de lepra (iniciais ou egressos com alta de leprosários), ao exame de comunicantes, à verificação de notificações e denúncias, à internação dos doentes contagiantes, à prática de censos e pesquisa de novos casos da moléstia, ao contrôle imunológico pela R. de Mitsuda, à localização de fugitivos, à educação sanitária especializada.153

Até a primeira metade do século XX, os dispensários tiveram um papel secundário no combate à lepra, como fora discutido no capítulo anterior. Os leprosários e o isolamento dos leprosos foram, até então, considerados como

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ROTBERG, Abraão; BECHELLI, L. M. O dispensário na profilaxia da lepra: sua importância crescente e sua modernização. In: Revista Brasileira de Leprologia. Vol.19, nº 2, 1951. p. 70.

medida profilática mais eficaz. Mesmo após a nova classificação da lepra em lepromatosa, indeterminada e tuberculóide, quando os casos não contagiosos puderam optar pelo tratamento ambulatorial, os dispensários continuaram tendo um papel inferior ao dos leprosários. Somente com o advento das sulfonas eles passam a ter um grau de importância cada vez maior, sendo considerado o elemento principal de controle da endemia após a condenação do isolamento compulsório dos doentes de lepra em 1958, no VII Congresso Internacional de Lepra, realizado em Tóquio.

No Congresso anterior, realizado em Madri, em 1956, as recomendações já tendiam no sentido de tornar o isolamento o menos frequente possível, tendo sido, inclusive, liberado o tratamento ambulatorial aos lepromatosos com lesões discretas e raramente bacilíferos. Com a abertura dos hospitais, e com as “transferências para dispensários”, o volume de trabalho dos dispensários de lepra aumentou, evidenciando as suas deficiências e carências, uma vez que o mesmo mantinha-se estruturalmente da mesma forma de antes:

O dispensário atual não está, contudo, aparelhado para essa intensificação do serviço. As suas instalações e o seu pessoal são aproximadamente os mesmos que os do tempo em que toda a atividade se cifrava na observação espaçada de algumas dezenas de doentes e comunicantes; à testa dele se encontra geralmente um dermatologista que poderia atender eventualmente a uma ou outra intercorrência clínica ou de pequena cirurgia, circunstâncias aliás raras, em vista do pequeno vulto da coletividade a seu cargo, enviando os casos mais complexos para serviços clínicos ou cirúrgicos mais bem aparelhados.154

Com todos esses problemas de ordem estrutural e prática, os dispensários não conseguiam oferecer os serviços ao qual estavam destinados, acarretando em prejuízo ao tratamento dos doentes neles matriculados. Segundo Rotberg e Bechelli, estas instituições acabavam apresentando um “caráter precário ou “provisório” no que se refere ao futuro dos doentes”.155 Muitos pacientes, que recebiam a “transferência para dispensário”, voltavam rapidamente aos leprosários, pois, apresentavam reativações da doença, ou seja, os exames baciloscópicos

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ROTBERG, Abraão; BECHELLI, L. M. O dispensário na profilaxia da lepra: sua importância crescente e sua modernização. Op. Cit. p. 71.

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realizados nos dispensários demonstravam positividade bacterioscópica, e o doente voltava a representar um foco de contágio.

Essas reativações podiam ocorrer por vários motivos. O mais comum era o abandono do tratamento por parte do doente. De acordo com Quagliato, em pesquisa realizada em dois dispensários de lepra do estado de São Paulo (Ambulatório de Campinas e Ambulatório de Bebedouro), durante os anos de 1947 a 1953, era difícil manter um controle rígido sob os pacientes matriculados nos dispensários em virtude de que muitos não podiam se apresentar aos mesmos com a frequência desejada, pois residiam em locais distantes. Desta forma, levavam o medicamento para casa, o que impedia um controle mais eficaz.156

