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A organização da política habitacional: da Política Nacional de Habitação ao Programa

2.4 A garantia do direito à moradia no Direito brasileiro

2.4.2 A organização da política habitacional: da Política Nacional de Habitação ao Programa

Um importante marco normativo para a consolidação da política habitacional com vistas à garantia do direito à moradia da população de baixa renda é a Lei 11.124/2005, que cria o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS). Antes de explicar como funciona o SNHIS, é preciso contextualizá-lo dentro dos marcos da Política Nacional de Habitação e do Sistema Nacional de Habitação, que são mais amplos.

A Política Nacional de Habitação (PNH), criada em 2004, organizou o Sistema Na- cional de Habitação (SNH), que por sua vez “organiza os agentes que atuam na área de habita- ção e reúne os esforços dos três níveis de governo e do mercado, além de cooperativas e asso- ciações populares” (BRASIL, 2010, p.14). Tal desenho, estritamente ligado a criação do Mi- nistério das Cidades e a realização da I Conferência das Cidades em 2003, durante o primeiro governo Lula, e faz parte de uma reorganização institucional e legal para o setor habitacional no país (BRASIL, 2010).

A PNH tem como objetivos: universalizar o acesso à moradia digna em um prazo a ser definido no Plano Nacional de Habitação; promover a urbanização, regularização e inserção dos assentamentos precários à cidade; fortalecer o papel do Estado na gestão da política e na regulação dos agentes privados; tornar a questão habitacional uma prioridade nacional; demo- cratizar o acesso à terra urbanizada e ao mercado secundário de imóveis; ampliar a produtivi- dade e melhorar a qualidade na produção habitacional; incentivar a geração de empregos e renda dinamizando a economia, apoiando-se na capacidade que a indústria da construção apresenta em mobilizar mão de obra; utilizar insumos nacionais sem a necessidade de importação de ma- teriais e equipamentos; e contribuir com parcela significativa do Produto Interno Bruto (BRA- SIL, 2004).

40 Disponível em <https://raquelrolnik.wordpress.com/2010/03/28/traducao-nao-oficial-do-texto-utilizado-na- aprova cao-da-resolucao-sobre-megaeventos-pelo-conselho-de-direitos-humanos/>. Acesso em: 6 fev. 2016.

A PNH tem entre seus princípios que a questão habitacional deve ser encarada como uma política de Estado, “[...] uma vez que o poder público é agente indispensável na regulação urbana e do mercado imobiliário, na provisão da moradia e na regularização de assentamentos precários” (BRASIL, 2004, p. 30), mas até o momento não foi institucionalizada em lei, sendo citada, contudo, na Lei do SNHIS.

Por sua vez, o Sistema Nacional de Habitação tem como instância central de plane- jamento o Ministério das Cidades e o Conselho das Cidades, sendo o primeiro responsável pela gestão e o segundo pelo acompanhamento e avaliação da implantação do sistema e de seus instrumentos (BRASIL, 2010). O Sistema é subdivido no Sistema Nacional de Habitação de Mercado (SNHM), e o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS).

De acordo com Ministério das Cidades (2004), a Lei 10.931/2004, que dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, letra de crédito imobiliário, cédula de crédito imobiliário, cédula de crédito bancário e a Resolução do Conselho Monetário Nacional (CMN) nº 3177, de 8 de março de 2004 criam um ambiente favorável para a produção habita- cional de mercado.

Nabil Bonduki (2014) explica que a Resolução do CMN passou a exigir que os bancos utilizassem recursos da poupança para financiar a habitação, como determina a Lei do Sistema Financeiro de Habitação, e que a Lei 10.931/2004 deu segurança jurídica ao mercado ao criar a alienação fiduciária e obrigar o pagamento do incontroverso no caso de conflito jurí- dico entre o mutuário e o agente financeiro. Ele explica que essas medidas geraram um grande crescimento na produção e venda de unidades para o setor médio, o que

[...] contribui para o enfrentamento do déficit, pois o mercado formal e informal de moradias funciona como vasos comunicantes. A falta de oferta no segmento médio tende a elevar o custo das moradias populares, mesmo se informais e a ‘sugar’ as unidades de habitação social, produzidas com subsídio, para quem dele não tem necessidade, como aconteceu em toda a história da produção pública (p. 307).

