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A observação, a arte, a ciência e o desenho

3.2 Arte, percepção, observação e cognição

3.2.2 A observação, a arte, a ciência e o desenho

Uma observação apurada se faz necessária tanto para as atividades artísticas como para as atividades científicas. Existem muitos recursos para desenvolver, dirigir, focalizar e ampliar a capacidade de observar (de dirigir a atenção), e uma delas é o desenho.

O desenho é uma notação gráfica realizada a partir das observações (prévias ou posteriores) de um objeto observado. Nesse sentido, o desenho é um instrumento valioso para a ação cognitiva. Pois, enquanto se está desenhando, também se está conhecendo o objeto desenhado. Não apenas a forma, mais alta, mais arredondada, menos acentuada..., mas inclusive as qualidades intrínsecas do objeto observado.

Em se tratando das artes visuais, a palavra observar nos remete, naturalmente, à lembrança do desenho de observação.

Picasso relatou como aprendeu a desenhar com seu pai, que era professor de arte:

Lembro de meu pai me dizendo: ‘Vejo de bom grado a idéia de você se tornar pintor, mas não deve começar a pintar enquanto não souber desenhar bem, e isso é muito difícil’. Então ele me deu o pé

de uma pomba para praticar. Apareceu depois para olhar meu trabalho e criticá-lo. Meu pai me obrigou a desenhar o pé da pomba muitas e muitas vezes. Por fim chegou o dia em que ele me deu permissão para ir em frente e desenhar o que eu quisesse... Quando eu estava com 15 anos, conseguia desenhar rostos e corpos, e composições muito grandes, muitas vezes sem modelos; simplesmente porque, ao praticar com o pé da pomba, aprendi a captar o mistério das linhas, e até de nus. Tendo aprendido a observar uma coisa, aprendi a observar e descrever todas as outras (PICASSO, apud: ROOT-BERNSTEIN, 2001, p. 42).

Desenhar significa concentrar a atenção no objeto (imaginário ou real) e coordenar o sistema motor com o sistema sensorial na execução de uma ação. Ou seja, os olhos (e os outros órgãos sensoriais) têm de ser treinados, tanto na observação (percepção dirigida) quanto na notação, conjuntamente. O ato de observar enquanto se desenha aciona mecanismos neurais que possibilitam que a pessoa possa compreender o objeto observado de outra forma. Esse é um aprendizado que exige tempo e esforço, e as lembranças das horas empreendidas numa tarefa dessa natureza podem lhe remeter a doces ou tortuosas recordações.

Tanto tempo e esforço empregados para aprender a desenhar, será que vale a pena? Será que esse foi um tempo bem empregado ou totalmente desperdiçado? Qual a utilidade de traçar algumas linhas num papel se a pessoa nem ao menos deseja ser artista?

Grandes mestres, tanto artistas como cientistas, compreenderam que a facilidade manual está intrinsecamente ligada à maestria da observação - e vice- versa. Na verdade, muitos acreditam que aquilo que a mão não consegue desenhar, os olhos não conseguem enxergar e a mente formular.

relatou, em sua autobiografia, que sua capacidade de observar acompanhava seu prazer em desenhar desde a infância:

[...] eu estava com oito ou nove anos e tinha uma irresistível vontade de desenhar, de colorir as paredes recém pintadas da vila com todo tipo de desenhos, cenas militares e touradas... mas como não podia desenhar em casa, pois meu pai considerava o desenho uma distração nefasta... saía ao campo... e desenhava cavalos, carretas, vilarejos e paisagens que me parecessem interessantes... e que guardava como ouro em pó... traduzindo meus sonhos no papel, tendo meu lápis como uma varinha mágica, eu criei o mundo que desejei, habitado por todas aquelas coisas que nutriam meus sonhos... tudo passava através de meu lápis agitado (RAMÓN y CAJAL, 1939, p.18).

O tempo passou, e Cajal, até o final de sua vida, nunca deixou de desenhar. Para ele o desenho era ao mesmo tempo tanto uma maneira de entender o tema escolhido como também uma ferramenta capaz de dar suporte à sua imaginação. E como tudo isso era realizado com prazer, esse ciclo se auto- alimentava gerando o que é denominado como um ciclo de feedback positivo.

Ao tornar-se médico e assumir a Cátedra de Anatomia, Cajal passou infinitas horas desenhando e estudando. Ele desenhava o que observava tanto na dissecação dos cadáveres como nas lâminas ao microscópio. Desenhou todas as ilustrações de seus estudos de anatomia geral. A maioria das pessoas provavelmente supõe que ele desenhava diretamente a partir do que via, mas não era assim. Cajal relatou que passava a manhã preparando e observando dúzias de seções do cérebro ou da coluna vertebral. E então, depois do almoço, desenhava aquilo de que se lembrava. Em seguida, comparava seus desenhos com os preparados. Analisava as diferenças, depois desenhava de novo, repetindo esse

processo muitas e muitas vezes. Só quando os desenhos que fazia de memória captavam a essência do que ele tinha visto numa série inteira de preparados é que os considerava prontos.

