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Normas internas e proteção internacional

2.4 A garantia do direito à moradia no Direito brasileiro

2.4.1 Normas internas e proteção internacional

O direito à moradia foi inserido no rol dos direitos sociais do art. 6º da CF/8832 com a Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000. Antes disso, ele era protegido pelo art. 7º, IV, que elenca a moradia como uma das necessidades que devem ser atendidas pelo

31 O conceito de terras devolutas era bem mais amplo que o atual. Abrangia as terras que não se achavam a algum uso público ou no domínio particular ou por qualquer título legítimo, as que não fossem havidas por sesmarias e outras concessões do governo geral ou provincial, as que não se achavam ocupadas por posses, que apesar de não terem título legal, não fossem revalidadas pela lei (art. 3º).

32 Art. 6º “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988).

salário mínimo33 e pela garantia de inviolabilidade do domicílio, da intimidade e da vida pri- vada (art. 5º, X e XI).34

A Constituição Federal define que é competência comum de todos os entes federa- dos promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (art. 23, IX). Mais especificamente, atribui aos municípios a competên- cia para executar a política de desenvolvimento urbano, que tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes (art. 182).

A CF/88 atribui competência legislativa à União para instituir diretrizes para o de- senvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos (art. 21, XX). A competência legislativa dos municípios para assuntos de interesse local (art. 30, I) e para aprovar o Plano Diretor (art. 182, §1º) também lhe confere poderes normativos sobre o tema.

Aos estados cabe a competência legislativa suplementar e de instituir regiões me- tropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum (art. 25, §3º). A Constituição do Estado do Ceará condiciona a execução da política urbana ao direito de todo cidadão à moradia, entre outros direitos (art. 289). Ela também reconhece que a privação do direito à moradia coloca crianças e adolescentes em situação de risco, motivo pelo qual devem ter amparo e proteção prioritária (art. 279).

Além dos assuntos obrigatórios para um Plano Diretor previstos no Estatuto da Ci- dade, a Constituição Estadual determina que ele deve conter, entre outros temas, a delimitação de áreas destinadas à habitação popular (art. 290). Diz expressamente a Constituição do Estado que cabe ao Poder Público garantir orçamento para implantação de habitação de interesse da população de baixa renda, sem estipular uma quantia mínima, e que cabe a ele formular políticas habitacionais que permitam o acesso a programas públicos de habitação ou a financiamento

33 Art. 7º “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim” (BRASIL, 1988).

34 CF/88, Art. 5º omissis “X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (BRASIL, 1988).

público para aquisição ou construção de habitação própria e a assessoria técnica para a constru- ção da casa própria (arts. 298 e 299).

A Lei Orgânica de Fortaleza, no capítulo referente à habitação (art. 273), diz que caberá ao poder público municipal estabelecer uma política habitacional integrada à da União e à do Estado, objetivando solucionar o déficit habitacional, conforme princípios e critérios, dentre os quais: oferta de lote urbanizado; estímulo e incentivo à formação de associação e cooperativas populares de habitação; atendimento prioritário à família de baixa renda; formação de programas habitacionais pelo sistema de mutirão e autoconstrução; garantia da segurança jurídica da posse; articulação com outras políticas setoriais na efetivação de políticas públicas inclusivas, com atenção especial aos grupos sociais vulneráveis; manutenção de sistema de controle de beneficiários da política habitacional; e construção de moradia que atinja o mínimo existencial, compatível com a dignidade da pessoa humana.

O Estatuto da Cidade (Lei 12.257/2001), que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, não trata específica e isoladamente do direito à moradia, mas o protege como parte da política urbana, a qual, por sua vez, tem por objetivo ordenar o pleno desenvol- vimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana (art. 2º, caput).

A Lei estabelece que o direito à moradia, em conjunto com o direito à terra urbana, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte, aos serviços públicos, ao tra- balho e ao lazer compõem o direito às cidades sustentáveis, sendo este último uma diretriz geral que deve guiar a política urbana (art.2º, I).

Em resumo, o Estatuto liga o direito à moradia à gestão e ao uso da propriedade urbana, e o adota como núcleo central do direito às cidades sustentáveis, afinal é a partir do local e das condições de moradia que se desenvolvem a vida e as relações sociais na cidade. O direito à cidade, por sua vez, é noção que, antes de se constituir como uma norma, tem cunho político e sociológico, ganhando notoriedade a partir de Henri Lefebvre (2009).

A proteção do direito à moradia é, ainda, fundamento de institutos jurídicos como a usucapião especial, a concessão de direito real de uso, a concessão especial de uso para fins de moradia, a legitimação de posse, a desapropriação, a instituição de Zonas Especiais de Inte- resse Social (ZEIS), a regularização fundiária, a demarcação urbanística para fins de regulari- zação fundiária, dentre outros. O Código Civil também o garante por meio do direito real de habitação e por meio da “desapropriação judicial”, por exemplo.