Retomando as considerações sobre a Lei do SNHIS, vale salientar que ela é oriunda do projeto de iniciativa popular e criou também o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) com o respectivo conselho gestor, bandeira histórica dos movimentos de mo- radia articulados no Fórum Nacional da Reforma Urbana. O projeto tramitou desde o início da

década de 1990 no Congresso Nacional até a sua aprovação em 2005 (CARDOSO; ARAGÃO, 2013; BRASIL, 2010).41

O Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social deve centralizar todos os pro- gramas e projetos destinados à habitação de interesse social, observando-se a legislação espe- cífica de cada um deles (art. 3º), e tem por objetivos viabilizar para a população de menor renda o acesso à terra urbanizada e à habitação digna e sustentável; implementar políticas e programas de investimentos e subsídios, promovendo e viabilizando o acesso à habitação voltada à popu- lação de menor renda42 e articular, compatibilizar, acompanhar e apoiar a atuação das institui- ções e órgãos que desempenham funções no setor da habitação (art. 2º).

De acordo com os princípios do SNHIS, a moradia digna é um direito e um vetor de inclusão social (art. 4º, I, b). Entre as suas diretrizes está a utilização prioritária de terrenos de propriedade do Poder Público para a implantação de projetos habitacionais de interesse so- cial (art. 4º, II, c). Tal diretriz é importante para fazer cumprir a função social da propriedade pública, tendo em vista que existem bancos de terras públicos inutilizados, além de diminuir o custo com aquisição da terra. Por outro lado, existem inúmeras finalidades sociais que podem e devem ser atendidas com os terrenos públicos, não devendo os terrenos privados que não cumprem a função social ser descartados da prioridade de atendimento habitacional, em espe- cial se dotados de infraestrutura e centralidade urbana.

São integrantes do SNHIS o Poder Público, os Conselhos das Cidades nas três es- feras; quaisquer entidades privadas que desempenhem atividades na área habitacional, inclu- indo fundações, sociedades, sindicatos, associações comunitárias, cooperativas habitacionais e agentes financeiros autorizados pelo Conselho Monetário Nacional a atuar no Sistema Finan- ceiro da Habitação (SFH).43

41 Na Câmara dos Deputados, o PL 2.710/92; no Senado Federal, PLC 036/2004. O projeto originalmente protocolado na Câmara criava o Fundo Nacional de Moradia Popular e o Conselho Nacional de Moradia Popular. De acordo com a informação da Câmara, o projeto foi apresentado em 19 de janeiro de 1992, embora as referências acima citadas informem que o projeto tramitava desde 1991. Disponível em: <http://imagem.camara.g ov.br/Imagem/d/pdf/DCD08ABR1992.pdf#page=51>. Acesso em: 05 jan. 2016.

42 A Lei 9638/98, que dispõe sobre a transferência de bens da União para apoio à realização de programas de provisão habitacional ou de regularização fundiária de interesse social, define população de baixa renda como aquela que possui renda familiar mensal não superior a cinco salários mínimos (art. 31, parágrafo 5º)

43 A respeito da participação da sociedade civil no SNHIS, Patrícia Cardoso (2008, p. 19) traz que: “[...] considerando o papel histórico de referidas entidades, principalmente das associações comunitárias e das cooperativas habitacionais, no processo de formulação de tal sistema, consolidado no sistema positivo brasileiro de forma concomitante ao reconhecimento do direito à cidade e do conceito de gestão democrática da cidade, é fundamental na composição do sistema federativo o reconhecimento dessas entidades da sociedade civil como agentes promotores da política habitacional de interesse social”.

O SNHIS opera com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e de outros que venham a ser incorporados (art. 6º).

De acordo com o art. 11 da Lei do SNHIS, os recursos do FNHIS devem ser apli- cados, entre outras coisas, em ações que contemplem aquisição, construção, conclusão, melho- ria, reforma, locação social e arrendamento de unidades habitacionais em áreas urbanas e rurais e a aquisição de terrenos vinculada à implantação de projetos habitacionais, o que representa uma medida importante para a resolução de conflitos fundiários em áreas privadas.

