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As motivações da obra: entre preocupações com a perda da cultura e a

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Na apresentação da obra escrita em 1972, Egon Schaden ressalta a importância dos dados etnográficos presentes na obra “XAVANTE Auwẽ Uptabi: povo autêntico”:

“Não há pois, necessidade de insistir na importância dos dados etnográficos recolhidos com notável dedicação e espirito objetivo pelo Padre Giaccaria e enriquecidos com as magníficas ilustrações de Adalbert Heide. Pelo estilo sóbrio e isento de veleidades literárias, pela maneira cautelosa com que apresenta os fatos, bem como pelo cuidado com que se abstém de hipóteses arrojadas, o autor capta desde logo a confiança do especialista, que encontra nesta obra numerosos elementos não registrados por outros pesquisadores” (SCHADEN, in: GIACCARIA & HEIDE, 1984 [1972], p.5).

Mas para além dos dados objetivos (passíveis de análises e críticas) os livros analisados foram escritos por um padre e um Irmão (Mestre) imersos num projeto missionário de uma congregação religiosa, os Salesianos, o que resultaria numa visão particular sobre os povos indígenas. Homens “de carne e osso”, com sentimentos e emoções pelo povo Xavante, o que pôde ser observado na leitura que Egon Schaden fez da obra e que expressa no seguinte trecho:

“Mas se, por um lado, as páginas deste livro revelam objetividade que caracteriza o trabalho cientifico, não deixa, por outro, de haver nelas calor humano e a consciência de responsabilidade necessária à solução dos problemas indígenas. Escrita com simpatia pelo índio, sem o alarde sensacionalista e contraproducente hoje em voga, a obra contribuirá para a compreensão humana de que o aborígine, arrancado de suas primitivas condições de vida, precisa não apenas para poder sobreviver, mas também para conquistar um lugar digno no mundo atual. Ajudará a educar o branco, para que, superando os seus tão arraigados preconceitos, seja capaz de assumir, nas relações com o índio, a atitude de justiça que tantas vezes lhe tem faltado” (SCHADEN in GIACCARIA & HEIDE, 1984 [1972], p.6).

Nesse misto de visão de mundo salesiana mesclada com um olhar em relação ao “outro”, as obras foram sendo escritas na década de 1970. Essa década não pode deixar de ser contextualizada, uma vez que o mais aclamado antropólogo

da época, Claude Lévi-Strauss havia escrito na metade da década anterior o clássico artigo “A crise moderna da Antropologia” onde aponta o caso do Brasil em que 100 aldeias foram extintas entre os anos de 1900 a 1950, e ainda alertando para o desaparecimento de uma outra forma, quando “[...] dissolvem, incorporando-se, de maneira mais ou menos rápida, à civilização que os cerca” (LÉVI-STRAUSS, 1962, p. 20).

O temor sobre o desaparecimento dos povos ditos “primitivos” difundiu-se no senso comum sob influência marcante das teorias antropológicas de cunho evolucionista nos primórdios do surgimento daquela ciência. Neste sentido, James George Frazer (1908) alertava para que os “primitivos” fossem salvos sob o risco de se perderem “documentos humanos” que explicariam a evolução social da humanidade.

“Pelo que estou dizendo, espero que vocês tenham formado alguma ideia da extrema importância do estudo da vida selvagem para um entendimento adequado dos primórdios da história da humanidade. O selvagem é um documento humano, um registro dos esforços do homem para se elevar acima do nível da besta” (FRAZER, 1908, p.121).

[...]

“No conjunto total do conhecimento humano hoje existente, não há necessidade mais urgente do que a de registrar essa inestimável evidência da história primitiva do homem antes que seja tarde demais. Pois logo, muito logo, as oportunidades que ainda temos terão desaparecido para sempre. Em mais um quarto de século, provavelmente restará pouco ou nada da velha vida selvagem para registrar. O selvagem, tal como ainda podemos vê-lo, estará tão extinto quanto o pássaro dodô. As areias estão caindo rapidamente na ampulheta; a hora logo soará; o registro será fechado; o livro será selado” (FRAZER, 1908, p.124).

Esse temor que rondou a antropologia foi ao encontro a uma prática experimentada pelos salesianos de tentar documentar, gerar fontes históricas, capazes de resistir ao possível desaparecimento daquele povo, daquela cultura:

“A finalidade principal desta obra é documentar, quanto possível os costumes, as tradições e a civilização de um povo, que muitos acham destinado a desaparecer, como já aconteceu a tantos grupos étnicos da América do Sul, dos quais nem sequer restam traços.

Verificada essa hipótese, perderíamos nós a grande riqueza de valores humanos, até então conservados intactos, nas savanas e florestas amazônicas, apesar das insídias dos conquistadores brancos. De seu influxo, por longo tempo, os xavantes souberam subtrair-se completamente, conservando intactas suas tradições. Hoje estão rodeados pela civilização dos brancos que procurou e procura destrui-los não só física, mas também eticamente faltado” (GIACCARIA & HEIDE, 1984 [1972], p.21, grifos nossos).

Os dois parágrafos acima são introdutórios da obra “XAVANTE Auwẽ Uptabi: povo autêntico”, e ao manifestar imediatamente essa preocupação demonstra claramente as motivações e finalidades que permearão toda a obra.

Um desejo expresso de ter um “patrimônio cultural” formado a partir de um arquivo de costumes e tradições se consolida como um dos objetivos do trabalho missionário como um todo e é sintetizado em suas obras escritas e aqui analisadas.

“Foi o conhecimento do que está acontecendo que nos induziu a pesquisar e recolher, no menor tempo possível, a maior quantidade de documentos e informações sobre a civilização xavante, trabalho este que se tem alongado por mais de doze anos, sem, contudo, pretender ser completo” (GIACCARIA & HEIDE, 1984 [1972], p.21).

Essas motivações e preocupações fizeram com que os autores passassem a recolher informações dos próprios Xavante para escreverem suas obras. Além do mais, a metodologia inicialmente adotada – treinar jovens para o uso de gravadores, trabalhar posteriormente e rever material coligido com os interlocutores – aproxima- se muito do método etnográfico e orientações cunhadas por Bronislaw Malinovski em sua magistral obra “Argonautas do pacifico ocidental: Um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia” (1922).

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