Seus desenhos captavam tão acuradamente a essência da anatomia neurológica que, até hoje, mesmo com toda a tecnologia da fotografia digital, muitos autores de livros didáticos ainda os preferem, por sua clareza e concisão. Ao contrário de uma fotografia, que é a imagem de um espécime único, cheio de detalhes desnecessários, os desenhos de Cajal mostram aos estudantes o que eles devem procurar em meio ao aglomerado de detalhes de seus próprios espécimes.

E foi através dessa prática que, e passo em passo, de desenho em desenho, de investigação em investigação, Cajal chegou a formular, testar e comprovar a Teoria Neuronal,com a qual recebeu o premio Nobel31.

Como Cajal bem sabia, só olhar, mesmo que pacientemente, não basta. Parte do ato de ver é saber o que olhar ou procurar. Desse modo, o verdadeiro talento consiste em fazer uma discriminação visual que seja ao mesmo tempo sintética e abrangente. E o desenho pode se tornar uma ferramenta valiosa nesse processo.

Cajal descreve sua incessante busca científica com uma metáfora, onde compara as mariposas com os neurônios contidos na massa cinzenta encefálica. “Como el entomólogo a caza de mariposas de vistosos matices, mi

atención perseguía, en el vergel de la sustancia gris, células de formas delicadas y

31

O estudo detalhado do sistema nervoso teve início no século XIX. Antes das descobertas de Cajal, os conhecimentos sobre a estrutura individual do sistema nervoso e as conexões entre os neurônios eram puramente especulativos. Essa falta de conhecimento era principalmente devido ao fato que os métodos apropriados para visualizar os neurônios não eram apropriados ou mesmo disponíveis. Entretanto, em 1873, Camillo Golgi desenvolveu um método que pela primeira vez tornava possível observar os neurônios em sua totalidade em preparações histológicas: soma (corpo), dendritos e axônios. Dessa forma, os neurônios marcados com o método de Golgi indicaram os seus detalhes morfológicos refinados, e conduziram, finalmente, à sua caracterização e classificação, bem como ao estudo de suas possíveis conexões, feito por Cajal.

elegantes, las misteriosas mariposas del alma cuyo batir de alas, quién sabe si esclarecerá, algún día, el secreto de la vida mental”. (RAMÓN y CAJAL, 1939, p.

20).

Com seu “lirismo científico”, como ele mesmo denominava, Cajal foi capaz não só de observar, classificar e descrever o neurônio, como também visualizou, formulou e comprovou a maneira pela qual os neurônios se comunicam. Na época essa formulação foi surpreendente. (ver anexo)

Kandel apropriadamente percebeu que “o que distinguiu Cajal de seus

contemporâneos foi sua capacidade de superar a descrição anatômica. Ele tinha capacidade de olhar para a estrutura estática - uma secção anatômica no microscópio - e obter noções sobre o seu funcionamento.” (KANDEL, 2003, p. 41).

Observar, e traduzir de alguma forma o que observamos, é realmente uma faculdade mental, uma tarefa cognitiva. Não conseguimos sensibilizar a atenção se não soubermos para o que olhar e como olhar. Como escreveu Rudolf Arnheim, “As operações cognitivas chamadas de pensamento não são privilégio de

processos mentais superiores ou ulteriores à percepção, mas os ingredientes essenciais da percepção propriamente dita.” (ARNHEIM, 1980).

A observação, quando acompanhada pelo desenho, disciplina e reforça a atenção; assim como desenvolve tanto a capacidade de observação (sistema sensorial) quanto de manipulação (sistema motor).

Na verdade, muitos de nossos maiores cientistas fizeram os cursos regulares de educação artística, entre os quais Louis Pasteur, Joseph Lister, Frederick Banting, Charles Best, Albert Michelson, sir W. Lawrence e sir W. Henry Bragg, Mary Leakey, Desmond Morris, Konrad Lonrenz e Bert Holldobler. Embora as aulas de desenho para cientistas e médicos sejam muito mais raras hoje em dia do que no

passado, ainda se reconhece que, nas palavras do médico Edmundo Pellegrino, ‘A habilidade do médico começa com o olho - seu principal instrumento de diagnóstico... O médico e o artista estão unidos por sua necessidade de uma percepção visual especial. Os dois vêem; mas, para ambos, a visão precisa transcender as aparências. Como diz Paul Klee, A arte não transforma o visível; torna visível. O médico precisa ir além das imagens para compreende o que aflige o paciente (ROOT-BERNSTEIN, 2001, p. 55).

O observar que transcende as aparências poderia ser considerado imaginação? A partir de que ponto uma observação pode tornar-se imaginação? Esses limites não são nítidos. Talvez porque ao observar naturalmente ativemos a imaginação e vice-versa.

