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Os “informantes” narradores de memórias e a tradição oral dos Xavante

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Foi a partir da narrativa dos Xavante que os autores adentraram a seara de escrever a história e os mitos desse povo, assim como descrever seus costumes e tradições.

Não se trata de um trabalho utilizando a metodologia da História Oral, que somente ganhou força na historiografia brasileira em meados da década de 1990, conforme Ferreira & Amado (2006). Seria um anacronismo esperar que autores que escreveram duas décadas antes tivessem diálogo com as posteriores reflexões metodológicas. Tampouco se trata de um trabalho eminentemente antropológico, pois os próprios autores não se colocaram nesta posição, conforme pudemos observar no livro “Jeronimo Xavante Conta” (p.09).

No entanto, os autores utilizaram da tradição oral dos Xavante para conseguirem ter aquilo que eles denominaram “êxito”:

“O bom êxito de nosso empreendimento deve ser atribuído à feliz circunstância de terem sido encontrados informantes, que, por um lado, conhecem perfeitamente todas as tradições e cerimonias tribais, e, por outro, souberam tomar consciência - coisa bastante difícil entre índios - de que a documentação, hoje, é o único meio que permite conservar e transmitir o próprio patrimônio cultural. Por isso, sobretudo esses se empenharam em narrar, repetir e corrigir qualquer informação, com um espírito de sacrifício, paciência e entusiasmo excepcionais.

Preciosa foi a colaboração de quatro jovens xavantes, de 23 a 24 anos, que, dominando perfeitamente a própria língua, falam também discretamente o português, sabem ler e escrever. Chamam-se: Carlos, João, Aniceto e Fernando. Nossa fonte principal tem sido dois velhos, não aculturados nem destribalizados: Jerônimo, o xavante vivo mais idoso, que, com seus 70 a 76 anos de idade, ainda conserva uma energia e uma lucidez de mente fora do comum; e Raimundo, também ele um dentre os mais idosos” (GIACCARIA & HEIDE, 1984 [1972], p.21-22).

O “êxito” dos autores foi possível graças à oportunidade e sagacidade que tiverem de poder ouvir e compreender o que os mais idosos narravam e que foi traduzido pelos mais jovens. Em primeiro lugar, conviver com anciões daquele povo foi ter acesso à memória coletiva do povo Xavante, que “[...] designa o caráter social da construção da memória humana” (HALBWACHS, 2006, p. 740).

O’Dwyer (2002, p.17) afirma que em sociedades tradicionais, como no caso dos Xavante, o caráter de identidade tem relação direta com a memória coletiva:

“A identidade étnica tem sido diferenciada de outras formas de identidade coletiva pelo fato de ela ser orientada para o passado. Este passado, entretanto, não é o da historiografia, mas o passado a que se referem os membros desses grupos representados pela memória coletiva, portanto, se aproxima de uma história que pode ser igualmente lendária e mítica”.

Portanto, a memória coletiva trazida pelos Xavante mais idosos foi carregada de importância por possuir uma dimensão de identidade atrelada à história daquele povo.

O segundo elemento que permitiu tal “êxito” foi o fato de os mais velhos narrarem para os mais jovens histórias/mitos, tradições e costumes que são partes da “tradição oral” presente nos povos indígenas:

“Fortemente enraizados na tradição oral, os povos indígenas, sobretudo na América do Sul, elaboraram ao longo dos tempos, complexos sistemas políticos e hierárquicos que tem na oratória a sua mola mestra. As palavras têm força de lei e são sinônimos de poder político e religioso. É através da língua que são passados, de geração em geração todos os preceitos básicos de cada sociedade indígena, como a identidade, os costumes, o modo de ser e, por que não, as formas de sobrevivência” (BRINGMANN, 2012, p. 11).

Portanto, existia uma tradição oral antes do trabalho dos autores de buscar as narrativas e memórias dos Xavante, e esse elemento facilitou a dinâmica da busca das fontes por parte dos autores. Uma tradição oral que foi utilizada para a gravação de relatos orais diversos:

“A pesquisa começou em São Marcos: Aniceto, após ter aprendido a usar o gravador começou a interrogar Raimundo e a escutar histórias e ensinamentos, como um discípulo escuta o mestre. Este sistema, embora artificioso, tomou-se muito apropriado, porque, após os primeiros dias, o jovem se entregou à tarefa, não como simples executor, mas com interesse e paixão pessoal, alimentada continuamente pela descoberta, a cada passo, do desenvolvimento da história, dos aspectos por ele ignorados da vida xavante, que o induziam a fazer outras perguntas, a pedir explicações, a conduzir a pesquisa por sua iniciativa.

[...]