Na jurisprudência, o direito à moradia também é fundamento da interpretação con- solidada sobre a proteção de determinadas situações jurídicas, como por exemplo, a impenho- rabilidade do imóvel da pessoa do bem de família, ainda que a pessoa viva sozinha.35 Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal considerou, no julgamento do Recurso Extraordinário 407.688-8/AC, que não viola o direito à moradia a penhorabilidade do bem de família do fiador de contrato de locação.36

Apesar de todo o aparato legal e dos instrumentos acima indicados para a efetivação do direito à moradia, a legislação interna não esclarece o seu conteúdo material, lacuna que é preenchida a partir da agenda internacional de direitos humanos (ROMEIRO; FROTA, 2015). O direito à moradia é reconhecido como direito humano pelo Pacto Internacional de Direitos, Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), no artigo 11, item 1, promulgado pelo Decreto nº 591, de 06 de julho de 1992.37

A fim de consolidar uma interpretação do direito à moradia compatível com o di- reito internacional dos direitos humanos, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais produziu dois comentários gerais sobre o art. 11, item 1, que devem servir de referência aos Estados Partes signatários do Pacto.

O Comentário Geral (CG) nº 4 determina que são componentes do direito humano à moradia adequada: a segurança jurídica da posse; a disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infraestrutura; o custo acessível; a habitabilidade; a acessibilidade; a localização; e a adequação cultural, sendo que cada um desses conceitos tem seu sentido explicado no co- mentário.

Junto a esses componentes, Letícia Osório (2014) cita também elementos propostos por Miloon Kothari, ex-relator especial da ONU sobre Moradia Adequada, que devem ser con- siderados para avaliar a realização e extensão das violações desse direito humano, quais sejam:

35 Súmula 364 do Superior Tribunal de Justiça: O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.

36 Para crítica da decisão, ver Sarlet, 2014, p. 261-292, na qual o autor destaca sobretudo a falta de aprofundamento e argumentação sobre o caso concreto e da discussão sobre os impactos gerais da decisão, inclusive pela não aplicação do dever de proporcionalidade, em especial do exame da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.

37 “Artigo 11 - 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento” (BRASIL, 1992).

não privação da posse, informação e capacitação, participação na tomada de decisões, reassen- tamento, ambiente seguro, segurança (física) e privacidade.

Outro aspecto importante é a diferenciação entre o direito à moradia e a obtenção de um teto, considerando a maior amplitude daquele, o que está expresso inclusive no CG nº 4, parágrafo 7, que diz que o direito à moradia adequada não deve ser interpretado de forma res- tritiva, equiparando-a a um teto oferecido como abrigo ou a uma mercadoria, mas que a norma deve ser interpretada como o direito de viver em algum lugar em segurança, paz e dignidade (OSÓRIO, 2014).

Já o CG nº 7 discute a questão especifica do despejo forçado e das remoções, reco- nhecendo-as como práticas violadoras dos direitos humanos, e recomenda aos Estados-Parte que tomem medidas preventivas para que elas não ocorram.

Outros pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário mencionam o direito à moradia como direito humano, como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979); a Convenção Internacional sobre os Di- reitos das Crianças (1989); a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1969); a Convenção sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias(1990); a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (2007); e a Declaração do Direitos dos Indígenas (2008).

Destacam-se ainda as Conferências das Nações Unidas sobre Direito à Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável. A partir delas, temos a Declaração de Vancouver sobre Assentamentos Humanos - Habitat I (1976) e a Declaração de Istambul sobre Assentamentos Humanos - Habitat II (1996). Como resultado da Habitat I, foi estabelecido em 1978, o Pro- grama das Nações Unidas para os assentamentos humanos, a ONU-HABITAT.38 A Habitat II produziu a Agenda Habitat, a ser implementada em articulação com Agenda 21, produzida após a Conferência ECO-92. Está em preparação a Habitat III, que será realizada em outubro de 2016, em Quito, Equador.39

38 “A organização é a encarregada de coordenar e harmonizar atividades em assentamentos humanos dentro do sistema das Nações Unidas, facilitando o intercâmbio global de informação sobre moradia e desenvolvimento sustentável de assentamentos humanos, além de colaborar em países com políticas e assessoria técnica para enfrentar o número crescente de desafios enfrentados por cidades de todos os tamanhos. O Escritório Regional da ONU-HABITAT para América Latina e o Caribe funciona no Rio de Janeiro desde 1996”. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/agencia/onu-habitat/>. Acesso em: 6 fev. 2016.

A Declaração do Milênio estabelece como uma das metas do objetivo 7 (“Garantir a sustentabilidade ambiental”) melhorar a vida de pelo menos 100 milhões de moradores em assentamentos precários no mundo para o ano 2020. São importantes também a Declaração sobre Cidades e outros Assentamentos Humanos no Novo Milênio, adotada pela Assembleia Geral da ONU de 9 de junho de 2001, a Resolução adotada pelo Conselho de Direitos Humanos sobre Direito à Moradia nos Megaeventos40, dentre muitos outros.

2.4.2 A organização da política habitacional: da Política Nacional de Habitação ao