A aplicação dos recursos do FNHIS deve estar submetida à política de desenvolvi- mento expressa no Plano Diretor (art, 11, §2º). A Lei 11.888/2008 incluiu, ainda, a possibilidade de que os programas de habitação de interesse social beneficiados com recursos do FNHIS envolvam a assistência técnica gratuita nas áreas de arquitetura, urbanismo e engenharia, res- peitadas as disponibilidades orçamentárias e financeiras fixadas em cada exercício financeiro e a forma definida pelo Conselho Gestor.

Os recursos do FNHIS devem ser aplicados de forma descentralizada por intermé- dio dos Estados, Distrito Federal e Municípios, dependendo, para tanto, dentre outros requisitos, da adesão deles; da criação de conselhos locais com participação de entes públicos e privados, reservadas um quarto das vagas para representantes dos movimentos populares e da apresenta- ção de Planos Habitacionais de Interesse Social local (art. 12), o que cria uma exigência de planejamento específico dos estados e municípios para a implementação da política de habita- ção de interesse social.

Embora a Lei do SNHIS não trate sobre a situação de conflitos fundiários, Patrícia Cardoso (2008) não deixa de destacar a importância da cooperação federativa produzida pelo sistema para o enfrentamento dos conflitos fundiários, a partir da articulação das ações de me- diação e prevenção de conflitos fundiários com as Políticas Nacional, Estadual e Municipal de Habitação de Interesse Social.

Ainda como um dos componentes da Política Nacional de Habitação entre 2007 e 2008 foi elaborado Plano Nacional de Habitação (PlanHab), um planejamento estratégico com duração de 15 anos, com propostas operacionais de curto e médio prazos. Os eixos do plano são: modelagem de subsídios e alavancagem de financiamentos para população de baixa renda; organização institucional e ampliação dos agentes do Sistema Nacional de Habitação de Inte- resse Social; propostas e mecanismos de fomento para a cadeia produtiva da construção civil;

incentivos à adoção de mecanismos de política territorial e fundiária para ampliação de áreas para habitação de interesse social.

Ocorre que no mesmo ano de finalização do PlanHab, a crise econômica chegou ao Brasil, impactando fortemente o setor imobiliário. Nesse contexto, junto à necessidade de evitar o aprofundamento do desemprego e ainda de criar condições eleitorais favoráveis, em 2009, foi criado o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV).

A Lei 11.977/2009, que dispõe sobre o PMCMV e a regularização fundiária de as- sentamentos localizados em áreas urbanas, apresenta garantias ao direito à moradia através da organização de políticas públicas no setor, operando com subsídio direto e proporcional para as faixas de renda que variam entre 0 a 3 salários mínimos (Faixa 1), 3 a 6 salários mínimos (Faixa 2) e 6 a 10 salários mínimos (Faixa 3).

Bonduki (2014) explica que o programa, inicialmente elaborado pelo Ministério da Fazenda, sofreu a intervenção da Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, com lastro no conteúdo do PlanHab. Assim, o primeiro eixo do Plano, relativo ao financia- mento e subsídio, foi alavancado com o PMCMV, adotando o cenário mais favorável previsto, que foi a dotação de 2% do Orçamento Geral da União para moradia, juntamente com outras medidas para baratear o custo da produção habitacional. Por outro lado, o PMCMV se concen- trou na produção de unidades prontas, deixando de lado alternativas habitacionais propostas pelo PlanHab mais baratas e que dialogavam melhor com a produção social de moradia. Além disso, enquanto o PlanHab previa um subsídio para estimular projetos em áreas centrais, o PMCMV estabeleceu teto único por valor de unidade habitação, favorecendo a localização pe- riférica dos empreendimentos.

Além disso, o PMCMV tem a iniciativa privada como agente central, o que vai ao encontro de um modelo neoliberal de urbanização. Como a apresentação de propostas e a loca- lização dos empreendimentos dependem da escolha do empreendedor privado, a capacidade dos municípios em realizar a sua missão constitucional de ordenamento territorial é muito re- duzida, assim como o controle e a participação social na elaboração da política urbana. De acordo com Renato Pequeno e Clarissa Freitas (2013) este modelo reproduz as insuficiências das políticas públicas anteriores, pois mantém o afastamento da intervenção estatal na estrutura fundiária.44