Outro motivo apontado por Quagliato seria a redução de exames exigidos para a obtenção da “transferência para dispensário”, estipulado em 12 exames mensais negativos, com a Lei Federal nº 1.045, de janeiro de 1950, quando antes era de 18 exames mensais para os casos lepromatosos e incaracterísticos com baciloscopia inicial positiva, poderia comprometer a “qualidade” dos resultados e ocasionar a liberação de “transferências para dispensários” equivocadas.157 Quagliato, inclusive, denuncia que dos 96 pacientes provenientes de leprosários, matriculados no Ambulatório de Campinas, durante o quinquênio de 1947 a 1953, 30% apresentaram baciloscopia positiva no primeiro exame realizado no ambulatório, quando este deveria ter apresentado 12 exames negativos para obtenção da “transferência”.

Rotberg e Bechelli apontam para um colapso do sistema dispensarial, incapaz de atender a nova demanda de pacientes e aos novos ditames da profilaxia da lepra. Segundo os autores, os problemas tendiam a se agravar com o avanço da terapêutica e a chegada de medicamentos mais ativos, o que aumentaria o número de “transferências para dispensários” e diminuiria a quantidade de recidivas da doença. Neste sentido, Rotberg e Bechelli propõem soluções para este problema, baseadas na multiplicação do número de dispensários existentes e no aumento de sua capacidade funcional.158

156

QUAGLIATO, Reinaldo. O problema das reativações nos dispensários de lepra. In: Revista Brasileira de

Leprologia. Vol. 23, nº 1-4, 1955. P. 85.

157

Idem. Ibidem. p. 85.

158

ROTBERG, Abraão; BECHELLI, L. M. O dispensário na profilaxia da lepra: sua importância crescente e sua modernização. Op. Cit. pp. 72-74.

Estas soluções vieram seguidas de sugestões para o funcionamento mais dinâmico dos dispensários. Como veremos a diante, as suas considerações, apesar de não terem sido postas em prática, principalmente no que diz respeito à multiplicação de dispensários, estavam de acordo com o que era discutido nos congressos de leprologia e, em alguns casos, eram até mais ousadas que as recomendações destes congressos, pois anteciparam parte da discussão sobre o estigma da doença e os seus entraves à terapêutica.

No ano de 1951, existiam 85 dispensários em funcionamento no país, distribuídos nas seguintes localidades: Guaporé (1), Acre (2), Amazonas (1), Pará (2), Amapá (1), Rio Branco (1), Maranhão (1), Piauí (2), Ceará (2), Rio Grande do Norte (1), Paraíba (1), Pernambuco (5), Alagôas (1), Sergipe (2), Bahia (1), Espírito Santo (9), Rio de Janeiro (5), Distrito Federal (8), São Paulo (22), Paraná (2), Santa Catarina (2), Rio Grande do Sul (2), Mato Grosso (3), Goiás (2), Minas Gerais (7). 26% dos dispensários de lepra estavam localizados no estado de São Paulo.159 O Dr. João Baptista Risi apresentou uma comparação entre o número de dispensários e o coeficiente de prevalência da doença por região do país, observemos a reprodução da tabela abaixo:

Tabela 4 - Prevalência da lepra e dispensários existentes nas regiões fisiográficas do Brasil160

Regiões fisiográficas Coeficientes de prevalência (1950) Número de dispensários Norte 3,75% 8 Nordeste 0,38% 12 Leste 1,09% 32 Sul 1,54% 28 Centro-Oeste 1,23% 5 Total ... 85

Como se pode observar, a região Norte, que possui o maior coeficiente de prevalência da lepra, possui dispensários em quantidade insuficiente para sua demanda. Se levarmos em consideração a dimensão territorial desta região do país, esse problema toma proporções bem maiores. Nesta região deveria estar

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RISI, João Baptista. Da assistência dispensarial e o armamento anti-leprótico no Brasil. In: Revista Brasileira

de Leprologia. Vol. 19, nº 2, 1951. p. 64

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concentrado o maior número de dispensários de lepra, devido aos números apresentados acima. Quantos doentes não foram nem matriculados nos dispensários dessa região por conta da impossibilidade de transpor as dificuldades geográficas da mesma?

