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Recorte analítico das obras

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Conforme expusemos no Capítulo II, Giaccaria e Heide possuem uma extensa produção literária que é fruto de uma experiência pastoral e de trabalho entre os Xavante. Neste capítulo, objetivamos analisar três dessas obras nas quais podemos identificar as narrativas dos Xavante e suas histórias, documentadas pelos autores. A escolha destas obras não se deu arbitrariamente, mas se justifica pelo fato de que tratar-se de suas principais obras e que tiveram maior inserção no meio acadêmico.

Neste sentido, observamos que na maioria dos trabalhos (teses, dissertações e artigos) sobre os Xavante as obras em análise são amplamente citadas. Desta forma, assim como a Enciclopédia Bororo, escrita pelos Salesianos Pe. Cesar Albisetti e Angelo Jayme Venturelli, é leitura praticamente obrigatória para quem objetiva estudar aquela etnia, o mesmo se sucede para os estudiosos sobre os Xavante, o que nos leva a situá-los dentro das etnografias clássicas sobre estas etnias.

Diante disso, as obras analisadas serão: “Xavante (Auwẽ Uptabi: Povo Autêntico)” (1972), “Jeronimo Xavante Conta” (1975a) e “Jeronimo Xavante Sonha” (1975b).

Imagem 12: Capas das obras de Giaccaria e Heide

A obra Xavante (Auwẽ Uptabi: Povo Autêntico) (1972) foi escrita dezesseis anos após a chegada dos Xavante em Meruri e dez anos após sua transferência para a missão de São Marcos. Neste intervalo de tempo – após estruturarem-se na nova missão – os Xavante retomam suas práticas culturais, que despertaram grande interesse destes dois missionários que passaram a registrá-las. O encantamento pela forma de manifestação cultural e valores sociais Xavante, ou pela “grande riqueza de valores humanos”, a que se referem os autores, assim como o medo de que tais valores se percam os impulsiona a documentarem todos os aspectos da vida social Xavante. Neste sentido, pode-se afirmar que a obra Xavante (Auwẽ Uptabi: Povo Autêntico, 1972) insere-se nos mesmos modelos das etnografias clássicas ao abordar num mesmo volume todos os elementos constitutivos de uma sociedade humana (organização social, parentesco, tecnologias, economia, mitos, etc.).

Na obra Jeronimo Xavante Conta (1975a) os autores reafirmam o objetivo central de seu propósito em documentar a cultura Xavante, mas deixam claro que não fazem isso a partir da perspectiva antropológica:

“Para sossego dos leitores, declaramos que nós não somos antropólogos [...], nem temos a pretensão de interpretar o material que nesta obra apresentamos aos estudiosos e ao público em geral, ainda que saibamos que também uma simples transliteração implica numa interpretação! É muito difícil despir-se completamente do próprio etnocentrismo, quando se olha para uma cultura diferente da nossa” (GIACCARIA & HEIDE, 1975a, p.09).

A perspectiva apresentada nesta obra foi aquela expressa no encantamento pelos valores humanos (ou cristãos) identificados nas formas de organização social dos Xavante.

Mas o contrário também ocorreu, Jerônimo, busca a salvação da violência do “branco” e ressignifica Jesus Cristo de acordo com os referenciais culturais e sua visão de mundo. Segundo os autores:

“Daí a preocupação em achar um meio de salvar-se; no caso de Jerônimo, ver como ele achou uma "certa salvação" no aspecto religioso: serviu-se disso como alavanca para a preservação dos valores culturais próprios (Exemplo: Jesus Cristo que lhe "aparece" enfeitado como Xavante, trazendo maracá, urucu e pedindo para ser alegrado com cânticos, como fazem os velhos para pedir aos jovens que os alegrem com cantos e danças)” (GIACCARIA & HEIDE, 1975b, p.09).

Nesse contexto de encontro com o “outro”, os autores deixam claro, já na introdução de um dos livros de 1975, o estranhamento que tem em relação a forma com que os Xavante vivenciam seus sonhos, reconhecendo um “choque cultural”:

“Seguindo bem o relato dos contos, especialmente, os sonhos (não queremos entrar aqui na discussão se se trata de sonhos reais ou de uma simples "cegueira cultural"; para os Xavante os sonhos são "realidades"; tanto assim que, se um moço "dormindo" escutava em canto, não consegue dormir mais no restante da noite porque vai repetindo o que "ouviu", para depois podê-lo ensinar aos outros; se um adulto ou um velho sonha algo convoca imediatamente, seja qual for a hora da noite, a assembleia no pátio e transmite a todos a "mensagem" que recebeu, percebe-se o choque que houve entre a nossa cultura e a deles (reparar o plural, deles, porque não se trata só do Jerônimo, mas, de todo o grupo); vê-se o enorme esforço feito para se adaptar à nova cultura. A percepção, embora relativa, de que a cultura do branco iria destruir a deles” (GIACCARIA & HEIDE, 1975b, p.09).

No entanto, mesmo reconhecendo esse “choque de culturas”, os autores conseguiram burilar relações de alteridade suficiente para reconhecer a importância das narrativas míticas (dos contos) Xavante. Ao todo foram apresentadas 25 narrativas míticas, uma delas inclusive abordando “A Origem dos WARADZ'U” (p.215), ou seja, o surgimento do não índio, o branco.

Na outra obra, Jeronimo Xavante Sonha (1975b), os autores apresentaram um conjunto de 25 narrativas nas quais evidenciou-se os dramas vividos durante o período em que foram subjugados pelos não índios (os “brancos”). Embora o título da obra apresentou como SONHO, na realidade foram narrativas míticas nas quais a experiência do primeiro contato, as clivagens entre os diferentes grupos Xavante, assim como, a reordenação dos rituais após o primeiro contato ficam evidenciados. Conforme alertaram os autores:

“Os Xavante, evidenciamos, não fazem nenhuma distinção entre mitos, lendas, contos, sonhos. A divisão de volumes apresentada por nós é por motivos práticos. Parece-nos oportuno reunir neste volume os contos que, apesar de ser muito lendário, representam a história "ideal" do Povo Xavante desde 1860 até aos nossos dias, ou seja, a primeira pacificação, a volta à floresta, às lutas contra os brancos e seus relativos porquês. Há ainda o relato das várias tentativas feitas pelos Xavante para pacificar ("amansar", como dizem eles) o "terrível WARADZU", o branco. Isso, enquanto os nossos valorosos sertanistas estavam convencidos de ir "pacificar" os índios, eram, eles, os Xavante, que procuravam com artes mágicas, pacificar-nos. Seguindo bem o relato dos contos, especialmente, os sonhos (não queremos entrar, aqui, discussão se se trata de sonhos reais ou de uma simples "cegueira cultural"; para os Xavante os sonhos são "realidades"; tanto assim que, se um moço "dormindo" escutava um canto, não consegue dormir mais no restante da noite porque vai repetindo o que "ouviu", para depois pode-lo ensinar aos outros [...]” (GIACCARIA & HEIDE, 1975b, p.09).

Trata-se de obras fundamentais para se analisar os diferentes aspectos da cultura do povo Xavante, bem como sua trajetória histórica e sua resistência ao "terrível WARADZU".

3.2. As motivações da obra: entre preocupações com a perda da cultura e a

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