É observando e imaginando que novas idéias são concebidas. Essa parece ser uma maneira de estimular e despertar a mente para várias invenções. E era assim que agia Leonardo da Vinci. Leonardo da Vinci recomendava a si mesmo e aos outros:

Observem uma parede cheia de manchas, ou feita com vários tipos de pedras; se você tiver de criar um cenário, poderá descobrir uma semelhança com diferentes tipos de paisagens, ornadas com montanhas, rios, rochas, árvores, planícies, amplos vales e colinas em varias disposições: ou, também, poderá ver batalhas e figuras em ação ou estranhos rostos e trajes, e uma infindável variedade de objetos que podem ser reduzidos a formas completas e bem desenhadas (DA VINCI, apud: KEMP, 2005).

Da Vinci era um grande observador, nenhum de seus precedentes ou contemporâneos produziu nada comparável em alcance, brilho especulativo e intensidade visual. Em seus cadernos de anotações, muitos de seus desenhos são

acompanhados de palavras, assim como longos textos que escreveu raramente deixavam de ter ilustrações. Leonardo era um supremo visualizador, um mestre manipulador de esculturas mentais, e quase tudo que escreveu se baseava na prática de sua observação e representação.

Para Da Vinci,nenhum conhecimento era válido se não fosse derivado da experiência. Ele atribuía grande valor ao experimento - embora não da maneira sistematicamente moderna, “ciência experimental”. Ficava tão satisfeito com as

provas derivadas de suas observações dos fenômenos em seu estado natural e com

os resultados de experimentos pensados, quanto com os testes controlados usando situações especificamente planejadas. Às vezes, quando realmente realizava um teste planejado, escrevia “sperimentata” sob o desenho correspondente — para indicar que os resultados observados eram conclusivos.

Contudo, é interessante notar que essa forma rigorosa de observar não suprimia sua imaginação. Ao contrário, tão grande era a fertilidade de sua imaginação - que ele chamava de fantasia - que esse modo de observar de “pés no

chão” preparou uma sólida base da qual Leonardo pode alçar vôo, de modo

surpreendente. O ideal que estabeleceu para sua fantasia era o de expressar grandes verdades sobre a base segura do conhecimento de todas as coisas naturais.

Desde o primeiro momento, ao conceber uma obra, Leonardo da Vinci exercia sua fantasia de um modo extraordinário e inovador. Ele produzia um vulcão cerebral no papel. Observando seus cadernos de anotações, notamos que, em algumas páginas (ao contrário de outras), ele escrevia furiosamente, sobrepondo alternativas em emaranhados densos e pulando de uma parte da folha para outra, cheio de idéias, algumas sugeridas de modo instantâneo, acidental, dentro da

própria confusão gráfica. Como escreveu:

Oh pintor! Quando compuseres tua narrativa pintada, não desenha os membros das tuas figuras com contornos firmes, ou acontecerá contigo o que acontece com muitos pintores que desejam que cada pequeno traço de carvão seja definitivo... Já refletiste sobre os poetas que, ao compor seus versos, são incansáveis em sua busca da bela literatura e não se importam em apagar alguns daqueles versos a fim de melhorá-los? Portanto, pintor, decide de modo geral a posição dos membros de tuas figuras e atenta primeiro para os movimentos apropriados às atitudes mentais das criaturas na narrativa, mais do que a beleza ou à qualidade de seus membros. Deverias entender que se essa composição rudimentar termina por ser adequada à tua intenção, ela ficará ainda mais satisfatória ao ser, subseqüentemente, adornada com a perfeição condizente a todas as tuas partes (DA VINCI, apud: ZÖLLNER, 2005, p. 60).

Ele percebia claramente que a fantasia (imaginação) abre para o observador um leque de possibilidades, que posteriormente serão selecionadas durante o processo da invenção.

O observar dá sentido a uma sensação e ativa a imaginação. Esse sentido poder ser registrado de diversas formas: desenhando, escrevendo, compondo música, falando, atuando, dançando... Se considerarmos, por exemplo, a literatura, temos que escrever e ler já exige um aprendizado, mas para se tornar um escritor ou poeta, esse aprendizado terá de se estender aos outros domínios. Os domínios da imaginação, da fantasia, da invenção e da criação.

Escrever, como toda e qualquer atividade, também requer uma capacidade de observação aguçada. O escritor, assim como o pintor, ou o ator, ou o cientista, ou o estudante, ou o professor... não só vive experiências, ele as analisa também e as transforma em suas obras. O desenvolvimento da trama verossímil

depende de um vasto conhecimento de como os outros reagem a palavras, gestos e atos. Estimular a sensação no leitor também depende da percepção da sensação em si mesmo.

Não é por acaso, que tantos poetas e romancistas estudaram as artes visuais, entre eles William Blake, J.W. von Goethe, G. K. Chesterton, Thomas Hardy, Mikhail Lermontov, Alfred, lord Tennyson, Theodore H. White, Henry Miller e e.e.cummings... William Makepeace Thackeray, por exemplo, não fazia apenas anotações escritas para seus livros, usava também lápis e pincel, com as irmãs Brontë, Antoine Saint-Exupéry, George Du Maurier e J. R. R. TolKien desenhavam a ação que queriam descrever com palavras (ROOT-BERNSTEIN, 2001, p. 54).