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A obra de Giaccaria e Heide na contramão da política indigenista da época

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Para demonstrar a importância do universo de obras e realizações de Giaccaria e Heide na Missão Salesiana entre os Xavante, é importante ressaltar que ambos vieram para o Brasil e foram viver em Missões Salesianas durante a década de 1950. Nesse contexto, o próprio Governo Federal do Brasil lançava projetos para adentrar o “sertão” e integrar as terras e os índios à “comunhão nacional”. Neste sentido, a Marcha para o Oeste criada por Vargas em 1940, tinha como objetivo integrar o território nacional, buscando promover a ocupação dos “vazios demográficos”, sobretudo no Brasil Central e promover o “progresso”, conforme Oliveira (2013). Esta noção de progresso igualmente insere-se no ideário de construção da nação segundo Gomide (2008, p. 187):

“A ‘Marcha para o Oeste’ foi promovida pelo governo federal através da Expedição Roncador-Xingu e a Fundação Brasil Central (FBC), entre os anos 1943-1967, com o objetivo de colonização do centro- oeste brasileiro. Com toda a sua carga ideológica de ocupação dos espaços vazios, entra em território Xavante em 1944, e inicia a colonização. Surgem núcleos como Xavantina às margens do rio das Mortes, no centro do território Xavante. ‘Isso aqui era só um rio, passava aí o rio, rapaz, só tinha índio nesse beira de rio, só índio, você só via índio, alguns moradores nessa beira de rio aí muito pouco’” (Aragarças outubro/1996, depoimento de pioneiro da ERX a Lima Filho, 2001, p. 150).

Naquele contexto, as políticas indigenistas estavam sob responsabilidade do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN) - 1910, criado pelo Marechal Rondon e renomeado para Serviço de Proteção aos Índios (SPI) a partir de 1918. O Serviço tinha como objetivo integrar os povos

indígenas à comunhão nacional, o que na prática significava o apagamento de toda diversidade cultural, pois os povos indígenas se tornariam trabalhadores nacionais (SOUZA LIMA, 1995).

Em 1967 ocorreu a extinção do SPI e criação da FUNAI. Entretanto, a política indigenista permaneceu ainda com proposta da integração do índio à comunhão nacional, conforme depreende-se da Lei 6001/1973 (Estatuto do Índio), ainda em vigor:

“Art. 1º Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional” (BRASIL, LEI 6001/1973).

Embora essa lei fizesse referência à preservação da cultura, em verdade ela objetivava seu apagamento ao considerar que os índios seriam integrados

progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional. Conforme veremos no

capítulo 3, os anos de 1960 são igualmente marcados pelo fantasma da extinção dos povos indígenas. Ademais, projetos de governo igualmente irão impactar e ameaçar a sobrevivência dos povos indígenas (vide Carta de Lévi-Strauss à Giaccaria no próximo capítulo).

Entretanto, a produção bibliográfica de Giaccaria e Heide iria na contramão destas propostas de integração, o que levaria ao apagamento da diversidade cultural, neste caso, dos Xavante. Conforme demonstrado anteriormente, uma série de cartilhas foram produzidas e publicadas a partir de 1967, cujo conteúdo estava diretamente voltado à realidade dos Xavante, ou seja, foram publicadas na língua Xavante. Neste sentido, os missionários da Missão Salesiana – juntamente com outros centros de estudos de línguas indígenas – ofereceram sua contribuição para sistematização da língua Xavante.

Giaccaria e Heide produziram, além das cartilhas, outros materiais didáticos igualmente em língua Xavante, usados no processo de alfabetização das crianças daquela etnia. Conforme Luciano (2007, p. 05), a proposta de uma educação escolar indígena diferenciada tem início na década de 1970 e na medida em que se fortalece o movimento indígena, ampliam-se as conquistas:

“A proposta de educação escolar indígena intercultural, bilíngue e diferenciada surgiu como contraponto ao projeto colonizador da escola tradicional imposta aos povos indígenas. Surgiu na década de 1970 entre os povos indígenas do Brasil, incentivados e apoiados por seus

aliados. Apenas duas décadas seguintes, o governo, através do Ministério da Educação, incluiu o tema na sua agenda de discussão, forçado pelas críticas e pressões dos índios e da opinião pública nacional e internacional, que acusavam o governo de etnocídio. É importante salientar que, a exemplo de outras políticas públicas voltadas aos povos indígenas, as mudanças que ocorreram na política educacional indigenista foram quase sempre homologatórias, ou seja, o governo foi forçado a reconhecer os avanços e as legitimidades das experiências inovadoras desenvolvidas pelas comunidades indígenas com apoio de suas assessorias. As iniciativas eram desenvolvidas como resistência aos modelos colonialistas e integracionistas e como estratégias de luta pela recuperação das autonomias internas e conquista de direitos coletivos, forçando mudanças nas estruturas jurídico-administrativas. Também é importante destacar que a partir deste período o centro das discussões acerca de novas políticas indigenistas foi saindo das instâncias do órgão oficial indigenista para a esfera das organizações indígenas que passaram a estabelecer novas relações de parceria política e técnica com outros setores do governo e da iniciativa privada”.

Portanto, antes que as discussões e debates sobre a escola indígena diferenciada, especifica e bilíngue entrassem em pauta no cenário nacional, Giaccaria e Heide e outros missionários salesianos já empreendiam na prática este projeto nos anos de 1960.

2.6. A mudança no olhar da Igreja Católica sobre os povos indígenas nos anos de 1960/1970

Para entender a produção bibliográfica e videográfica de Giaccaria e Heide é preciso igualmente compreender o contexto religioso vivido por eles. Nos anos de 1960, a Igreja Católica passou por uma grande transformação em virtude da realização do Concílio Vaticano II. No pós-concílio a Igreja Católica na América Latina passou a rever sua atuação. No Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB) criou em 1972 o Conselho Indigenista Missionário, o CIMI.

“A auto compreensão da Igreja pós-conciliar como “essencialmente missionária” permitiu um olhar mais concreto para o mundo e sua realidade. E essa Igreja missionária se compreende como povo de Deus em peregrinação, constituída pelos pobres que anseiam por sua libertação. Na diversidade de suas culturas codificaram seus múltiplos projetos de vida. Através da inculturação nestes projetos, a comunidade missionária vive o seguimento de Jesus. Na inculturação, o mistério da encarnação se contextualiza – no tempo, no espaço e na convivência – como lugar teológico (Santo Domingo, 13). Este é o

pano de fundo teológico da nova presença missionária junto aos povos indígenas que norteou o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Até o início dos anos setenta, não existia uma pastoral indigenista de conjunto. A pastoral junto aos povos indígenas estava predominantemente sob a responsabilidade de Prelazias, entregues a ordens e congregações religiosas. Estas, em sua maioria, obedeceram antes a lógicas congregacionais que a prioridades pastorais. Na época da fundação do CIMI, em 1972, a sociedade brasileira e as Igrejas locais, em seu conjunto, não acreditavam na possibilidade de que os povos indígenas poderiam ter um futuro próprio, como povos e nações.

[...]

Na década desenvolvimentista dos anos 70, seguida pela década perdida dos anos 80, as palavras “civilização”, “progresso” e “desenvolvimento” exerceram ainda um certo fascínio e sua contestação era difícil. Geralmente, considerava-se a questão indígena uma “causa perdida”. Parecia lógico que o caminho indicado para o futuro dos 90.000 (segundo dados do governo militar da época) ou 180.000 índios, segundo o recenseamento do CIMI de então, seria a integração nos padrões culturais e jurídicos da sociedade nacional e a assimilação étnica e religiosa. A perspectiva de integração na sociedade classista dispensaria a demarcação das terras dos índios e a sua proteção específica, a perspectiva da conversão dispensaria o diálogo inter-religioso e a inculturação. A integração, na chamada comunidade nacional, tornou-se a nova modalidade do etnocídio. [...]

Foi neste contexto, no contexto da construção da Transamazônica no governo do general Garrastazu Médici (1969-1974) e no contexto das denúncias de Barbados, que o CIMI iniciou seu trabalho com a “opção pelos povos indígenas”, propondo a ruptura com o modelo desenvolvimentista em marcha e assumindo uma pastoral específica, integral e amplamente articulada. Uma solução justa da questão das terras dos povos indígenas exigiria mudanças profundas do modelo econômico e sócio-político vigente, com seus pilares de acumulação, autoritarismo e hegemonia política do economicamente mais forte. Obviamente, essa opção causou conflitos, não somente frente ao Estado, mas também no interior das Igrejas locais [...]” (SUESS, 2002, p.19-21).