44 De acordo com os autores, no município de Fortaleza, até o final de 2012, apenas 352 unidades do PMCMV haviam sido entregues para famílias com faixa de renda de 0 a 3 salários mínimos. Dentre outros empreendimentos em vias de operacionalização, foi aprovado e está em construção um condomínio com quase de 6.000 casas no

Os empreendimentos do PMCMV implantados nos municípios de Fortaleza, Mara- canaú e Caucaia até o final de 2012 foram analisados pelo Laboratório de Estudos em Habitação da Universidade Federal do Ceará. Conforme explicam Renato Pequeno e Sara Vieira Rosa (2015), esses municípios reúnem 114 dos 139 empreendimentos contratados, sendo 43 destes incluídos na Faixa 1. Os 114 empreendimentos representam 83% de todas as unidades habita- cionais do Estado. Em Fortaleza, são 77 empreendimentos contratados, com 16.746 mil unida- des, o que corresponde a 2,3% dos domicílios da capital. Destes, 20 empreendimentos são da faixa 1, sendo que pouco mais da metade do total das unidades, 8.672, foi destinada para ela.

A pesquisa traz importantes elementos para a análise do maior programa habitaci- onal do país, dentre os quais, apenas alguns serão resumidamente expostos. Deles é relativo a pouca influência das prefeituras municipais nos processos decisórios, que “[...] se restringe à indicação das demandas, à complementação de critérios e à realização de Trabalho Técnico Social (TTS), fazendo-nos lembrar da época em que a questão habitacional se restringia a Fun- dação de Serviço Social de Fortaleza” (PEQUENO; ROSA, 2015, p. 144). Junto a isso está a baixa efetividade da legislação urbanística, tanto em relação à escolha das áreas dos empreen- dimentos, quando no uso dos instrumentos urbanísticos para viabilizá-los. Em Fortaleza, por exemplo, as áreas escolhidas foram as menos recomendadas pelo Plano Diretor, pela falta de infraestrutura urbana e equipamentos públicos.

Em relação à segregação socioespacial gerada pelos empreendimentos, a pesquisa destaca a negação do direito à cidade em decorrência da sua localização; a fragmentação terri- torial, tendo em vista que os condomínios murados dividem os semelhantes nos bairros forma- dos por loteamentos populares e favelas; a vulnerabilidade socioambiental, em especial nas áreas mais periféricas e menos densas, representada pela interrupção de córregos e linhas de drenagem natural ou pela proximidade com lagoas e grandes vazios urbanos.45

Bairro José Walter, empreendimento denominado “Cidade Jardim”. Algumas dessas unidades são oferecidas pelo Governo do Estado do Ceará como alternativa de moradia para famílias removidas por obras realizadas no pacote de ações da Copa do Mundo de 2014.

45 “[...] constatou-se que 84% de todos os empreendimentos da Faixa 1 foram construídos em áreas em que redes de infraestrutura de saneamento, pavimentação, arborização, qualidade das calçadas e iluminação pública foram classificadas como ruim ou muito ruim. [...]. Diante do universo de condomínios da Faixa 1 e das consultas aos síndicos, constata-se que mesmo equipamentos básicos não são disponíveis a todos (gráfico 1). Postos de saúde e escolas de ensino fundamental encontram-se presentes no entorno de dez dos catorze condomínios; escolas de ensino médio atendem a pouco mais da metade dos conjuntos; apenas seis dos condomínios dispõem de creche e centro de assistência social e cinco deles possuem delegacias de polícia nas proximidades. Tudo isto revela a precariedade das áreas das cidades estudadas onde os empreendimentos do PMCMV vêm sendo construídos, assim como a negação do direito à cidade” (PEQUENO; ROSA, 2015, p. 148-150).

Fator muito importante diz respeito à violência dentro e fora dos condomínios, com situações de síndicos ameaçados, imóveis entregues por dívida ao tráfico, abandono de imóveis, homicídios dentro dos condomínios e relatos de assalto no trajeto para escola ou trabalho.

Apesar de todos os fatores negativos diagnosticados não só pelos pesquisadores, mas pelos moradores de três dos conjuntos pesquisados (Escritores, em Caucaia; Santo Agos- tinho, em Fortaleza; e J.B Girão, em Maracanaú) nos quais foram feitas entrevistas e questio- nários, houve uma média de 90% de satisfação com a nova moradia, identificada com a reali- zação do sonho da casa própria.46