Para Rotberg e Bechelli, a multiplicação dos dispensários, principalmente onde a doença fosse mais endêmica, possibilitaria ao paciente a opção de escolher onde se tratar, independente de onde residia. Isso salvaguardaria o paciente de inconvenientes sociais e econômicos, pois, para evitar o preconceito e o desprezo dos vizinhos e amigos, poderia tratar-se em outro bairro ou município; por outro lado, um dispensário próximo à sua residência, diminuiria os custos de deslocamento para o mesmo. Estes dispensários teriam tamanho reduzido, serviriam apenas para o acompanhamento do paciente e aplicação da medicação.161

Os autores sugeriram também a construção de dispensários maiores, especializados, uma espécie de “policlínica”, com organização semelhante a dos leprosários, “com dermatologistas, clínicos, oftalmo-otorrinolaringologistas, radiologistas, cirurgiões e laboratoristas”, além de “pessoal suficiente para atender convenientemente todos os seus casos e também os que lhe fossem enviados por dispensários menos dotados”.162

Além da parte estrutural, Rotberg e Bechelli sugeriram questões práticas, como a seleção de doentes e comunicantes matriculados nos dispensários que deveriam sofrer uma vigilância mais intensa e outros que deveriam ter a vigilância reduzida. O primeiro caso, os que deveriam sofre maior vigilância, diz respeito aos doentes do tipo lepromatosos e aos comunicantes que apresentarem lepromino- reação negativa (mais suscetíveis a contraírem a lepra). Os casos tuberculóides ou indeterminados com baciloscopia negativa, e os comunicantes que apresentavam lepromino-reação positiva (maior resistência à lepra), uma vez que representavam menor perigo à saúde pública, poderiam ter a vigilância reduzida. O tempo e o investimento gastos nesses casos seriam revertidos aos casos lepromatosos e os lepromino-negativos.163

De acordo com Rotberg e Bechelli, o dispensário também deveria desempenhar funções sociais, como a “proteção legal, social e econômica do doente

161

ROTBERG, Abraão; BECHELLI, L. M. O dispensário na profilaxia da lepra: sua importância crescente e sua modernização. Op. Cit. p. 72

162

Idem. Ibidem. p. 72.

163

e de sua família, na educação sanitária destes e da população em geral”.164 Estas eram preocupações que tinham como ponto em comum a questão do estigma da doença. Os autores apontam para medidas que objetivavam reduzir os preconceitos e os inconvenientes sociais causados pela lepra: tentar enviar os filhos sadios dos leprosos, obrigados a se separem de seus pais, a familiares, ou enviá-los a educandários privados ou públicos; oferecer meios de sustento para as famílias atingidas pela lepra seja alocando os doentes hábeis, com poucas lesões e não contagiantes em trabalhos remunerados, ou concedendo ajuda pecuniária de origem pública ou privada para os que não poderiam exercer uma profissão, por conta da doença.165

Outro ponto que deveria ficar a cabo da assistência social do dispensário era a readaptação social do egresso do leprosário. Este, após receber a “transferência para dispensário”, saia, muitas vezes, já envelhecido ou com alguma sequela incapacitante, o que dificultava a sua aceitação por parte dos empregadores. Outros, apesar de não possuírem sequelas que o impediam de exercer qualquer trabalho, esbarravam no preconceito dos que tomavam conhecimento do seu passado – ex- interno do leprosário – e de seu presente – matriculado em dispensário para dar continuidade ao tratamento até a obtenção da alta definitiva.166 Muitos desses leprosos passaram tanto tempo em isolamento, alguns mais de 30 anos, que ao saírem, não tinham uma profissão definida, ou já se encontravam em idade avançada para retornar ao mundo do trabalho. Segundo o Dr. Luis Baptista, em artigo publicado na Revista Brasileira de Leprologia, o problema da reabilitação do doente de lepra era algo preocupante, pois,