No documento de criação do CIMI, o salesiano Me. Adalberto Heide não está inserido como participante direto, mas como membro de uma congregação religiosa, ele tivera sua atuação marcada por reflexos deste processo de mudança da Igreja Católica.

As missões salesianas não ficaram alheias aos novos desafios impostos pelo Vaticano II: participaram da primeira assembleia do CIMI em Mato Grosso, conforme documento abaixo:

Imagem 10: Ata da I Assembleia do CIMI – MT (1974).

Na fonte documental acima, percebe-se que foram apontados os desafios a serem superados no Estado do Mato Grosso, sobretudo por ter missões em seu território. Abaixo, é possível identificar as assinaturas de salesianos e salesianas que faziam parte dessas missões:

Imagem 11: Partes de documento com assinatura dos participantes

da 1a Assembleia do CIMI – MT (1974).

Podemos observar que dos 31 participantes primeira assembleia do CIMI, 29 de agosto de 1974, ou seja do ato de sua fundação em Mato Grosso, 16 deles eram missionários que estavam trabalhando nas Missões Salesiana de São Marcos, Meruri e Sangradouro.

1 - Ir. Margarida Pernomian – Sangradouro;

2 - Irmãzinha Maji de Jesus – Tapirapé;

3 - Eugenio Rondon Aije Kuguri – (Cacique de Meruri);

4 - Pe. José Moschin – Sangradouro; 5 - Ir. Olga Lema – Meruri;

6 - Ir. Ada Gambarotto – Sangradouro; 7 - Salvatore Cosme – São Marcos; 8 - João Menon – São Marcos. 9 - Miguel P. Silva – São Marcos

10 - Diac. Valber Dias Barbosa. - Brasília.

11 - Pe. José de Maria e Silva. S.J. - Diamantino

12 - Osvaldo Scotti – Meruri; 13 - Ir. Rita Bramati – Meruri;

14 - Ivo Poletto – Dioc. de Goiás

15 - Luiz Gouveia de Paula – São Félix 16 - + Tomás Balduino – Bispo de Goiás 17 - Ir. G. Oliva;

18 - Eliseu Gomes – Goiás; 19 - Sou Eu Rosa Paresi;

20 - Rodolfo Lunkenbein – Meruri;

21 - Pe. Bartolomeo Giaccaria – Sangradouro;

22 - João Domstauder – Diamantino;

23 - Gonçalo Ochoa – Meruri;

24 - Nailo Sreuheoz;

25 - Hilda Guimarães – Meruri; 26 - Ir. Aparecida Zeferino – Meruri;

27 - João Bosco Penido Bournier – S.J.;

28 - Ir. Vittoria Alfonsina Priod Fma – São Marcos;

29 - Carlos Wahubtedewa – Chefe de Sangradouro;

31 - Thomás Aquino Lisbôa – S.J. Diamantino

Dentre os 31 participantes da Primeira Assembleia do CIMI em Mato Grosso, dois deles merecem aqui serem destacados: o Pe. Bartolomeu Giaccaria, cuja obra em parceria com o Me. Adalberto é objeto desta dissertação; e, o Pe. Rodolfo Lunkenbein, assassinado por fazendeiros quase dois anos depois da assembleia no pátio da Missão Salesiana de Meruri, em 15 de julho de 1976. Portanto, a presença missionária salesiana assumia na década de 1970 os novos desafios propostos pela renovação das ações da Igreja Católica no pós-Vaticano II.

Neste novo contexto novo contexto e olhar da Igreja Católica, Giaccaria e Heide certamente tiveram mais apoio em relação as atividades que já desenvolviam desde meados da década de 1950. Apoio e recursos financeiros foram fundamentais para que as obras dos autores fossem publicadas, e é notório que a Editora da Missão Salesiana foi a que mais os apoio na publicação das obras, que não teriam um apelo comercial e lucratividade editorial.

No entanto, mesmo que não houvesse apoio editorial, Giaccaria e Heide teriam trabalhado e coletado um corpus documental gigantesco sobre a história e a organização social dos Xavante, que teria sido utilizado por uma série de pesquisadores. Com esse apoio, a monumental obra de Giaccaria e Heide pode ter seus legítimos autores reconhecidos.

Diante disso, o próximo capítulo tratará das principais obras escritas de Giaccaria e Heide e das leituras e usos das mesmas por pesquisadores de diferentes áreas.

CAPITULO III

OS XAVANTE E SUAS HISTÓRIAS ESCRITAS NAS OBRAS DE GIACCARIA E HEIDE

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