De nossa parte, iniciamos outra pesquisa de base, sem tomar conhecimento do resultado da primeira, com a ajuda do velho Jerônimo, que nos contou os ritos e tradições xavantes em seus particulares e executou para nós uma por uma as cerimônias, os cantos e as danças. Jerônimo, em suma, era o mestre, e nós o escutávamos, aprendíamos, esforçando nos por compreender o que o velho nos narrava na língua xavante. No fim de cada lição, o jovem Carlos repetia tudo em xavante e, depois, em português, e nós, por nossa vez, com Luciano Lessi, aprofundávamos com oportunas perguntas, fixando por escrito a tradução” (GIACCARIA & HEIDE, 1984 [1972], p.22).

Apesar das ponderações possíveis sobre divergências nas traduções, é perceptível que os jovens igualmente estavam inseridos no contexto da tradição oral. A postura de ouvintes assumida pelos jovens, (conforme veremos adiante), foi algo importante para os mais idosos, que confiaram a eles as histórias/mitos e costumes e tradições ensinadas.

Um último elemento fundamental que contribuiu para o “êxito” da pesquisa que resultou nas obras, foi a convivência dos autores e demais salesianos com os Xavante. Essa convivência missionária permitiu uma aproximação e vivência da rotina da aldeia e garantiu que os anciãos e jovens colaborassem com o trabalho desenvolvido. Ademais, a situação do contato, assim como a inserção dos Xavante noutras dinâmicas socioculturais, igualmente contribuíram para que se criasse uma consciência sobre a necessidade de se produzir “documentos”, que foram fundamentais no processo de reconhecimento de seus territórios tradicionais. Desta forma, a oralidade e as narrativas instrumentalizaram-se enquanto armas políticas na busca por reconhecimento de direitos.

Essa experiência e vivência dos salesianos junto aos Xavante permitiram tal colaboração dos informantes e também se complementaram como mais informações que haviam sido observadas por outros salesianos, conforme relatado:

“Finalmente, usamos também da experiência e das observações de todos os missionários e missionárias (FMA), que há muitos anos labutam para salvar, na sua integridade étnica e cultural, o grupo dos Xavantes. Dentre eles, recordaremos, de modo especial, o Pe. Pedro Sbardellotto, Pe. Luís Lorenzi E Pe. Mário Panziera, o coadjutor Francisco Fernandes e, sobretudo, o Pe. César Albisetti e Pe. Ângelo Venturelli, autores da Enciclopédia Bororo, - cujos conselhos foram de ajuda valiosíssima” (GIACCARIA & HEIDE, 1984 [1972], p.22).

Vivências, experiências, olhos e ouvidos atentos foram necessários para desenvolver a pesquisa que os autores apresentaram em sua obra. Certamente o elemento mais significativo desse trabalho foi de transpor as barreiras religiosas da Igreja Católica e conseguir olhar, ouvir e registrar mitos dos Xavante que narram uma outra origem que diverge do Gênese bíblico, por exemplo. Os autores afirmam que:

“Ao escrever a obra, não descuidamos as lendas xavantes Os mitos fundamentais, cerca de quarenta, são de extrema importância para a compreensão da cultura xavante. Porque requerem aprofundamentos ulteriores e verificações que não nos foi possível concluir, deles não tratamos expressamente” (GIACCARIA & HEIDE, 1984 [1972], p.22).

Certamente foi necessário um exercício de alteridade que permitisse ouvir a explicação e a narrativa mítica do “outro”. E ao fazerem esse trabalho, Giaccaria e Heide construíram uma narrativa capaz de criar representações sociais dos Xavante que ficaram ali registradas, bem como elaborar uma narrativa daquilo que seria uma das histórias escritas do povo Xavante, os Auwẽ Uptabi, um povo autêntico.

Os autores tiveram uma clara consciência de sua situação social, ou seja, missionários de uma congregação religiosa pertencente à Igreja Católica e com uma visão de mundo consolidada, e que estavam diante do “outro”. Os autores afirmaram que “[...] É muito difícil despir-se completamente do próprio etnocentrismo,

quando se olha para uma cultura diferente da nossa” (GIACCARIA & HEIDE,

1975a, p.09). Apesar desta postura relativizadora e a própria autocrítica, as obras apresentam posturas nas quais não foi de fato possível despir-se por completo do etnocentrismo em detrimento de uma idealização do modo de ser Xavante colocado em paralelo com o ideal da moral cristã católica.

No entanto, há de se ponderar o quanto o olhar dos autores foi profundo ao reconhecer nesse povo um povo verdadeiramente autêntico. Este encantamento, por vezes idealizado, está evidente no próprio título de uma das obras - Xavante Auwẽ Uptabi: povo autêntico” (1972).

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