Cêrca de 40% dos doentes de sanatórios não aceitam a transferência para dispensário por falta de emprêgo e pela dificuldade de serem recebidos pela sociedade. Os que aceitam a transferência na esperança de uma colocação, logo caem na desilusão, no desespero e revolta, quando verificam a dura realidade.167

164 ROTBERG, Abraão; BECHELLI, L. M. O dispensário na profilaxia da lepra: sua importância crescente e sua

modernização. Op. Cit. p. 73

165

ROTBERG, Abraão; BECHELLI, L. M. O dispensário na profilaxia da lepra: sua importância crescente e sua modernização. Op. Cit. p. 73

166

Idem. Ibidem. p.74

167

BAPTISTA, Luis. Reabilitação do hanseniano. (Situação do doente de lepra internado e do egresso em face do trabalho). In: Revista Brasileira de Leprologia. Vol. 27, nº 4, 1959. p. 167

Este é um ponto interessante. Com a abertura dos leprosários e com a crescente importância dos dispensários no combate à lepra, o problema do estigma da doença tornou-se mais evidente. Quando da época do isolamento compulsório, antes da inserção das sulfonas, quando a possibilidade de cura da doença era quase nula, uma vez que nenhum medicamento havia apresentado resultados tão positivos quanto os derivados das sulfas, excluir o doente, condená-lo ao isolamento era algo natural. O estigma, o pavor da doença até ajudavam os serviços de lepra, pois, os vizinhos e até familiares, denunciavam os leprosos escondidos, agiam como fiscais dos serviços de lepra. Passados quase 10 anos após a verificação das primeiras altas dos leprosários, esta realidade ainda se apresentava muito recente e presente, quando os autores escreveram o artigo.168

A nova profilaxia da lepra, baseada em tratamento dispensarial, no uso dos derivados das sulfonas, da não exclusão do doente do convívio social mais amplo, foi colocada em combate com a antiga profilaxia, baseada no isolamento, na repulsa ao doente, no pavor do contágio, na certeza da morte. Este combate, ou choque de profilaxias, foi construído em um curto período de tempo: após a apresentação das sulfonas, em 1946, à comunidade médica internacional, em 1947, aqui no Brasil, um regulamento de altas é decretado e em 1950, uma lei federal regulamenta a concessão de altas aos doentes de lepra, isolados ou não em leprosários. Não bastava apenas curar os doentes, devolvê-los à sociedade, era preciso estabelecer campanhas de educação sanitária para que os olhares, os saberes populares sobre a lepra fossem reformulados. Urgia transformar a lepra em uma doença como outra qualquer.169 Esta afirmação, a princípio, significava mostrar à sociedade que a doença era curável e tratável em ambulatório.

A citação de Baptista chama a atenção também para outro problema: a não aceitação da transferência por parte dos doentes internados. Os doentes, apesar de aptos a saírem do leprosário, preferiam ali permanecer, uma vez que fora dos seus muros a realidade seria mais difícil. E o que fazer diante disso? A nova profilaxia, os progressos científicos obtidos nos últimos anos de nada valiam contra o estigma da doença. Médicos e leprologistas precisavam encontrar novas soluções, outra cura para a doença, a cura do estigma, um trabalho mais árduo que a cura biológica da

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Rortberg e Bechelli, falam em seu artigo, que em alguns países (eles não citam quais), por questões econômicas, os casos contagiantes são tratados em dispensários, sem serem internados em leprosários.

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Transformar a lepra em uma doença qualquer será quase que um lema da nova campanha de controle da endemia e de combate ao estigma da doença.

doença. Esta cura, porém, não seria alvo de estudo e de medidas efetivas ainda na década de 1950. Somente no final dos anos 60, os médicos desviaram o olhar das questões clínicas para as questões sócio-culturais relacionadas à lepra. A percepção de que a cura biológica não transformaria a lepra em uma doença comum não era evidente para os médicos, nos decênios de 1950 e 1960.